A Câmara Municipal de Lisboa (CML) já limpou a estátua do Padre António Vieira, instalada no Largo Trindade Coelho, na capital portuguesa, depois de esta ter sido na tarde de quinta-feira vandalizada com a palavra “descoloniza” pintada a vermelho e pichagens da mesma cor nas personagens de bronze que a compõem.

A estátua do jesuíta português, cuja vida ficou marcada pela defesa dos direitos dos povos indígenas no Brasil no século XVII, foi instalada naquela praça lisboeta em junho de 2017 — e foi agora vandalizada numa altura em que os ataques a estátuas que evocam o passado colonial se têm repetido em diversos países na sequência dos protestos anti-racismo motivados pela morte de George Floyd nos EUA.

A PSP já está à procura dos autores do ato, já que a o ato de vandalismo contra monumentos configura um crime público.

PSP procura identificar autores de vandalismo em estátua do Padre António Vieira

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O presidente da autarquia, Fernando Medina, reagiu ao ataque contra a estátua escrevendo, no Twitter, que “a melhor resposta aos vândalos é a limpeza“. A legenda é acompanhada de fotografias que mostram uma equipa a limpar a estátua do Padre António Vieira. A autarquia sublinhou ainda que “todos os atos de vandalismo contra o património coletivo da cidade são inadmissíveis”.

A estátua em questão resultou de um protocolo entre a CML e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) para “a requalificação do Largo Trindade Coelho, em 2009, no qual a SCML assumiu a responsabilidade pela conceção e execução do monumento”, tal como se lê na página da autarquia.

O deputado André Ventura, do Chega, reagiu no Twitter e disse vai “questionar o Governo” sobre “se pensa tomar medidas de proteção aos símbolos da história e da cultura nacional ou se vai ficar quieto e dar via verde aos vândalos inconscientes”.

Também o CDS comentou a vandalização “cobarde” da estátua. Numa nota à imprensa assinada pelo líder, Francisco Rodrigues dos Santos, o partido refere-se ao Padre António Vieira como “o maior vulto português do século XVII, o Imperador da Língua Portuguesa e o Apóstolo do Brasil”.

“Não há diferença alguma entre a dinamitação dos Budas de Bamiyan pelos Talibãs, a destruição do museu de Mosul e de Palmira pelo Estado Islâmico e a onda de vandalismo e terrorismo cultural que parece ter agora chegado a Portugal, pela mão cobarde de uma certa extrema-esquerda que não dá a cara”, continua a nota do CDS.

Francisco Rodrigues dos Santos disse esperar que na sexta-feira a Câmara de Lisboa limpe a estátua de Vieira e admite que, se tal não acontecer, tomará providências: “Eu próprio, com uma equipa do CDS-PP e da Juventude Popular, trataremos de fazer esse trabalho.”

Por seu lado, dizendo tratar-se de “um ato criminoso” de “uma ideologia intolerante”, o PSD anunciou que vai apresentar na próxima reunião de Câmara uma moção a condenar o ato.

Algum peixe, provavelmente um torpedo (um peixe que faz tremer o braço aos pescadores), quis lembrar quanto o Sermão de…

Posted by João Pedro Costa on Thursday, June 11, 2020

Francisco José Viegas, ex-secretário de Estado da Cultura, comentou o sucedido na respetiva conta do Twitter, aludindo a textos que publicou no Correio da Manhã acerca da delapidação de estátuas. “Uma geração de moralistas que se colocam acima de qualquer suspeita quer varrer a memória por decreto e por vingança; é a geração do ressentimento”, escreveu Viegas nesta quinta-feira.

Em 2017, um protesto contra a estátua então erigida foi impedido por um grupo de extrema-direita, segundo disse à época Mamadou Ba, líder da organização SOS Racismo.

Padre António Vieira, um “escravagista selectivo”?

Mais recentemente, no campo das disputas em torno da narrativa sobre personalidades e factos relativos aos Descobrimentos e ao passado colonial português, registou-se uma polémica em torno sobre o Museu das Descobertas (ou dos Descobrimentos), que chegou a ser noticiada no diário britânico The Guardian. Em maio de 2018 era notícia, de acordo com jornal i, que o museu se chamaria A Viagem. À data, fonte próxima do presidente da Câmara Municipal de Lisboa revelou que o espaço museológico que tanta polémica gerou teria “outro nome e outra localização”.

Finalmente, em dezembro de 2018,a  Assembleia Municipal de Lisboa aprovou uma recomendação à Câmara para que criasse “uma estrutura polinucleada” dedicada aos Descobrimentos “nos seus aspetos mais e menos positivos, incluindo um núcleo dedicado à temática da escravatura”, o que gerou um debate ideológico entre deputados, com acusações de revisionismo, branqueamento histórico e motivações de extrema-direita.

Polémica sobre o Museu das Descobertas já chegou ao The Guardian

A estátua é da autoria do escultor Marco Telmo Areias Fidalgo e foi a primeira a ser erigida em Lisboa ao clérigo jesuíta, que nasceu em Lisboa em 1608 e morreu na Baía, Brasil, em 1697. “Um dia grande em que se repara uma grande injustiça e homenageia um grande homem”, disse o padre António Vaz Pinto, no momento da inauguração, a 22 de junho de 2017. A estátua foi agora vandalizada, à semelhança do que tem acontecido em cidades dos EUA e também da Europa, na sequência da morte do norte-americano George Floyd.

“Folgado em diplomacia, amplo em humanidade”, Vieira descenderia de mulatos

Figura controversa, António Vieira (1608-1697) continua a manifestar hoje a relevância do seu pensamento e da sua história de vida — ou não tivesse sido precisamente uma estátua que o representa o alvo do ato de vandalismo. Nascido em Lisboa, acabou por crescer e fazer vida no Brasil, então parte do império português (e assim até ao primeiro quartel do século XIX).

Para lá se dirigiu primeiramente o pai, Cristóvão Vieira Ravasco, natural de Santarém e escrivão de tribunal, e mais tarde a mãe, Maria de Azevedo, lisboeta, que ensinou as primeiras letras ao filho. Um “modesto casal burguês” de “sangue limpo”, escreveu o filólogo José Van Den Besselaar, em António Vieira: O Homem, A Obra, As Ideias (1981). E acrescentou: “Todas as diligências feitas pelo Santo Ofício no sentido de lhe indagar os rastos de uma ascendência judaica ou moura mostraram-se improfícuas. Pelas mesmas investigações se tornou provável que a avó materna do futuro orador fosse mulata.”

[De Churchill ao padre António Vieira. Radicalização contra estátuas divide opiniões pela Europa]

A vida de Vieira conheceu “uma série de transes críticos e perigosos”, de acordo com o filólogo. “Longe de os evitar, parece que andava à procura deles para poder mostrar o seu brio de lutador”, acrescentou. “Senhor da Língua, estrito na religião, folgado na diplomacia, testarudo [teimoso] em política, amplo em humanidade”, resumiu o filósofo Agostinho da Silva em Ir à Índia Sem Abandonar Portugal (1994).

De acordo com o autor de António Vieira: O Homem, A Obra, As Ideias, o jesuíta “era infatigável em defender os direitos dos índios”. Estes “não podiam ser escravizados a não ser em casos expressamente estipulados” pela lei, mas “na prática as leis eram pouco respeitadas” e “os governadores regionais
não dispunham de meios eficazes para refrear a cobiça dos colonos” pela trabalho escravo dos índios. Destacado no papel de defensor dos povos originários do Brasil, Vieira terá encontrado nos colonos feroz oposição às suas ideias, para os quais a exploração dos indígenas era fundamental para a vida económica.

António Vieira terá escrito a D. João IV e em 1654 atravessou o Atlântico para pedir pessoalmente ao rei que criasse “legislação justa para os indígenas”. Nas vésperas dessa viagem, terá escrito e lido na igreja de São Luís do Maranhão o famoso Sermão de Santo António aos Peixes. “A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis  uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos”, pregou Vieira.

Estátuas derrubadas e vandalizadas após morte de George Floyd

Desde a morte do norte-americano George Floyd às mãos da polícia, a 25 de maio, estátuas de Cristóvão Colombo e de líderes da Confederação têm sido vandalizadas em várias cidades norte-americanas. Exemplo disso foi a estátua do Presidente da Confederação, Jefferson Davis, que foi derrubada durante a noite de quarta-feira por manifestantes em Richmond — é a terceira estátua a ser vandalizada nos últimos dias naquela cidade.

Nem de propósito, a 3 de junho o governador do estado norte-americano da Virgínia anunciava a remoção de um monumento evocativo da Confederação situado na Monument Avenue. Em causa estava a estátua em homenagem ao general Robert E. Lee que foi entretanto armazenada. A estátua em particular tornou-se num ponto de encontro para manifestações que ocorreram na sequência da morte de Floyd.

Outros monumentos semelhantes foram retirados —a um deles, com 155 anos, foi igualmente removido em Birmingham, no Alabama. Também em Miami, na Flórida, uma estátua de Cristóvão Colombo foi vandalizada — o lema “Black Lives Matter” foi inscrito a vermelho — e em Boston outra estátua de Colombo foi decapitada.

Mas não é só nos EUA que surgem relatos destes. Na Bélgica, ativistas inspirados nos protestos que marcaram a atualidade nos Estados Unidos da América, começaram uma campanha para remover estátuas de Leopoldo II, rei dos Belgas de 1865 a 1909, na cidade de Bruxelas. Segundo o The Guardian, o grupo chamado “Reparar a História” lançou uma petição, disponível em Change.org, para que as autoridades removam todas as estátuas referentes a Leopoldo II, cujo domínio sobre o Congo terá causado a morte de 10 milhões de pessoas. O grupo pede que as estátuas sejam removidas até 30 de junho, data que assinala os 60 anos do fim do domínio belga.

Cidade inglesa retira estátua do fundador dos escoteiros por medo de vandalismo

Ainda esta quinta-feira é notícia que uma cidade inglesa mandou retirar uma estátua de Robert Baden-Powell, fundador dos escoteiros, para a proteger de vandalismo, dado que Baden- Powell é acusado de simpatizar com Hitler e ser racista. Antes já uma estátua do comerciante de escravos do século XVII Edward Colston foi derrubada por manifestantes na cidade inglesa de Bristol, numa ação de protesto contra o racismo no Reino Unido.

Em Portugal, uma estátua em homenagem ao descobridor do Brasil, Pedro Álvares Cabral, situada junto à Igreja da Graça, em Santarém, foi alvo de vandalismo em junho do ano passado. Segundo o Mirante, na base da estátua foi escrito a verde a frase “Colonialismo é Fascismo”.