Está a gozar a sua licença de paternidade e, por isso, temporariamente fora do Parlamento, mas isso não impedirá o líder parlamentar do Bloco de Esquerda de rumar a Matosinhos para participar, este fim de semana, na convenção nacional do partido. Em entrevista à Vichyssoise, programa da rádio Observador, explica que as ambições do BE foram reajustadas desde a última convenção, marcada pela vontade de chegar ao Governo: os resultados eleitorais não chegaram para tanto. A relação com o PS continua, no entanto, a ser o tema mais chamativo da reunião magna bloquista, é por isso que Pedro Filipe Soares critica a “arrogância” dos socialistas, que não têm “sensibilidade” para responder à pandemia. Pelo caminho, aproveita para provocar o PCP: “Já tínhamos alertado para essas insuficiências” do PS…
Mesmo assim, se a direita — particularmente contando com alianças entre PSD e os novos partidos — tiver hipóteses de chegar ao poder, o líder da bancada não tem dúvidas: será “inequívoca” para o Bloco, nesse cenário, a necessidade de travar a direita. Enquanto esse risco não se coloca, começa a construir-se a lista de prioridades para as negociações orçamentais, com um foco de tradicional desentendimento entre BE e PS: “Emprego, emprego, emprego”.
A horas do arranque da convenção, Pedro Filipe Soares assegura ainda que Catarina Martins está bem segura no cargo e garante que os casos recentes no Bloco — como a acusação de violência doméstica a um deputado — nem sequer “beliscam” o discurso do partido.
Há três anos, na última convenção, vimos um Bloco que parecia cada vez mais próximo do poder, e que confessava até ambições de chegar ao Governo. Esta é a convenção em que o Bloco se vai voltar a apresentar como partido de oposição?
Esta convenção acontece num período político diferente. A convenção anterior determinava o caminho até às eleições legislativas. E como tal a definição do Bloco perante o resultado das eleições era uma das preocupações e um dos temas em debate: o que faríamos nesse caminho, quais eram as nossas pretensões e quais eram os planos que tínhamos para implementar nesse caminho. O contexto agora é diferente: não há, pelo menos antecipadamente naquilo que se conhece, umas eleições legislativas no horizonte…
Mas o que é que mudou para frustrar os planos do Bloco? Foi o PS que não quis contar com o BE, foi o BE que se desiludiu com o PS…?
Tivemos umas legislativas em que o BE se manteve como terceira força política e o seu projeto político teve um apoio social que relevamos, mas não foi ainda o suficiente para permitir que o Bloco disputasse a entrada no Governo. Por outro lado, assistimos a um PS mais arrogante, mais autossuficiente na forma como se guia quer na governação, quer na relação com outros partidos. E isso é que mudou, essa postura do PS, face aos quatro anos anteriores. Não por acaso, a seguir às legislativas até propusemos a possibilidade de renovar o acordo e ela foi liminarmente rejeitada pelo PS.
Agora, há uma coisa que mudou drasticamente: temos uma pandemia que nos caiu em cima, temos um país que já não está nas mesmas circunstâncias sociais e económicas de há três anos. Desse ponto de vista, parece-nos que também no conteúdo da governação o PS e o seu Governo minoritário são diferentes agora dos que existiram até 2019, porque enquanto no passado éramos um exemplo de defesa dos serviços públicos, de valorização do emprego, da forma como se olhava para a qualidade do emprego, agora o Governo é dos que menos investem na resposta à crise, dos que na Europa menos se preocupam em defender a economia e o tecido social nesta pandemia.
Depreende-se que PS e BE estão neste momento em caminhos muito diferentes. Mas Fernando Rosas, em entrevista esta sexta-feira ao Diário de Notícias, diz que o Bloco quer um entendimento com o PS. O BE não está disposto a isso? As negociações exigem cedência de parte a parte.
Obviamente, qualquer tipo de diálogo implica ouvirmos a outra parte, se não são dois monólogos. Eu creio que disso nunca podem acusar o Bloco de Esquerda, em vários dossiês difíceis.
António Costa acusa o Bloco de ter desertado.
Creio que essa retórica não lhe fica bem e não lhe vou responder na mesma medida. Não acho que seja essa a forma de se discutir conteúdo político, e esse é o que merece ser discutido. Olhando para o concreto, para propostas de esquerda, e perguntando-nos se o BE alguma vez faltou com o seu voto a essas propostas, por exemplo de recuperação de rendimentos, de valorização dos direitos dos trabalhadores… o BE nunca faltou a estas votações.
Suponho que nos vá dizer que o PS faltou.
Em várias delas. Por isso, percebo até e acompanho as palavras do Fernando Rosas; nunca houve da parte do BE uma intransigência de dizer: “Nós não queremos nada com o PS”. Nunca o fizemos. Agora, tem de ter consequências na vida das pessoas.
Mas nas condições concretas em que estamos, acredita que, nas palavras de António Costa, este “divórcio” pode ter reconciliação, particularmente este ano?
O percurso até ao Orçamento do Estado ainda é longo. Está muita coisa em aberto. Para haver um resultado diferente do que tivemos no OE anterior, tem de haver um percurso e conclusões diferentes dos do OE anterior. É no conteúdo que se valida qual será o voto do BE.
Indo a esse conteúdo, com que prioridades é que o BE vai partir para esta negociação?
Aí, a resposta é sempre a mesma: emprego, emprego, emprego.
No ano passado houve também o Novo Banco…
Sim, coisa que conquistámos, com o PSD e outros partidos — quem ficou isolado foi o PS. Tivemos essa vitória e mesmo assim o PS, que diz que nunca há dinheiro para nada, desencantou uma possibilidade dentro do OE para pagar ao Novo Banco.
E neste Orçamento o foco será, então, o emprego.
Creio que o emprego é fundamental. Os serviços públicos estão inerentes à salvaguarda de que precisamos quer de dignidade para a vida das pessoas, quer de acesso a bens e serviços essenciais. Mas num período de crise económica e social em que a taxa de desemprego está a aumentar mas acima de tudo a fragilidade do emprego é visível, a questão do emprego — como se recupera, como se reconstrói o país, como se garante dignidade a quem trabalha e capacidade para trabalhar — esse é um debate fundamental que temos em cima da mesa.
E já receberam convite do Governo para começar a negociar?
Não. Até agora, ainda não.
Se o OE depender do voto do BE para passar, o partido prefere ir para eleições e contribuir para uma crise política ou vai repensar a posição que assumiu no último OE?
Mais do que pensar numa lógica de jogo partidário, temos de olhar para o conteúdo da proposta. E é mais o conteúdo do que o contexto partidário que vai ter maior ponderação nessa definição do voto.
Mas acha que António Costa pode ter a tentação de precipitar uma crise política?
Na minha opinião, já teve várias vezes no passado. A última das quais no verão passado, em que tudo indiciava que o Governo queria ir para eleições antecipadas e foi o presidente da República que não deu a mão ao Governo para isso. Costa já demonstrou que é um político bastante hábil e neste jogo político-partidário tem grande flexibilidade. Não é, no entanto, o quadro em que nós pensamos para definir o voto do OE.
O Bloco não corre o risco de ficar como o partido que não entra para as contas de documentos fundamentais para a governação? João Oliveira, líder parlamentar do PCP, criticava na quinta-feira “os que desistiram de intervir e lutar para vencer as resistências do PS”.
Basta olhar para a recente comissão de inquérito ao Novo Banco, para as questões do teletrabalho, para a criminalização do enriquecimento ilícito, questões candentes e que chamam a atenção do país, e percebe-se como o Bloco de Esquerda tem tido a dianteira em todos estes dossiês.
São dossiês importantes, mas estamos a falar do Orçamento. O PCP sugeriu que o BE tinha desistido de influenciar o PS. Não se revê nessa crítica?
O BE definiu o seu voto num OE que achámos que não estava à altura de um voto favorável. O PCP teve uma opinião diferente e atualmente está diariamente a criticar a execução do Governo.
Arrependeu-se, portanto.
Não sei, terá de perguntar ao João Oliveira. Constato é essa realidade: diariamente, ouvimos os dirigentes do PCP a fazer essa crítica. Ora já tínhamos alertado para estas insuficiências várias e para, e este é o ponto fundamental, a falta de sensibilidade do Governo para estar à altura da resposta necessária ao país num momento tão difícil como este.
Acredita que a atitude do Governo para com o BE tem a ver com o facto de António Costa achar que o PCP está seguro — e que segura o Governo?
Não posso excluir essa hipótese. Não estou na cabeça de António Costa. Admito que há contas que são feitas e Costa, do ponto de vista do jogo político-partidário, tem demonstrado ser bastante hábil e essa calculadora deve andar sempre com ele. No entanto, o país exige muito mais do que meras contas de mercearia política, exige soluções estruturais para o país, e esse é o desafio.
O grande objetivo do BE passou a ser impedir uma maioria absoluta de António Costa? É assim que o BE se vai apresentar aos eleitores?
Vamos ter, se tudo correr normalmente, outra convenção ainda antes das legislativas e a estratégia eleitoral será definida nessa convenção. Esta convenção é encarada como o Bloco a preparar-se e criar uma resposta, densificando a proposta ao país, num momento em que a pandemia ainda não está ultrapassada mas já vemos uma luz ao fundo do túnel. E esta urgência do país é o ponto central do debate: como nós pensamos o Estado para responder às pessoas, como olhamos para economia, para o emprego e para a sua qualidade e dignidade. E garantirmos uma economia que tenha lugar para todos, porque reconstruir pode servir para melhorar e nós precisamos, de facto, de melhorar aquilo que já existia em 2019, mais do que apenas recuperar o que existia — já havia muitas desigualdades e precariedade — e também de dar o salto de qualidade no que toca ao combate à corrupção, uma matéria em que eu creio agora que temos possibilidade de ir mais longe.
Mas o Bloco não está condenado a entender-se com o PS, sabendo que a alternativa ao PS será muito provavelmente um Governo PSD apoiado pela direita com o CDS, a IL e o Chega? Isso não é um desafio que o BE nunca saberá ultrapassar?
Há dois períodos temporais na resposta a essa pergunta: um primeiro antes das legislativas; e um segundo depois das legislativas. Antes das legislativas é esperado que qualquer partido vá defender a sua visão para o país. Uma visão ideológica, também, mas um programa político para o momento do país e para as soluções que considera que o país necessita. O segundo momento é depois de distribuída a opinião das pessoas e de ter uma divisão das responsabilidades, e aí decide-se como é que nós fazemos uso desse mandato que nos foi dado.
No que depender do BE sempre que existir uma maioria de deputados à esquerda a direita nunca voltará ao poder?
A resposta é inequívoca: sim. O Bloco de Esquerda nunca contribuirá, havendo uma maioria de esquerda, para que os partidos de direita cheguem ao poder.
Normalmente diz-se que os resultados eleitorais servem para tirar algumas lições. O Bloco teve um resultado muito fraco nas últimas eleições a que se apresentou, as Presidenciais. O partido retira daí alguma lição para o futuro?
Com toda a humildade, qualquer partido deve olhar para umas eleições, quaisquer que elas sejam, e analisá-las, retirar conclusões e nós fizemos isso em tempo útil. E uma das conclusões que retirámos, que eu creio que é inequívoca também, é que não há aparentemente nenhuma contaminação dos resultados entre Presidenciais e potenciais legislativas. As eleições são diferentes, as pessoas percebem isso e votam de forma diferente. Desse ponto de vista, tivemos umas eleições Presidenciais muito marcadas pela reeleição do atual Presidente e foi esse o ponto definidor dessas eleições, o que também afetou o eleitorado do Bloco de Esquerda.
Há algumas anos foi uma espécie de challenger da liderança de Catarina Martins e João Semedo. Pergunto-lhe se o Bloco de Esquerda está no momento certo para se renovar ou se essa questão da não eternização dos cargos é secundária?
Conseguimos nos últimos anos, muito por mérito da Catarina Martins, ter um diálogo interno muito profícuo, capaz de apresentar o Bloco como terceira força política e mantê-lo como terceira força e capaz de ser uma força determinante para os destinos do país. Esse caminho, feito ao longo de anos, permitiu várias renovações. Veja-se a bancada parlamentar que foi, nas últimas legislativas, das mais renovadas do Parlamento. Somos das bancadas mais novas do Parlamento da atualidade. Esse mérito deve ser reconhecido à direção e em particular à Catarina Martins.
Mas quando chegar essa hora da renovação, que percebemos que não é para já, admite voltar a candidatar-se à liderança, como já aconteceu no passado?
Creio que esse debate não é pertinente neste momento. A Catarina Martins está onde deve estar e está a desempenhar um bom trabalho, quer internamente, quer externamente. E por isso tem todas as condições e confiança para poder continuar. Essa é a resposta que é sentida não só por mim, mas pela larguíssima maioria dos bloquistas.
Está preocupado com as notícias de algumas polémicas recentes no interior do Bloco, nomeadamente a acusação de violência doméstica ao deputado Luís Monteiro? Isso retira legitimidade ao Bloco para falar de temas que são bandeiras do partido?
Como é óbvio, quem leva a sério todos esses temas não pode ser sobranceiro quando vê qualquer crítica que exista, qualquer denúncia, e tem de levar a sério todas essas informações. Agora, como dissemos sempre, não é um partido nem as redes sociais que se devem substituir à justiça. A justiça tem de fazer o seu papel e o que nós temos proposto tantas vezes é o reforço do papel da justiça nestas matérias. Desse ponto de vista não me parece que o Bloco de Esquerda saia sequer beliscado neste tipo de debates. E mais: sai até com uma capacidade para poder dizer diretamente que, independentemente do que aconteça com os intervenientes numa situação destas, o Bloco de Esquerda propôs e proporá o reforço da capacidade fiscalizadora do Estado, da capacidade legislativa para o Estado agir. Propusemos, por exemplo, que a violência doméstica fosse crime público, a violação também. Por isso, não entregamos ao partido a definição dos resultados de investigações internas — isso não existe — mas sim à justiça.
[Avançamos agora para o segmento carne ao peixe em que o convidado só pode escolher uma de duas opções:]
A quem preferia dar umas aulas de matemática: João Leão ou Mário Centeno?
João Leão, porque já tive um contacto com ele no Grupo de Trabalho sobre a dívida pública e na altura conseguimos chegar a maiores patamares de entendimento do que aqueles que foram possíveis com Mário Centeno. Infelizmente parece que a cadeira de ministro das Finanças é que provoca mais os desentendimentos do que as próprias pessoas, mas isso faz parte da vida.
Está de licença de paternidade neste momento. A quem é que entregaria com mais confiança os seus filhos para uma tarde baby-sitting: Pedro Nuno Santos ou Fernando Medina?
Do que eu conheço do ponto de vista pessoal qualquer um dos dois estaria à altura para essa tarefa. Um dos meus filhos tem três anos e meio, outro não chega a um mês. Neste momento qualquer um dos dois poderia ser, mas já vi o Pedro Nuno Santos a mudar fraldas — desse ponto de vista estava safo — e o meu filho, quando no outro dia o viu com um avião da TAP por trás numa reportagem televisiva, ficou maravilhado. Portanto, já tinha ali com que se entreter.
Preferia ser ministro num Governo PS-Bloco ou manter o Bloco de Esquerda na oposição com um Governo minoritário?
Eu não prefiro ser ministro. Já vos disse isso há dois anos. Preferia um Governo Bloco, e a ordem é relevante, com qualquer outro partido de esquerda.
Quem convidaria para jantar: António Costa ou Jerónimo de Sousa?
Jerónimo de Sousa.