“Miguel” demorou quase 40 anos a olhar para si próprio como um sobrevivente de um crime. Aos oito anos de idade, caiu nas garras de uma rede de pedófilos que atuava na pequena vila do interior do Brasil onde cresceu: durante alguns anos, foi violado repetidas vezes por homens que o levavam para o quarto onde todas as noites dormiam com as esposas. Os abusos só pararam quando o crescimento o amadureceu e o seu corpo deixou de interessar aos pedófilos. Na infância, a falta de afetos por parte de uma família disfuncional que nunca o protegeu deixou-o à deriva numa localidade onde desde muito cedo começou a andar sozinho pelas ruas.
“Eu era uma criança vulnerável em função da falta de cuidados em casa”, relata, quarenta anos depois, ao Observador, numa entrevista em que pediu para a sua verdadeira identidade ser ocultada. “A partir dos oito anos, consigo juntar eventos. Aconteceu várias vezes e é um dado importante para perceber a interpretação que fazemos disto. Eu sempre fui um homem homossexual, percebi-o desde muito novo. O problema é que fiz, ao longo da vida, uma interpretação equivocada: imaginava que era eu quem os buscava, quem seduzia. Era uma criança que não tinha atenção e afeto em casa e passei a encontrar fontes de atenção e afeto fora, em situações perigosas. Uma das fontes de atenção e afeto eram estes ataques.”
Aos 47 anos de idade, quase quatro décadas e muitas sessões de psicoterapia depois, Miguel é capaz de falar com alguma serenidade sobre a indescritível violência que sofreu em criança. Vive em Portugal desde 2007 e, em 2022, foi um dos 127 homens que procuraram a ajuda da Quebrar o Silêncio, a única associação que presta apoio a homens e rapazes vítimas de violência sexual em Portugal. Esta quinta-feira, dia em que completa seis anos de existência, a associação divulgou um conjunto de dados que permitem traçar um retrato desta realidade habitualmente oculta: neste período, 594 homens e rapazes vítimas de violência sexual pediram ajuda à instituição para lidar com o trauma. Só em 2022, foram 127 — um “aumento significativo”, nas palavras do fundador da associação, Ângelo Fernandes, em comparação com os 96 que pediram ajuda em 2021. É um aumento de 32% no número de pedidos de ajuda, face ao ano anterior.
O ano de 2022 foi também especialmente complicado para as vítimas de crimes sexuais devido à grande atenção mediática gerada pelo trabalho da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa. Embora a investigação lançada pela Igreja não tenha feito aumentar o número de pedidos de ajuda de vítimas de padres, Ângelo Fernandes explica que a torrente de notícias e, sobretudo, as declarações de alguns líderes eclesiásticos, como as do bispo do Porto, aumentaram a dor e a ansiedade de muitos dos sobreviventes que a associação acompanha.
É um dado comprovado que a violência sexual atinge desproporcionalmente as mulheres, uma evidência que contribui para um aumento dos “mitos, preconceitos e estigmas” relativamente à minoria de homens e rapazes que são afetados por este tipo de crimes. Para Ângelo Fernandes, ele próprio um sobrevivente de abusos sexuais na infância, no caso dos homens há “obstáculos” especialmente difíceis de ultrapassar no processo de partilhar uma situação de abuso e pedir ajuda — e o principal é a desvalorização por parte de quem ouve, movida pela ideia de que “homem que é homem não precisa de ninguém para o defender”.
“Uma violação das boas” ou “só eu é que não tive essa sorte”
Durante vários anos, Miguel negou que tinha sido vítima de um crime sexual. “Como homem gay, para mim, a negação advinha da perceção equivocada de que era eu que seduzia”, conta, salientando que nunca revelou à família aquilo que lhe tinha acontecido, mas que o disse várias vezes a amigos em tom de brincadeira. Por aquilo que recorda das conversas com os amigos, percebe hoje que teria tido uma perceção diferente do que lhe aconteceu se não fosse homossexual.
Miguel lembra até uma conversa que viria a testemunhar anos mais tarde, quando um jovem de cerca de 20 anos revelou aos amigos que estava nervoso porque iria iniciar a sua vida sexual com a namorada — e ouviu um colega, homossexual, dizer que tinha iniciado a vida sexual aos nove anos de idade. “Não, não iniciou”, lembra hoje Miguel, destacando que subsistiu durante muitos anos, nele e noutras vítimas, a ideia de que simplesmente foram “precoces” no início da vida sexual.
“Ao falar com outros homens homossexuais, descobri a atuação transgeracional dessa rede de pedófilos”, conta Miguel, acrescentando que os criminosos identificavam as vítimas entre as crianças mais vulneráveis e expostas, incluindo aquelas que já desde tenra idade questionavam a sua orientação sexual. “O que choca muito é que estes homens me atacavam nas suas casas, muitas vezes nos quartos que eles dividiam com as suas mulheres”, diz Miguel. “Era comum ouvir que os meus amigos homossexuais eram levados para dentro de casa.”
Para muitas daquelas crianças, que se tornariam depois adolescentes conscientes da sua orientação sexual, a ideia de que aquelas experiências tinham sido apenas o início precoce da sua vida sexual, e não um crime, foi decisiva para adiar em largos anos o momento em que se aperceberam de que tinham sido vítimas e pediram ajuda.
“O que percebi a conversar com outros é que para um homem heterossexual a vergonha é de outro nível”, conta Miguel.
Ângelo Fernandes, que fundou a Quebrar o Silêncio em janeiro de 2017 após mais de duas décadas em silêncio sobre os abusos que tinha sofrido na infância, explica que “a sociedade ainda continua a reproduzir ideias erradas sobre como os homens não podem ser vítimas de violência sexual”. A ideia de que “o homem é o abusador, nunca a vítima”, é um contributo central para o “silenciamento” de muitos homens, “que sentem que foram a exceção a uma regra, que só eles é que foram abusados”.
“Existem vários obstáculos à partilha e à denúncia”, acrescenta Ângelo Fernandes. A clássica correlação entre vítima e futuro abusador leva muitos homens a não partilharem que foram vítimas devido ao medo de serem vistos como potenciais abusadores. Além disso, “as pessoas tendem a desvalorizar as histórias de violência, tendem a minimizar, há uma desvalorização e um escrutínio do discurso da vítima”.
Segundo Ângelo Fernandes, apesar de a maioria dos abusadores de homens serem outros homens, cerca de um terço dos abusadores de homens são mulheres. Nestes casos, a vergonha das vítimas duplica. “Há homens que foram abusados por mulheres e muita gente não entende, e questiona, como é que um homem pode ser abusado por uma mulher. Há uma romantização, a desvalorização de que isto é uma forma de violência, com comentários como ‘quem me dera a mim’, ‘uma violação das boas’ ou ‘só eu é que não tive essa sorte’. Há todo o tipo de troça”, explica o fundador da associação.
No caso dos homens que sofreram os abusos em idade adulta, a denúncia é ainda mais difícil do que no caso daqueles que foram violentados em crianças — uma vez que a maioria das pessoas não compreende como é que um homem adulto pode sofrer uma violação. Outro dos casos especialmente complexos diz respeito aos homens homossexuais que foram violados por outros homens. “Estes muitas vezes sentem que não podem procurar ajuda, porque sentem que entre homossexuais ‘é assim que funciona’ e têm medo de uma abordagem moralista sobre o seu comportamento”, acrescenta o responsável.
Vítimas entre os 16 e os 67 anos de idade
De acordo com os dados disponibilizados esta quinta-feira, a Quebrar o Silêncio recebeu durante o ano de 2022 um total de 209 pedidos de apoio. Destes, 127 foram de homens e rapazes vítimas de abuso sexual, a que se somaram 54 pedidos da parte de amigos e familiares de vítimas, quatro de homens vítimas de violência doméstica e ainda 19 de mulheres vítimas de violência sexual — que foram encaminhados para associações especificamente dedicadas ao apoio de mulheres.
Ao fim de seis anos, Ângelo Fernandes faz um “balanço positivo” do trabalho da associação. “Em seis anos, cerca de 600 pessoas procuraram a Quebrar o Silêncio para pedir apoio”, diz o responsável, salientando que a associação tem feito um “esforço continuado para abrir uma conversa sobre a violência sexual contra homens e rapazes”. Além do fundador, trabalham a tempo inteiro na associação duas psicólogas, a que se juntam outros profissionais esporadicamente para prestar apoio em casos concretos.
Segundo um comunicado do fundador da associação divulgado esta quinta-feira, o aumento da “visibilidade” da Quebrar o Silêncio tem conduzido a um aumento do número de pedidos de apoio por parte de homens e rapazes “que agora sentem segurança” para contactar os profissionais.
“São homens que vêem as suas vidas afetadas pelo abuso sexual a nível pessoal, social e profissional. Muitos relatam problemas em estabelecer relações de confiança com os outros, dificuldade em relaxar, estando permanentemente em alerta, baixa autoestima e assertividade, níveis altos de ansiedade e problemas na sua vida íntima e sexual”, diz Ângelo Fernandes.
“No entanto, é preciso clarificar que este sofrimento nem sempre é visível para as outras pessoas, como os familiares destes homens, amigos ou colegas. Ou seja, muitos destes homens vivem as suas vidas sem que as pessoas se apercebem da sua dor, camuflando, a muito custo, o seu sofrimento dos outros. É como se usassem uma máscara que não pode ser removida. A sociedade ainda não evoluiu para aceitar a realidade de que um em cada seis homens é vítima de abuso sexual e, por isso, estes homens não sentem a segurança necessária para partilhar as suas histórias. A maioria demora mais de 20 anos até ser capaz de fazê-lo”, acrescenta o responsável.
Segundo a Quebrar o Silêncio, a média de idades dos pedidos de ajuda recebidos em 2022 é de 36 anos, sendo o “sobrevivente” mais novo — termo usado para referir uma pessoa que sofreu um abuso — um jovem de 16 anos e o mais velho um homem de 67 anos. A associação tem também notado um aumento do número de jovens a procurar apoio, um sinal positivo que aponta para uma maior consciência da gravidade do problema — e que permite uma intervenção mais precoce no apoio às vítimas.
Além disso, o presidente da associação explica que se tem registado um aumento do número de homens que sofreram abusos “em idade adulta e em vários contextos, como na intimidade, entre casais, saídas noturnas ou mesmo no contexto da saúde”. Ainda assim, Ângelo Fernandes resiste à ideia de traçar um perfil social dos homens que são vítimas de violência sexual, sublinhando que há vítimas de todos os estratos sociais e escalões etários; casados, solteiros ou divorciados; com ou sem filhos; trabalhadores ou desempregados, e por aí fora.
O que é certo, defende Ângelo Fernandes, é que a divulgação de testemunhos motiva outros homens a procurar ajuda. “Tentamos criar um espaço seguro para os homens partilharem a sua história. Muitos partilham que se sentem validados, escutados”, diz o responsável. “É visível quando publicamos um novo testemunho no nosso site. Ajuda na identificação e outros homens vão procurar ajuda.”
A maioria dos sobreviventes que são apoiados pela Quebrar o Silêncio chega à associação pelo próprio pé, depois de pedirem ajuda para lidar com o trauma, embora haja também quem chegue encaminhado por outras associações ou devido a pedidos de ajuda feitos por amigos e familiares. No caso de Miguel, o contacto com a associação aconteceu quase por acaso, durante uma manhã em que estava a navegar no Twitter. “Faço psicoterapia desde há muito tempo, consegui uma psicóloga que me estava a ajudar a lidar com isto”, conta o homem, lembrando que, ainda assim, procurava alguém que o ajudasse com maior consistência: “A hora semanal da psicoterapia era pouca para lidar com isto.”
Numa manhã, a navegar no Twitter, tropeçou acidentalmente numa notícia sobre a associação e decidiu contactá-la. Em poucos meses, diz que conseguiu “transitar entre a vítima e o sobrevivente”, o que foi decisivo para aprender a lidar com o que lhe tinha acontecido.
Palavras do bispo do Porto tiveram “impacto devastador” nas vítimas
O ano de 2022 ficou marcado pelos trabalhos da comissão independente que está a investigar o historial de abusos sexuais de menores na Igreja Católica em Portugal ao longo das últimas décadas. A comissão, liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, está em funções desde janeiro do ano passado e deverá entregar o relatório final no próximo mês de fevereiro. De acordo com o último ponto de situação realizado pela comissão, já tinham sido recebidos mais de 400 testemunhos de abuso — e, de acordo com as informações divulgadas pela equipa de Strecht, a grande maioria das vítimas no contexto da Igreja Católica são rapazes.
Segundo Ângelo Fernandes, o trabalho da comissão independente não fez aumentar, junto da Quebrar o Silêncio, “os pedidos de apoio relativamente aos casos da Igreja”.
“O que observámos foi uma intensificação da dor, do trauma, relativamente às notícias”, diz o responsável da Quebrar o Silêncio. “Muitos homens foram referindo que não tinham paz, que todos os dias eram assaltados pelas notícias. Ligavam a televisão e viam as notícias; no trabalho falava-se do assunto. Isto fez com que muitos homens vivessem situações mais complicadas no que toca à ansiedade.”
A associação já acompanhou e continua a acompanhar vários homens que foram vítimas de violência sexual no contexto da Igreja Católica, mas, segundo Ângelo Fernandes, não recebeu qualquer homem encaminhado pela comissão de Pedro Strecht ao longo do ano de 2022. “Desde cedo disponibilizámo-nos para apoiar esses homens vítimas de violência sexual”, afirma o responsável da associação. Ainda assim, e apesar de nenhum caso ter sido remetido pela comissão, Ângelo Fernandes diz que conversou recentemente com Pedro Strecht para lhe fornecer dados sobre a associação que deverão ser incluídos no relatório final da comissão.
Para estes sobreviventes de abusos cometidos no seio da Igreja Católica, o último ano foi especialmente complicado, explica Ângelo Fernandes. “As declarações do bispo do Porto, essencialmente, foram sentidas de uma forma muito pessoal, porque muitos destes homens continuam a ser crentes, a ter uma vida religiosa ativa e, ao verem estas palavras que não estão ao lado das vítimas, isso teve um impacto devastador, de injustiça”, diz o responsável.
Em outubro do ano passado, o bispo do Porto, D. Manuel Linda, fez um pedido de desculpas público depois de em vários momentos ter proferido declarações controversas sobre a crise dos abusos sexuais de menores.
Bispo do Porto retrata-se. “Peço desculpa a todos e perdão às vítimas”
O bispo tinha-se destacado especialmente numa entrevista à TSF em abril de 2019, na qual classificou os abusos de menores como “asneiras” e equiparou aqueles crimes à queda de meteoritos. Na altura, discutia-se em Portugal a criação, por parte das dioceses católicas, de comissões de proteção de menores — e D. Manuel Linda considerou que os abusos eram situações tão raras quanto a queda de meteoritos na cidade. “Ninguém cria, por exemplo, uma comissão para estudar os efeitos do impacto de um meteorito na cidade do Porto”, afirmou. “É possível que caia aqui um meteorito? É. Justifica-se uma comissão dessas? Porventura não.”
Já em 2022, D. Manuel Linda voltou a estar no centro de uma polémica depois de ter afirmado aos jornalistas que o crime de abuso sexual de crianças não é um crime público, pelo que não havia obrigação de o denunciar às autoridades. Na verdade, trata-se de um crime público, o que significa que a sua investigação não depende de uma queixa por parte da vítima, bastando a denúncia por parte de qualquer pessoa (ainda que a denúncia não seja obrigatória).
A grande controvérsia em torno das expressões de D. Manuel Linda obrigou o bispo do Porto a pedir perdão numa carta aberta. “Assumo que não fui feliz na expressão e que, porventura, tornei incompreensível o meu próprio pensamento. E disso peço desculpa a todos e perdão às vítimas que, possivelmente, se sentiram feridas”, escreveu Linda.
Segundo Ângelo Fernandes, este tipo de declarações por parte dos responsáveis eclesiásticos, com destaque para as palavras de D. Manuel Linda, acarretam o risco de causar grande sofrimento às vítimas, especialmente naquelas que foram violentadas no contexto da Igreja Católica.
Não foi o caso de Miguel, que vive afastado da Igreja desde a adolescência e não sofreu os abusos no contexto do clero — embora tenha estado próximo dessa realidade. Um padre da sua povoação, com o qual Miguel conviveu várias vezes durante a sua vulnerável infância, viria mais tarde a ser acusado de práticas sexuais envolvendo menores de 12 anos — mas, nesse caso, os abusos visaram apenas crianças do sexo feminino.
“Acho que esta informação deve ser conhecida, antes tarde do que nunca”, diz o sobrevivente, referindo-se ao inquérito sobre a realidade dos abusos na Igreja em Portugal. “Quando os escândalos começaram a surgir noutros países, há alguns anos, celebrei e observei: vamos ver até onde vão conseguir levar isto”, acrescenta ainda. “Preocupa-me que a dimensão do problema não seja totalmente esclarecida.”
Para o sobrevivente, é necessário criar na sociedade portuguesa a convicção de que “o pedófilo é um homem muito perverso” e, por isso, “é importante descobrir como a estrutura da Igreja foi usada para encobrir estes crimes”. E, continua Miguel, “para se criar a necessidade de vigilância, estes relatos têm de ser graficamente expostos. As pessoas têm de perceber que um homem levar uma criança para o quarto onde vive com a mulher não é normal.”