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Pascal Quignard e a arte de traduzir as sombras

"Os Desaçornados" é o mais recente livro do cavaleiro negro da língua francesa a ser traduzido para português. Siderantes na sua prodigiosa erudição, estas histórias, lendas e mitos abocanham o leitor

“Desaçornados” significa “arrancados do arção”, ou seja da sela. A palavra de origem latina existe no francês, no castelhano, no basco, mas não existia em português. Usá-la, arrancando-a da sua antiguidade, puxando pelo rasto de tantos cavaleiros derrubados, física ou metaforicamente, é uma ousadia do tradutor, Diogo Paiva, que certamente Pascal Quignard apreciaria, ou, não fosse ele o mais inatual dos escritores contemporâneos, que escreve como se vivesse ainda no século XVII ou XVIII, recuperando formas do francês arcaico, revificando línguas mortas como o latim, o etrusco, o grego antigo, o sânscrito.

O que podem ter em comum a doença do rei Carlos IV de França, a espera da escritora George Sand para que o pai “cessasse de estar morto”, Medeia, Lancelote, o cavalo que derrubou Montaigne, o cavalo que Nietzsche abraçou, a epifania de Saulo a caminho de Damasco, a visita de Freud a Colónia, o amante de Madame de Clèves, a canção fúnebre de La Palisse? Todos eles foram desaçornados de alguma forma e, por isso, mereceram entrar n’O Último Reino que, mais do que um ciclo de livros, é um lugar utópico que não pertence a este mundo, com o qual Quignard destruiu o tempo convencional, cronológico, linear da História, da literatura e fundou uma ilha onde  é sempre “outrora”, o “jadis” o “já dito”.

É o “antes de todos os antes”, o tempo da origem que não cessa de se transformar.Ilha, habitada por sombras, formas improváveis, que recebe todas as partes amaldiçoadas do humano, foi fundada em 2002 com o magnifico As Sombras Errantes (Gótica) e Sur Le Jadis. Este ciclo temático de livros que são coleções delicadas, eruditas de lendas, pequenas histórias, mitos, notas biográficas, etimologia de palavras enterradas, restos de línguas perdidas, como se fora o saqueador sonhado por Novalis, ou o continuador das coleções de coisas em desuso de Walter Benjamin ou das imagens do pathos de Abby Warburg.

A capa da edição portuguesa de "Os Desaçornados", pela Cutelo, com tradução de Diogo Paiva

Os Desaçornados, de 2012, é o sétimo tomo, de um reino onde se vão recolher todas as sombras, todas as palavras que ainda mantêm com as coisas relações de simpatia e similitude, uma linguagem que não foi destruída pela normatividade das gramáticas e dos consensos e que, portanto, pode desocultar relações entre a ciência, a poesia, a moral, a psicanálise, a história, o mito, a genealogia, onde, com um substrato filosófico, o escritor toma como premissa que “as mais puras teorias são também as mais belas ficções”.

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Quando, em 1969, o jovem violoncelista, colecionador de coisas absurdas, publicou um ensaio consagrado a Sacher-Masoch ou quando, no mesmo ano, a pedido do poeta Paul Celan, se precipitou a traduzir Alexandra de Lycophron, a última epopeia conhecida da Grécia antiga, já se faziam anunciar as ideias fundamentais da sua obra, muito devedora de George Bataille, a saber: o fascínio pelo sórdido, o repugnante ligado à nossa natureza animal, predatória, sexual, vivípara. Só há paixão onde houver proximidade com a violência pulsional da morte, da fome, do desejo. Mas será só a partir do ciclo O Ultimo Reino, em especial com as obras Sordidissime, Le Sexe et l’effroi e A Noite Sexual (Sr. Teste), que essas ideias ganham a forma perfeita pelo uso de uma linguagem que sabe trazer à luz o secreto, o invisível, o que vive numa terra incógnita onde o poder social não existe,o que retorna ao mundo das feras, da necrofagia, da predação, da horda; são as histórias de cavaleiros desaçornados, de aristocratas perversas e lúbricas, dos lobos que ensinaram os homens a caçar e foram, por isso, domesticados, tiranos, imperadores, homens para sempre presos ao pavor do nascimento, dos abutres que foram os nossos primeiros Deuses, pois era no seu voo que sabíamos onde ir disputar com os corvos os restos do animal devorado, é o sorriso que amamos nas bocas das nossas mães e das nossas crianças, mas que é tão só um esgar, um resquício, que a nossa face guardou, do tempo em que usávamos os dentes para siderar a presa antes de a abocanhar.

Se a rapina se mantém por trás do poder, que grito se mantém atrás da língua?(…) A primeira língua da humanidade consistia num silêncio mortal”

[“Os Desaçornados”]

É fundamental perceber que os breves textos de Quignard não devem ser considerados “fragmentos”. Ele abomina a escrita fragmentária, que, como defenderá no livro Um Incomodo Técnico em Relação aos Fragmentos (Deriva), considera artificial, escolar, dando ideia de uma rutura, um corte que nunca existiu pois tudo se joga na tensão “entre a lembrança e o desejo” obscuramente misturados. Quignard também não estende no horizonte nenhum ideal de Liberdade: todos estes conceitos pertencem a uma modernidade social, política, cultural da qual ele não faz parte. Com Nietzsche aprendeu que um homem só pode compreender o seu tempo, só será verdadeiramente um “contemporâneo” se der um passo atrás, se recuar para ver “o mal naquilo que uma época se orgulha”, como escreveu o filósofo italiano Giorgio Agamben. Portanto, Quignard, na sua inatualidade é o verdadeiro contemporâneo, como o foram La Boetie, Montaigne, Nietzsche, Benjamin, Warburg, Pasolini.

Quignard sonha em desaparecer nos seus livros, em ser apenas um "autor de autores", e assim terá muitos livros não assinados, ou escritos de forma em que a marca autoral surge tão esbatida quanto a linguagem lhe permite.

É, pois, porque recua, que assume uma inatualidade face a este tempo onde nos tornámos desaçornados- sedentários em frente a ecrãs, onde o ódio ruminado se torna medo, fazendo de todos nós bestas aprisionadas, angustiadas, vigiadas em todos os instantes determinantes da existência, o nascimento, a sexualidade e a morte; todos eles regulamentados, normalizados, assetizados, como se dentro de nós não vivesse ainda esse “perdido”, esse chamamento ao útero e à terra, à casa perdida da Vida, ao vaso da floresta palúdica onde chocou o primeiro germe. “Com Quignard trata-se menos de fugir e mais de caçar, não se trata nunca de libertar-se ou libertar os outros mas de capturar a presa em fuga”, (Yves Hersant, Critique, 721/722).

Creio que não se pode ser livre, podemos afastar-nos da família, alcançar a periferia do grupo, diminuir a servidão, torná-la menos voluntária.”

[“Os Desaçornados”]

Somos animais das sombras errantes no outrora, vultos escurecidos pelo voo do abutre. Porque “vulto” vem do latim “vultur“, o nome que os romanos deram ao abutre. Também a linguagem é uma incessante fonte de ressurgências, traumas, atavismos, experiências, e Pascal Quignard coloca-a ao serviço do seu reino, por isso, ela é sempre anti-social, livre da pressão analítica, identitária, aspirando o mundo pré-gramatical,  aquele dos primeiros sons aprendidos no canto dos pássaros, no gemido, no grito, no prazer e na dor.

O seu universo situa-se sempre nesse “jadis” que é um tempo mas, simultaneamente, é uma coisa “já dita”; dos seus livros híbridos, inclassificáveis, aos ciclos “Pequenos-Tratados”, “O Último Reino”, “Escritos do Éfemero”,  mas também os seus livros sem autor, como As Tábuas de Buxo de Apronénia Avitia (Cotovia) ou Albucios,  os ensaios especulativos, os livros de arte, o teatro criaram uma estética da incongruência, da estranheza, do sórdido, do humilde, do excrementício, construída sobre o mais belo estilo clássico herdeiro de Columella e Montaigne; onde as línguas mortas encontram as vivas. Por vezes, apenas com uma breve nota de rodapé, ou uma explicação etimológica, Quignard desarçona os leitores.

(…) a separação entre presa e predador inventa o tempo. O tempo desejoso é essa ruptura entre presa e predador, tal como o tempo tornado linguagem é relato de predação no regresso da morte concedida. Predação e narração são da mesma família.” [“Os Desaçornados”]

O fascínio das origens e da renúncia

Em 1976, publica na Gallimard, o falso romance O Leitor (Sr.Teste), no qual um homem desaparece dentro das páginas, também aí há uma declaração de intenções: a sua escrita visa abolir toda a distância entre o eu que escreve e o eu que lê, visa apagar a noção de sujeito para fazer valer a noção de “fascínio”, que será também ela determinante para entender esta obra. Fascinar vem do latim Fascinus, que vem do grego Phallos, isto éobrigar aquele que vê a não afastar o olhar. O cervo aterrorizado não desvia o olhar da fera, fica imobilizado no pânico” (O Sexo e o Pavor, 1994). Aqui esconde-se outra das ideias nucleares deste escritor: o prazer é puro puritanismo, pois, a verdade de dois ou mais corpos que se encontram e se devoram não está no “prazer”, um conceito moderno, mas no “fascínio” da presa que não pode desviar o olhar do ou da predador(a). Ou seja, no medo.

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Não se pode separar, nos livros de Pascal Quignard, a majestade da sua escrita, das histórias que inventa ou reconta. Todas são labirintos para o inexplicável

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Fala-se, portanto, de uma sideração mútua, uma potencial fusão. Na predação das origens, na sexualidade, na gestação, na leitura  há sempre uma regressão, lê-se para se perder e encontrar o perdido. Lê-se como uma forma de intimidade idêntica à da mãe que amamenta o bebé, à dos amantes, à de um músico com o seu instrumento. Por isso, os seus textos são narrativas soltas, com a delicadeza de nunca se tentarem impor como uma verdade. No ensaio ” O que é um literato?” dirá: “tudo o que os nossos olhos não podem ver, e os nossos dedos não podem tocar, não está ausente deste mundo”.

Depois de Nietzsche e Bataille, Quignard será muito influenciado pela obra do psicanalista francês Jacques Lacan, em especial a figura do “objeto-ausente”, essa coisa indescritível, que se define pela sua ausência. O próprio Quignard sonha em desaparecer nos seus livros, em ser apenas um “autor de autores”, e assim terá várias obras não assinadas, ou escritas de forma a que a marca autoral surja tão esbatida quanto a linguagem lhe permite.

Um homem e uma mulher amam-se. Deixam-se. Afastam-se. A mulher diz:

— O senhor inventou-me. Vou dizer-lhe exactamente o que penso. Um homem que fala a uma mulher dirige-se a alguém que já não existe.

O homem responde-lhe:

— A senhora inventou-me. Vou também dizer-lhe aquilo em que acredito: Uma mulher que fala a um homem dirige-se à criança que o seu corpo sonha fabricar a partir dele.

Dizendo a verdade, ambos mentem.”

[Pascal Quignard, “Sur Le Jadis”]

Nestes anos 70, Pascal Quignard colabora sobretudo com a revista de poesia e arte, L’Éphémère, para qual escreve textos e poemas, que nos anos 90, serão reunidos no ciclo de livros intitulados “Escritos do Efémero”. Essa será a década em que se dedica à escrita de romances, algo que não deixou de crispar os seus leitores ávidos dos seus textos híbridos, inclassificaveis, medusantes. Logo em 1991, escreve o seu livro mais famoso, Todas as Manhãs do Mundo (Quetzal/ Sr.Teste), biografia ficcional de um músico do século XVII, que seria adaptado ao cinema, protagonizado por Gerard Depardieu e o filho. Mas antes disso, o escritor foi apenas leitor de inéditos para a Gallimard durante a tarde e estudioso de textos antigos, em especial em latim, durante as manhãs. Esta língua dita “morta”, o seu funcionamento, as suas ressonâncias, a forma como vive ainda nas palavras que pronunciamos serão a clave de sol deste escritor. Quignard adora escavar dentro das palavras, fazer uma arqueologia selvagem das camadas, dos rastos que a historia humana e mineral lhe imprimiu e depois silenciou.

Outra das suas ideias estruturais é a de que a linguagem é algo do qual é preciso “raspar” as camadas de história, poder, de desejo de separação traduzido na obsessão classificatória das gramáticas, para desvelar a violência inicial que ela registou; a sua relação com as experiências viscerais do corpo, da caça, da guerra, da cópula, das noites geladas e sem luar, do calor dos primeiros abrigos. A violência primordial das origens foi recalcada como um trauma, trocada por eufemismos e obediências.

Não se diz: César perfurado por dezassete facadas, uma das quais mortal, desferida na virilha pelo seu filho. Diz-se Pax Romana.”

[“Os Desaçornados”]

Não se pode separar, nos livros de Pascal Quignard, a majestade da sua escrita, das histórias que inventa ou reconta. Todas são labirintos para o inexplicável. Não há saída para o leitor a não ser afrontar este campo aberto. E aqui entramos noutro eixo fundamental; a relação entre tirania e obediência, que já vem dos seus estudos sobre Sacher-Masoch, continua com Bataille, Blanchot, Emmanuel Levinas (que foi seu professor). Escreverá: “Na época em que Júlio César tentou libertar os romanos, não encontrou um só homem, de tal forma eles aspiravam à tirania (…)”. A autoridade é sempre mais antiga que a consciência, a linguagem, o discurso. E os homens, devido à sua fragilidade ontológica, a um corpo que não esqueceu o tempo que era devorado pelas feras, nem o desamparo da primeira respiração fora do útero materno, preferem sempre a segurança dos tiranos.

Esta língua dita "morta", o seu funcionamento, as suas ressonâncias, a forma como vive ainda nas palavras que pronunciamos serão a clave de sol deste escritor. Quignard adora escavar dentro das palavras, fazer uma arqueologia selvagem das camadas.

Esta ideia foi determinante para Pedro Magalhães, editor da Cutelo, decidir publicar este livro, pois, como disse ao Observador: “Vivemos um período de grandes tensões; a escalada da guerra em vários pontos do globo, a instabilidade política, o planeta que se vai esforçando por dar os últimos suspiros, a constante pressão de uma sociedade de produção completamente subserviente ao capital e à violência da positividade. Este livro do Quignard é um tremendo transgressor que nos obriga a mergulhar no âmago da natureza humana em todas as suas derivações. É um corpo violento que não se deixa apreender (tal como o cavalo selvagem que não tolera a sela e o arção). O desarçonado é aquele que se retirou, que se ausentou, que se perturbou. Alguém que entrou e saiu de uma outra frequência, tal como o xamã que consegue entrar e sair do mundo invisível. Quignard viaja pelas florestas da humanidade questionando as lógicas de dominação a que todos estamos submetidos”.

Em 1997, depois de um grave problema cardíaco, escreve aquele que muitos consideram o seu mais belo livro; A Vida Secreta (Editorial Notícias), e que viria a ser integrado no ciclo “O Último Reino”. São 500 páginas que tornam obsoletas, senão mesmo tontas, tantas coisas que se escreveram, a partir dai, sobre o Amor, a sexualidade, mas, sobretudo, a intimidade e o seu onirísmo, o seu silêncio e a sua solidão. “Pascal Quignard sai do mundo das sombras, do frio, da orla, e entra num quarto cheio de luz e calor, desperta a felicidade dos apátridas, e o desejo de abandono não siderado pelo abismo da morte”, (Laurent Nunez, Critique, 721/22).

Muito rapidamente, os nossos corpos sentiram-se como uma subtileza  e uma rapidez que certamente nunca seriam imagináveis pelo espírito daqueles que vivem todo o tempo a falar. Ser estranho à linguagem revelava qualquer coisa. Desenterrava qualquer coisa. O mais que não fosse a estranheza de tudo com um novo sentido. Como um tocar mudo e pungente. Nada compreender de nada é um órgão fabuloso.”

[Pascal Quignard, “A Vida Secreta”, editorial Notícias, 1999]

Na parte final de Os Desaçornados, o escritor vai avançando nas histórias de homens e mulheres que renunciaram ao grupo, à matilha. Uns escolhem a morte, outros o silêncio, outros ainda escolhem os livros e a leitura; anacoretas, Jesus, Séneca, Ovídio, Louise Michel, Robert Antelme. A forma certa desta partida, Quignard encontrou-a num édito do imperador Adriano “renuncio ao meu século”, ou seja, a partir deste momento todos tinham o direito de recusar viver segundo a sua época, não deixando de estar vivos, mas simplesmente “romper a narração profana, gloriosa, política, militar, cultural, abandonando a corrida aos lugares, às recompensas, às riquezas, aos títulos, aos túmulos, aos memoriais”.

Um escritor nas fronteiras de Portugal

Os Desaçornados é apenas o 13.º livro do autor publicado em Portugal, o que tendo em conta as suas muitas dezenas de livros, a grandeza da sua obra, da sua escrita “princeps”, da sua originalidade, da profunda erudição, só comparável ao um Cláudio Magris, a um George Steiner, a um Kundera, é manifestamente escasso aquilo que está, até hoje, traduzido em Portugal.

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Em França, os Pequenos Tratados de Pascal Quignard existem, inclusive, em edições de bolso, acessíveis para serem descobertos por qualquer leitor

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Quignard foi publicado, pela primeira vez, em Portugal, no ano de 1992, na antiga Quetzal, com o romance Todas as Manhãs do Mundo, traduzido pelo poeta Pedro Tamen. Em 1999 surge A Vida Secreta. Um pouco por intermédio do jornalista de cultura do Diário de Notícias e do programa Acontece da RTP2, António Carvalho, será publicada na editorial Notícias. A paisagem editorial e a cobertura mediática dos livros era outra. No mesmo ano, a Cotovia lança o inesquecível — e hoje livro de culto — As Tábuas de Buxo de Apronenia Avitia, o suposto diário de uma mulher romana, no fim do império. Quignard inventa uma autora tão original que queremos apagar o seu inventor. E, de facto, quem leu Apronenia Avitia, desconfia que foi ela quem inventou Quignard e não o contrário. Em 2002, ainda na Cotovia de André Jorge, sairá Histórias de Amor de Outros Tempos e, no mesmo ano, a extinta Gótica, de Maria da Piedade Ferreira, fundadora da Quetzal, publica As Sombras Errantes, ou a entrada n’O Último Reino. Resta dizer que todas estas obras estão esgotadíssimas há muitos anos.

Ao longo da primeira década do milénio, as profundas mudanças no meio editorial português, o desaparecimento de muitos projetos editoriais e/ou a sua transformação em projetos comerciais, tornou Quignard “inviável”. Na segunda década, a febre dos romances trouxe o autor em várias obras menores, como Villa Amália ou Terraço em Roma.

Depois de quase ter caído no esquecimento, o escritor que, em 1992, chegou a escrever sobre os azulejos do Palácio do Marquês de Fronteira, no livro A Fronteira (Quetzal), foi resgatado, em 2021 pela editora Sr.Teste, que publicou O Leitor, A Noite Sexual e um volume de textos que inclui uma nova edição de Todas as Manhãs do Mundo. Livros feitos com cuidado e curadoria artística, mas, a edição escassa e cara terá chegado apenas para alguns felizes. Nem os leitores e fãs mais atentos souberam da publicação destes obras. Este ano, foi a vez de outra pequena editora de Guimarães, a Cutelo, aventurar-se com Os Desaçornados, certamente o mais belo e importante livro traduzido este ano, em Portugal. A editora de Pedro Magalhães, que não tendo uma arma para se defender dos perigos começou “a dormir com livros debaixo da almofada”, embarcou na aventura de publicar este autor e este livro que, conta o editor, “só estava previsto sair no final deste ano ou início do próximo”. “Acontece que depois de ler excertos da tradução do Diogo Paiva, fiquei tão apaixonado pelo livro que decidi avançar de imediato, arrastando para o final do ano umas quantas edições que, na verdade, não sabemos ainda se vamos conseguir concretizar ou se teremos de passar para o próximo ano”, diz.

Olhando as muitas dezenas de livros de Pascal Quignard, especialmente ensaios sobre arte, literatura, ensaios especulativos sobre história, geologia, geofísica, antropologia, híbridos, peças para teatro e para dança, é lamentável que as grandes editoras continuem a passar ao lado deste autor e que este esforço para traduzir e editar obras de grande relevância cultural parta, cada vez mais de pequenas editoras, tornando muitos escritores maiores só acessíveis a uma elite e deixando o grande público entregue aos bestsellers. Em França, os Pequenos Tratados de Pascal Quignard existem, inclusive, em edições de bolso, acessíveis para serem descobertos por qualquer leitor. Ter os seus livros em edições de bolso é uma luta na qual o próprio escritor se empenha há muitos anos. Pois, como ele mesmo escreveu:

Há pessoas solitárias que vivem na terra ou no céu sem inventar sociedades, sem omitir a carnivoria com sacrifícios, sem atirar pedras ao bode expiatório. Oh, gente singular, singular, selvagem, bisbilhoteira, solitária que se precipita sobre a minha alma.

[“O que é um Literato?”, Critique 721/22]

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