Índice
Índice
[Este é o segundo de uma série de especiais a publicar mensalmente, durante 2021, a propósito do 50.º aniversário de um ano que marcou a música portuguesa. Aqui pode ler o primeiro]
Lisboa está um gelo. Um temporal corta o silêncio da rua, irrompe pelo vazio e devasta a luz da capital. No Estádio d’Os Belenenses, dois pilares sucumbem aos abanões, a estimativa são dois mil contos de prejuízo. No dia seguinte, mais frio, mais silêncio. “As mãos, sem luvas, crivadas de pregos na cinza da manhã solidificada. Lisboa tremendo frio”, descreve Urbano Tavares Rodrigues, no rescaldo de um dos invernos mais rigorosos que há memória: 1971. O escritor e jornalista continua: “A calma nas ruas pobres: um povo de silêncio, de mistérios emaranhados”. O fotógrafo Eduardo Gageiro, em Bragança, capta a mesma desolação da capital, com temperaturas negativas e neve como não se via há 15 anos. E neste mesmo país, contra todas as previsões, um fenómeno de paixão e alegria, calor e intriga, reúne milhões de pessoas em frente a um pequeno televisor. No centro está uma figura extravagante, de bradar aos céus, smoking justo, a gesticular com fervura sob cada louvor, cada insulto. Há 50 anos, José Carlos Pereira Ary dos Santos concorre com três letras, vence o Festival RTP da Canção e suspende o silêncio do povo, de mistérios emaranhados.
“José Carlos Ary dos Santos, ao subir ao palco, estava a ser vaiado… e é então que dá vontade de perguntar: mas afinal vale a pena?”. O desabafo é da escritora Maria Teresa Horta, na revista Mundo da Canção, escandalizada com a plateia do Teatro Tivoli que protestou violentamente contra a vitória de “Menina”, a canção de Ary dos Santos e Nuno Nazareth Fernandes interpretada por Tonicha. Em palco, após o anúncio da votação, Ary dos Santos reage de imediato, atiça o público e enxovalha em provocação. “O público do Tivoli pode enganar-se, mas o povo não vai em conversas. E eu confiava no povo”, desabafava aos meios de imprensa presentes, acrescentando encolerizado: “Ainda bem que certos rabanetes burgueses, com patinhas de burro, não chegam ao céu”. O orquestrador Pedro Osório concorda com a plateia: “Mais uma vez a mediocridade venceu na música em Portugal!”. Simone de Oliveira reforça as críticas e Teresa Paula Brito — “excitadíssima” — proclama:
“Isto não é um Festival de propagandas, nem de nada dessas coisas, isto chamam-lhe Festival da Canção. E demonstrou-se que o júri em Portugal não tem classe para escolher músicas. Não tem critério musical. Não percebem nada de nada e vão classificar um malhão ou coisa do género”. (Mundo da Canção, 1971)
O derrotado Hugo Maia Loureiro responde secamente: “A classificação foi ao gosto do público”. A cantora Daphne, outra derrotada, sentencia: “Pois é, Tonicha tem muito mètier”. Segundo a revista Flama, Paulo de Carvalho está particularmente desolado: “Os seus olhos, vermelhos e cansados, refletiam a derrota que não esperaria”. O intérprete de “Flor do Tempo” era o favorito, entregou-se por completo ao palco e dificilmente engolia o segundo lugar. “Acho que ganhou uma menina pequenina de mais para ganhar um Festival. ‘Menina’ é uma canção popularucha. Nunca lhe daria um ponto”. Paulo de Carvalho ainda acrescenta, a desdenhar o certame: “Isto não afeta a minha carreira internacional. Acha que nos Estados Unidos sabem que existe RTP?” O jornalista e crítico Tito Lívio, em reportagem para a Mundo da Canção, denuncia “um alto funcionário da RTP” por tentar expulsar um colega indignado com o resultado. Entre os pingos da chuva, Tonicha, Ary dos Santos e Nuno Nazareth escapulam-se para o restaurante Arraial, festa rija até às seis da manhã, e por fim são fotografados em pose de vitória por Eduardo Gageiro, capa do Século Ilustrado, em frente à estátua de Eça de Queiroz, numa madrugada gelada de fevereiro.
No dia 11 desse mês, em antecipação do Festival RTP da Canção de 1971, escreve o Diário de Lisboa: “A eterna miragem que, uma vez por ano, anima os bastidores da nossa música ligeira: o horizonte, afinal, que cada temporada parece acessível e, no regresso à realidade, acaba por desfazer-se em fumo”. O fatalismo português, até na hora de maior felicidade, salvaguarda qualquer desilusão. No mesmo jornal, César Faustino: “Uma manifestação que revelará nomes, impulsionará o consumo dos discos; ajudará a enriquecer artistas, autores e marcas (…) Comercializada? Por certo. Sofisticada? Sem dúvida. Manipulada? Acredite-se. Mas um espetáculo que representa um oásis no deserto das pressões, fadigas, problemas, angústias, que cobre a chamada civilização de hoje”.
A controversa vitória de “Menina”, a afirmação de Paulo de Carvalho e Fernando Tordo diante de milhões de portugueses, e nos bastidores, uma batalha inédita que gera uma nova indústria discográfica, é um cenário que se agiganta perante o inverno, a ditadura, perante qualquer angústia nacional. É um momento histórico, durante um dia debate-se fervorosamente o passado, presente e futuro da música popular portuguesa. E o maestro desta sinfonia é um poeta: Ary dos Santos.
O amigo, o “feitio tramado” e as canções
“O Festival da Canção é, em Portugal, infelizmente, o maior e o mais amplo veículo de comunicação com as massas”, esclarece Ary dos Santos à revista Flama, considerando entusiasticamente, com arrogância e alvoroço: “O Festival começou a ter projeção, modéstia à parte, a partir da colaboração que lhe dei. Começou a ser importante na medida em que se desencadeou uma onda de intervenção ao nível da música e do poema, ou seja, ao nível da canção total”. A canção é cada vez mais analisada ao detalhe lírico, tanto pela destreza dos poetas como pelas mensagens que contrabalançam a melodia. “Quanto a mim, a canção é, fundamentalmente, poesia cantada”, defende à escritora Maria Teresa Horta, até incorporar novamente o papel trocista de Ary-espalha-brasas: “As opiniões discordantes de certos intelectuais pantufeiros ou de publicitários banha-da-cobra, como o demente Artur Portela Filho, não têm nem categoria nem importância para me demover daquilo que me apetece fazer”.
O poeta de 34 anos, estabelecido no meio literário desde a década anterior, cria um personagem à sua medida que se destaca na negritude do Estado Novo, com uma espetacularidade sagaz para superar as barreiras sociais que distanciam a literatura do seu povo.
“O poeta tem sempre a sua vaidade, a exuberância dos gestos e das palavras”, reflete Fernando Tordo ao telefone a partir de sua casa, em Lisboa, neste 2021 pandémico, enquanto recorda a presença extravagante e conflituosa do seu parceiro de tantas cantigas. Atrás das cortinas, o poeta lisboeta que escreveu mais de 600 letras confessava-se um comunista devoto e um capitalista publicitário, um companheiro de armas da luta clandestina e amigo íntimo de Fernanda de Castro, viúva de António Ferro. Em palco era transparente, à flor da pele, impetuosamente competitivo, uma extensão da forma extremista que seguia pela vida. “O Ary era muito amigo, mas zangava-se com toda a gente, tinha um feitio tramado” confirma-nos o músico Nuno Nazareth Fernandes, a partir de São Domingos de Rana, acrescentando: “A dada altura, zangou-se comigo também… várias vezes”.
Em 1971, Ary dos Santos almeja o título de poeta do povo, honra que lhe era tão cara, e concorre com três poemas ao maior púlpito de Portugal: o Festival RTP da Canção. “É impossível formular um juízo de valor por cada uma delas, pois são diferentes”, defende ao Diário de Lisboa, enquanto ensaiava as três canções numa sala acanhada na Avenida Afonso III, casa de Nuno Gomes dos Santos, o compositor da banda Intróito. “A ‘Menina’ é mais lírica, o ‘Cavalo À Solta’ mais dramática e ‘Palavras Abertas’ é uma mistura de ambas as coisas”.
Por ordem, Tonicha, Fernando Tordo e os Intróito ensaiam a tomada derradeira de Portugal pelo poeta comunista, debaixo do nariz do regime ditatorial. Neste mesmo ano, Ary ainda sobe ao palco do Tipóia, a casa de fados de Adelina Ramos onde recita semanalmente. Em defesa desta popularização da poesia, seja na RTP ou na casa de fados, Ary explica: “A poesia é uma palavra de união dada a todos e a que todos devem ter acesso. Temer o seu mais generoso trânsito é negar o encanto da sua origem e fim. Como o pão mais necessário, a poesia é para distribuir comumente em abundância”. Por outras palavras, a poesia é do povo e o povo é quem mais ordena. É um Allen Ginsberg à portuguesa, contextualizam as reportagens da época, um trovador nas bocas da rua desde que saiu de casa dos pais aos 17 anos.
“Sou uma pessoa simples e complicada, ao mesmo tempo. Sou uma vítima da alta burguesia portuguesa. Nasci duma família rica, num berço de ouro. Tive uma nurse inglesa que andava com um véu de crepe azul caído pelas costas e uma mademoiselle francesa até aos oito anos de idade. Iam-me buscar ao colégio num carro com chauffeur, enquanto os outros pequenos iam para casa a pé. Minha mãe morreu quando eu contava catorze anos. Morreu de repente, depois de ter apanhado o meu pai em falso, numa falsidade de situação terrível. Tudo ficou, então, em jogo para mim”. (Revista Flama, 1972)
O poeta Ary dos Santos despertou no momento de maior desolação: a morte da mãe. A entrada na maioridade é de definitiva incompatibilidade com o pai, e depois, mais um trauma: o suicídio do irmão. A vítima da alta burguesia portuguesa rompe a bolha aristocrática e conhece o Portugal miserável, dedica-lhes poemas e processa, à custa da máquina de escrever, um prenúncio de morte. “‘Por onde passaste tu, que não soubeste passar?/ Pela sandália do tempo, pelo cílio do luar’, cita-nos Fernando Tordo, a relembrar o “Canto Franciscano” como prova da relevância da morte para o poeta; sendo que este poema, como é característico em Ary dos Santos, pode ainda ter uma dupla função: mencionar à socapa o seu namorado mais estável ao longo da vida, José Francisco, então colocado na Guiné.
A caminhada de Ary dos Santos pela literatura seria intermitente, em paralelo com uma carreira na publicidade. É precisamente numa campanha que conhece Nuno Nazareth Fernandes, o músico lisboeta que queria abater a canção ligeira da década anterior — desdenhosamente resumida como “nacional-cançonetismo” — desde que venceu o Festival RTP da Canção em 1967 com “O Vento Mudou”, na voz de Eduardo Nascimento. Em 1969, a dupla Nuno Nazareth/Ary dos Santos vence o certame com “Desfolhada” e dois anos depois, em 1971, compõem uma canção eterna — “Menina” — e uma perecível — “Minha lã, meu amor”. Esta segunda canção era a última encomenda publicitária, desta feita para a Woolmark, com clara inspiração em “Love Story”, o filme do momento.
O descaramento de escrever poesia e fazer dinheiro em publicidade e festivais é considerado um excesso impensável para alguns protagonistas do meio literário português. Segundo o jornalista Fernando Cordeiro, José Cardoso Pires — então exilado e professor de Literatura em Londres — desabafa: “O Ary é um tipo capaz de todas as concessões”. O letrista de “Menina” não é indiferente às críticas. Em resposta ao suplemento literário do Diário de Lisboa, confirma-se publicitário desde os 18 anos e reitera o seu direito de ser simultaneamente de esquerda e rico, explicando que a ideologia “está-se nas tintas para vida privada”. À Flama denuncia a “comadrice literária da pseudo-esquerda lisboeta” e remata, do alto da sua barriga: “Não é propriamente um suplemento literário que me tenta esmagar. É um certo clã intelectual cá do sítio. Esmagar-me, a mim, que sou muito grande e muito pesado, de todos os pontos de vista!? É impossível, não conseguirão”.
O poeta intervém diariamente na imprensa quando se aproxima o Festival da Canção de 1971, e emerge atrelado a um grupo de detratores que sublinham uma mesma palavra: concessão. “A poesia que o Ary dos Santos faz de propósito para canções é um conjunto de coisas sem nenhum interesse, com grandes concessões”, analisa Adriano Correia de Oliveira à Mundo da Canção, denunciando as preocupações sociais do poeta como “vagas”. “Não passam de baboseiras bem feitas tecnicamente. Um bom arquiteto de palavras, mas, no fundo, não diz nada. Este género de canções significa um comprometimento com o que está estabelecido”.
No entanto, este suposto comprometimento com o que está estabelecido — leia-se a ditadura — não se ajusta aos factos, a começar pela filiação do poeta no clandestino Partido Comunista Português, filiação que se agrava tendo em conta que era homossexual assumido, que segundo as pessoas mais próximas ao poeta, não correspondia aos ideais dogmáticos do PCP. E neste ano de 1971, Ary dos Santos é ainda alvo da censura, com o livro Fotos-grafias, em parceria com Nuno Calvet, apreendido pela Direção-Geral de Segurança — a nova nomenclatura da PIDE. Em relação a esta censura, o poeta não se enfurece particularmente, o seu público não frequenta livrarias, está em casa de mãos calejadas, em frente à rádio e ao televisor. “Quem tem dinheiro para comprar um livro de poesia que custa trinta, quarenta, cinquenta ou sessenta escudos? Ninguém. Ninguém de entre as pessoas que me interessa. Portanto, a canção é uma maneira de pôr a poesia em movimento.”
A morte do “nacional-cançonetismo”
“O ano de 1971 é realmente um ano importantíssimo da história da canção em Portugal”, confirma Fernando Tordo, relembrando que além da omnipresença de Ary dos Santos no Festival RTP da Canção, “é provável até que tenha sido o ano mais importante de todos pela surpresa que causou a idade dos intervenientes”. Aos 22 anos, o compositor Fernando Tordo é um dos favoritos, a par de Paulo de Carvalho, de 24 anos, dois lisboetas e descendentes diretos dos primórdios do rock português que regeneram o certame após uma edição de má memória. “Quando acabou aquele escândalo que foi a ‘Canção de Madrugar’ não ter ganho o Festival em 1970, o José Carlos disse-me, com aquela voz estrondosa: ‘Pindéricos, nunca mais concorro’”, recorda Nuno Nazareth, derrotado na edição de 1970 por uma canção de Nóbrega e Sousa, logo o compositor do dito “nacional-cançonetismo” que deveria ser expurgado violentamente. O crítico de música Tito Lívio recorda que depois do “critério deplorável” de 1970, é de celebrar que hajam “representantes de uma nova canção portuguesa”. “Inicialmente fomos olhados com uma grande desconfiança”, recorda-nos agora Paulo de Carvalho na Livraria Barata, Avenida de Roma, a mesma livraria — e o mesmo bairro — por onde andava há 50 anos. “Depois perceberam que não queríamos matar ninguém.”
Os ensaios do favorito a vencer o Festival RTP da Canção são uma visão desconcertante. O antigo baterista e segunda voz dos Sheiks, Paulo de Carvalho, é a grande contratação da editora Movieplay, mas está de pescoço imobilizado há um mês e canta a medo para não romper o colar vertical. “Eu tocava bateria à noite no Casino do Estoril até às duas da manhã, para as pessoas dançarem, e durante o dia estava a cumprir o serviço militar”, recorda Paulo de Carvalho, soldado 192 003/68 no quartel da Amadora. “Tive um acidente na vinda do Casino, na célebre curva do Mónaco, estava a conduzir o Edmundo Silva, dos Sheiks.”
Casado e com um filho, Paulo de Carvalho fazia pela vida, os conjuntos e a efervescência do movimento ié-ié terminaram, a passagem pelo Thilo’s Combo tinha sido determinante para se profissionalizar como músico, agora era urgente afirmar-se e sustentar uma família. O caldeirão de pop anglo-saxónica e francófona que marcou a geração ié-ié seria determinante para surgir uma nova estirpe de cantor popular português, distante do dito “nacional-cançonetismo”. “Os conjuntos foram a nossa escola num país onde não há escola”, explica Paulo de Carvalho, reforçando que é neste festival exato que esta transição acontece: “Efetivamente as pessoas só repararam em mim depois desse festival”.
A canção “Flor Sem Tempo” é composta por uma nova dupla do Porto. Acabado de regressar da Suíça, o aluno de Economia José Calvário compõe o tema com o amigo da Faculdade de Engenharia, José Sottomayor. Sem saber ler nem escrever, os dois universitários entram nos escritórios da Movieplay e proclamam que têm uma cantiga para o festival. E mais: ou canta Paulo de Carvalho ou não há cantiga para ninguém.
[“Flor Sem Tempo”:]
Paulo de Carvalho era a aposta segura, revelado no festival anterior e vencedor de “Melhor Intérprete Masculino” nos Prémios de Imprensa da Música Ligeira, em 1971. Porém, segundo os especialistas da época, um detalhe o impede de singrar: cantava em inglês. Dizia abertamente, sem vergonhas, que queria ser um cantor internacional. Escreve o Diário de Lisboa: “a receita resultou e o caminho interessará, muito, à Movieplay. Então e nós?”. Então e Portugal, Paulo de Carvalho? “Quem nos entende, senão nós próprios e os brasileiros? E a nossa forma musical, a nossa verdade na matéria não está muito de acordo com o tempo”, defende o cantor à Mundo da Canção, enquanto apresenta o single “Walk On The Grass”, do espanhol Manolo Diaz, que seria o seu primeiro passo para uma ambiciosa internacionalização, para vingar como uma espécie de Steve Winwood da Avenida de Roma.
[“Walk on the Grass”:]
Os arranjos de “Walk On The Grass” são do alemão Thilo Krassman, companheiro de Paulo de Carvalho nos Thilo’s Combo e outro bode expiatório para uma suposta desvirtude da canção de nacionalidade portuguesa — a Flama descreve o ex-professor de acordeão como “um metro e noventa e um centímetros de altura, sorriso de menino, de bom gigante”. A questão do orquestrador não é mero apontamento, mas parte fundamental do espetáculo televisivo da Eurovisão, onde anualmente se respondia à pergunta: o que é a canção portuguesa?
No final do ano, Ary dos Santos acabaria por confessar que acreditava sobretudo em “Cavalo à Solta”. “Para mim foi uma canção muito importante, foi surpreendente para o público que aquele tipo de estrutura melódica e harmónica fosse feita por um miúdo de 22 anos”, lembra-nos o compositor Fernando Tordo, que interpreta a letra de Ary dos Santos mais ambiciosa a concurso, apontando a dois caminhos aparentemente distantes: o sexo — “Cavalo à solta pela margem do teu corpo” — e a denúncia — “Minha laranja amarga e doce/ Minha espada/ Poema feito de dois gumes/ Tudo ou nada”.
[“Cavalo à Solta”:]
Na outra canção de 1971 que Ary escreve para Fernando Tordo, “Canto no Deserto”, a duplicidade do poeta é mais gritante:
“Eu trago uma raiva
Eu trago uma seiva
Que tirei do nada
Trago humildade de poder um dia cantar liberdade”
É Nuno Nazareth que apresenta Ary dos Santos ao jovem Fernando Tordo, que assim como Paulo de Carvalho, é uma cria da gestação do rock português, ex-Deltons e ex-Sheiks, mais para os modos afáveis de Cliff Richards do que para Steve Winwood. Fernando Tordo estava nos escritórios da Valentim de Carvalho a assinar o seu primeiro contrato discográfico em nome próprio quando é desafiado pelo poeta a visitá-lo na Rua do Alecrim, a subir até ao quinto andar e tentar essa coisa bicuda de musicar poemas. “No momento em que descobrimos que as nossas linguagens, uma poética e a outra musical, podiam entrosar de uma maneira muito específica, a partir daí criou-se mais que uma dupla de compositores, criou-se uma parceria”.
A expectativa intensa com as prestações de Paulo de Carvalho e Fernando Tordo demonstrava algo inegável: ocorria uma mudança irreversível na canção ligeira portuguesa. Até o demolidor crítico Mário Castrim, no Diário de Lisboa, cede após uma prestação de Fernando Tordo na RTP, no programa “Curto-Circuito”: “Trata-se de um importante passo em frente quando se pretende fazer da arte de cantar não um modo de morrer, mas uma expressão de vida”. O programa “Curto-Circuito”, produzido por Artur Agostinho, Baptista Rosa e Fernando Lopes, era precisamente uma tentativa de reação a estas mudanças irreversíveis de gosto dos portugueses, e tentava em vão repetir o fenómeno cultural e social do “Zip-Zip”, o programa da RTP que definiu a canção jovem portuguesa no final dos anos 60.
“Além de um certo público na rua a chamar coisas, ainda tínhamos o Mário Castrim”, ironiza Fernando Tordo, confirmando: “A primeira coisa que fazíamos depois de ir cantar à televisão era ficar à espera que saísse o Diário de Lisboa para ler o Mário Castrim”. A crítica acutilante é um incentivo a fazer mais e melhor, a não se deixar dominar pelos brandos costumes do deixa andar — e todavia, ainda havia certos limites, Castrim é processado e condenado em 1971 a pagar uma indemnização considerável ao dramaturgo Luís Francisco Rebelo.
A “Menina” de Beja a caminho da Europa
O único impedimento a esta narrativa da canção portuguesa a virar uma página da sua história, é a campeã de vendas de discos em Portugal decidir interpolar o Festival da Canção. A cantora Tonicha, de Beja, conquista Portugal com ajuda do ávido manager João Viegas, que garante terem vendido 78 mil discos apenas em 1970. A Flama aponta Tonicha como a sucessora de Simone de Oliveira e Madalena Iglésias, duas figuras maiores da canção mal-amada da década anterior, sendo que a origem da cantora é sintomática da canção ligeira: começa no Centro de Preparação de Artistas da Rádio da Emissora Nacional e destaca-se no Festival da Figueira da Foz. No entanto, em 1971, Tonicha renega publicamente o passado, as canções perecíveis, as parcerias com José Cid e o folclore, e assina pela Zip-Zip, a editora mais arrojada do mercado.
A editora liderada por Carlos Cruz, Fialho Gouveia e Raul Solnado era composta por três amigos que se desdobravam como apresentadores, empresários e produtores independentes, que vendiam programas de sucesso inegável às emissoras, primeiro na RTP, e depois no Rádio Clube Português e ma Renascença com “Tempo Zip”. A editora Zip-Zip delineia uma estratégia infalível para o Festival da Canção: uma nova canção da dupla vencedora de 1969 — Ary dos Santos/Nuno Nazareth — e o orquestrador espanhol Augusto Algueró. “Qual era o interesse do Augusto Algueró, não era por ser um belo orquestrador, que nós cá também tínhamos”, revela Nuno Nazareth, detalhando uma das muitas estratégias de Carlos Cruz. “O interesse principal é que o Augusto Algueró e o pai eram donos da Canciones del Mundo, a principal publisher da língua espanhola”. O plano era vender a “Menina” na Europa e na América Latina, com a sua melodia influenciada pela música andina, a letra engenhosa de Ary, e a mise-en-scène de Tonicha que aprende com o ator João Perry. “Fui a artista com mais discos vendidos em Portugal nos últimos dois anos, mas o dinheiro e aplauso fácil não são tudo”, desabafa a cantora ao Diário de Lisboa, confessando a emoção com este seu momento de rutura nas mãos do poeta Ary dos Santos: “Chego a chorar quando ensaio”.
“Eu posso admitir. Não era realmente a melhor canção do festival, tanto a música como o poema de ‘Cavalo À Solta’ eram melhores”, confessa-nos o compositor de “Menina”, concluindo: “Foi uma grande injustiça”. No Século Ilustrado, o escritor Manuel de Lima diz que “um compositor de opereta do século XIX teria vergonha de assinar uma dessas orquestras”. Fernando Cordeiro chama-lhe mesmo “rodriguinhos harmónicos” e sentencia: “Feita por medida, pré-fabricada com todas as piscadelas de olho necessárias de uma orquestração sensacionalista de Augusto Algueró; mistura de malhão, reminiscências de música eslava e espanhola, ‘Menina’ está ao nível do nacional-cançonetismo.”
A água ferve enquanto se aproximava o grande dia, não havia tempo para meia-medidas, paninhos quentes, a bem ou a mal, Tonicha não representava Portugal em 1971, Tonicha não podia ganhar. “A substituição onde está? Os jovens substituem para ocupar o mesmo lugar. Ora o que seria preciso era riscar do mapa aquele lugar”, considera o crítico de música do República, apontando Tonicha como uma mera Simone mais jovem. Hoje, 50 anos depois, Paulo de Carvalho acredita que qualquer uma das canções dos três primeiros — Tonicha, Paulo e Fernando Tordo — seria uma justa vencedora, e que são um espelho exato das reflexões que fizeram daquele ano um marco para a música popular portuguesa. Se esta dedução não era evidente sequer ao próprio Paulo de Carvalho em 1971, deve-se à declaração de guerra que entrincheirou a indústria discográfica.
“Há negócio investido e negócio é negócio”
“Em 71 começou uma certa guerra de editoras que levou a que as cantigas perdessem importância para outros fatores”, justifica Paulo de Carvalho. “Havia qualquer coisa na estrutura da canção em Portugal que estava a avançar para um campo de indústria. É no ano de 71 que pela primeira vez as editoras lutam a sério para vencer em festival”, concorda Fernando Tordo, então representado pela Philips. “Se recordarmos o que era a sociedade portuguesa nesse tempo, podemos dizer que é uma pedrada no charco. É um tempo de grande mobilização de músicos, compositores e editoras discográficas.”
A Movieplay declara guerra aberta à Zip-Zip, sendo que a editora de Carlos Cruz e Fialho Gouveia tinha cinco canções a concurso, uma probabilidade de vitória mais que favorável. Fialho Gouveia corre o país a estampar cartazes de Tonicha — fotografada por Augusto Cabrita — por cima dos cartazes de Paulo de Carvalho. António Rolo Duarte, da Movieplay, organiza um concurso para adivinhar a flor que Paulo de Carvalho levará ao peito em palco e joga uma cartada mediática: anuncia que Paulo de Carvalho vai ser contratado por uma editora dos EUA e envia a suposta promessa de contrato às redações. Carlos Cruz responde de imediato: “Pronto, tudo já está definido. Nós, a Valentim de Carvalho e a Philips apenas vamos concorrer para o segundo lugar. Enfim, já é alguma coisa…”.
As campanhas publicitárias são pela primeira vez pensadas ao detalhe, uma mudança de paradigma que prossegue nos festivais seguintes e transforma consequentemente a nossa indústria musical. Nuno Gomes dos Santos, dos Intróito, que desportivamente dá uma perninha a Tonicha no coro de “Menina”, não se resigna à mudança dos tempos: “Acho altamente lamentável, deplorável e enoja-me profundamente a guerra de etiquetas que existiu neste festival”.
“Já anteriormente tínhamos exposto as nossas grandes reservas quanto à validade da votação dos vários júris regionais. Composto de uma forma desordenada e heterogénea, formados por pessoas não a par das modernas tendências da música ligeira. Júris naturalmente influenciados perante a enorme campanha de publicidade movida antecipadamente pelas várias empresas discográficas concorrentes. Porque é preciso dizer-se que este Grande Prémio TV foi como nenhum outro uma guerra de marca, de etiquetas: as afirmações, as entrevistas, as capas das revistas, o exibicionismo, o ganhar custe-o-que-custe porque há negócio investido e negócio é negócio. E o Grande Prémio TV é negócio, e dos grandes.” (Mundo da Canção, 1971)
Além de Tonicha, a Zip-Zip apresenta as bandas Intróito e EFE 5. São os Intróito de Nuno Gomes dos Santos que interpretaram a letra de Ary dos Santos, “Palavras Abertas”, e os EFE 5 de Carlos Alberto Moniz cantam “Rosa, Roseira”, de Fernando Potier e Fernando Vieira. A dupla Fernando Potier/Fernando Vieira repete-se em “Anda Ver o Sol” com mais uma nova aposta da editora em 1971: Lenita Gentil. A cantora da Marinha Grande, recém-casada com Humberto Fernandes, ex-defesa do Benfica, faz um trajeto similar a Tonicha e procura uma regeneração musical na Zip-Zip. A última aposta desta editora é Hugo Maia de Loureiro, que interpretou “Canção de Madrugar” no festival anterior e agora apresenta “Crónica de um Dia”, uma composição própria com Fernando Guerra.
[“Crónica de um Dia”:]
A Philips concorre em paralelo com Fernando Tordo e Duarte Mendes, este último mais um intérprete repetente do festival, que apresenta “Adolescente”, uma canção do arquiteto José Luís Tinoco e da escritora Ivete Centeno. No alto do seu pedestal, a Valentim de Carvalho não se dignava, por enquanto, a chafurdar no lamaçal da concorrência. A editora aposta na beleza de Daphne, de olhos verdes — “o rosto mais lindo que jamais conheceram nossos festivais” — e cinge-se à promoção tradicional de fotografias pelas revistas e jornais. Daphne é Clara Stock de Aguiar, mulher e parceira de Nuno Rodrigues, que compõe uma toada medieval que seria característica do músico da Banda do Casaco: “Verde Pino”.
O apresentador Henrique Gomes explica aos milhões de portugueses que o intuito é “estimular o aparecimento de novas canções”. Ana Maria Lucas, Miss Portugal 1970, entretanto noiva de Fernando Tordo, é o braço-direito de Henrique Gomes, e mais uma peça deste xadrez televisivo comandado por Hernandes Peyroteo. O campo de ação é limitado pelas câmaras estanques, o espetáculo não é pensado para os 1200 lugares do Teatro Tivoli à pinha, mas para quem está em casa, reunido em família ou com os amigos no café da esquina. “São coisas que podem ou não fazer uma carreira, quem viveu não esquece, era um país inteiro a ver televisão. Infelizmente, o festival nunca mais teve essa importância”, diz-nos Fernando Tordo, acrescentando: “Temos que ver que era também um canal único, um país triste, acabrunhado, que fazia do festival o seu momento”.
Está um frio de rachar, as ruas estão desertas e o país acabrunhado floresce durante uma noite, a debater a quente cada prestação. Carlos do Carmo, Maria Bethânia, a espanhola Karina e o inglês Malcolm Roberts compõem o certame. Na hora dos concorrentes começa a correria do salve-se-quem-puder. “Há sempre um bocadinho de loucura”, sublinha o compositor de “Cavalo à Solta”, que assentou um smoking como poucos em 1971 e conseguiu uma prestação memorável. “Se a pessoa tomar consciência que vai ficar à frente de milhões de pessoas a cantar, o mais provável é que não entrasse no festival”. Que o diga Daphne, que treme como varas verdes, ou o herói Paulo de Carvalho, que retira o colar cervical antes de subir ao palco e canta excecionalmente, com a face ainda a cicatrizar, os pedaços de vidro alojados pelo corpo, e ao peito, qual premonição, um cravo.
Os nervos são incontroláveis, Tonicha está de costas para o quadro que aponta os votos do júri, medindo pelas palmas e apupos a sua prestação — de “vestido de musselina bege até aos pés” e “sapatos de cetim”. No calor da ocasião, a cantora não se apercebeu que subiu ao palco e transfigurou-se numa intérprete de corpo inteiro, de braços abertos diante de Portugal não era mais Tonicha, era a “Menina”, a rosa brava rosa povo, da brisa do alto da serra. A incontestável margem vitoriosa de Tonicha devia-se também aos milhares de discos de folclore que vendia, à bagagem de centenas de concertos por Portugal adentro, dos bailes às romarias, pelo seu conhecimento real da canção do campo.
[“Menina”:]
A vitória de Tonicha contra todas as expectativas aponta ao novo — Ary dos Santos/Nuno Nazareth — e ao antigo — folclore, canção ligeira e lirismo português — apresentando um retrato do país pautado pelo êxodo rural. No dia seguinte, Mário Castrim critica diretamente esta aproximação descarada ao país rural: “A tática na construção do poema também não foi à toa: consciente das características dos meios de onde provinha o grosso da votação, Ary dos Santos orientou a sua linguagem para o ruralismo.” A crítica musical portuguesa, e os devotos de uma renovação e politização musical, sempre teriam dificuldades em conviver pacificamente com a canção popular fora dos centros urbanos, seja em 1971 ou em 2021. Após o júri regional eleger “Menina” por unanimidade, o Diário de Lisboa é sucinto: “À frente, merecidamente, José Carlos Ary dos Santos”.
Gente de Dublin
Em 1971, o sentimento patriótico não era abundante, ninguém parecia especialmente incomodado sequer quando Rui Patrício, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, anuncia que Portugal vai retirar-se da UNESCO. O vexame que continuava presente era a penúltima posição de “Desfolhada” na Eurovisão, em 1969, um ultraje nacional a tal ponto que a comitiva portuguesa se recusa a participar na competição do ano seguinte. Seria agora a desforra portuguesa, no Teatro Gaiety em Dublin, perante 500 milhões de espectadores? César Faustino adverte: “A enorme desilusão de ‘Desfolhada’ deve realisticamente ser aqui evocada, como precaução contra nova explosão de histerismos grotescos, com laivos de drama nacional”. Exige-se prudência, ainda mais pelo destacado favoritismo da inglesa Clodagh Rodgers, sempre acompanhada por guarda-costas para evitar qualquer ato de sabotagem do exército clandestino irlandês.
A ameaça terrorista é tangível, reúne-se um protesto em volta do centenário Teatro Gaiety, reclama-se do gasto de 2500 contos na Eurovisão e um conjunto de camponeses renega com cartazes a entrada da Irlanda no Mercado Comum Europeu. Começa o rumor que vai explodir uma bomba a qualquer momento. O repórter em Dublin, Hernâni Santos, desvaloriza o histerismo, descreve por telex a “ameaça de trovoada que não chegou a dar chuva” e prefere destacar que “Tonicha tem feito furor por ter trazido para a Irlanda as atualizadíssimas hot-pants”. É de hot-pants — a peça de roupa mais emblemática de 1971 — que a cantora ensaia com o maestro Jorge Costa Pinto, depois de a RTP não permitir que Augusto Algueró — um espanhol — defenda Portugal na Eurovisão. A secção rítmica, aponta Hernâni Santos, também não está com a força necessária. “Tínhamos realmente hipótese de ficar entre os primeiros três lugares”, desabafa Nuno Nazareth, que teve de se inscrever como músico para poder viajar na comitiva da RTP. “Claro que a partir do momento que o Augusto não pode orquestrar, a música retrai-se”.
No dia 3 de abril, às 21h45, a Eurovisão é acompanhada por 29 países em simultâneo. Tonicha é o 15.º nome a subir ao palco, com um vestido cor de rosa esverdeado criado por Ana Maravilhas, a preto e branco para os portugueses, ainda restringidos a uma televisão — e país — de outra época. A intérprete de “Menina” aposta na intensidade, numa versão musculada sem as subtilezas da prestação no Tivoli, com garantias que ao menos Portugal sairia de cabeça erguida desta mal-afortunada competição. Em 1971, a tradicional votação por telefone — “Hello Portugal” — é substituída pelo voto presencial e os locutores Luís Filipe Costa e Pedro Albergaria representam Portugal. O resultado é inesperado, vence Severine do Mónaco com uma canção bem vitaminada, “Un banc, un arbre, une rue”, e a espanhola Karina consegue o segundo lugar. Tonicha está a meio da tabela, a melhor prestação portuguesa até então, uma espécie de vitória para este país esquecido, orgulhosamente só, entregue a uma ditadura sem fim. O motivo de celebração confirma-se em Lisboa na receção apoteótica a Tonicha, acompanhada pelo sorridente Ary dos Santos. Escreve a Flama: “Uma receção como talvez só o Benfica dos dias grandes possa recordar”.
[Tonicha na Eurovisão em 1971:]
No final de 1971, a Zip-Zip anuncia que vendeu 20 mil discos de “Menina”, que é regravada por todo lado e por todos, desde Shegundo Galarza a Maria da Fé. E Tonicha faz o seu próprio anúncio, um inesperado volte-face na guerra das editoras: vai sair da Zip-Zip e assinar pela Movieplay, depois de um ano em que ainda subiu ao palco em Split, Atenas e Rio de Janeiro. Nuno Gomes dos Santos, dos Intróito, também renega a Zip-Zip por falta de apoio: “Tudo o que nos prometeram nunca foi cumprido”. Carlos Cruz, Fialho Gouveia e Raul Solnado não respondem às incitações, cumpriram o seu projeto, venceram o Festival e elevaram Portugal para o patamar de uma indústria musical profissional, com uma certa dose de malandragem que, como a história prova, é a alquimia necessária para editar discos.
“Foi um ano muito importante”, sublinha Paulo de Carvalho, que depois do festival lança um memorável álbum de estreia pela Movieplay. “Foi talvez com esse disco e essas participações no festival que descobri que queria fazer música, que queria trabalhar no que trabalho até hoje”. O jovem José Calvário, o compositor de “Flor Sem Tempo”, também decide que quer trabalhar na música e continua a compor para Paulo de Carvalho, incluindo uma canção que mais tarde seria revolucionária: “E Depois do Adeus”.
E quanto ao poeta de “Menina”, a vítima da alta burguesia portuguesa permanece como uma força motora da poesia em canção, sempre assombrado pelos prenúncios de morte. Segundo as pessoas próximas a Ary dos Santos — que morreu a 18 de janeiro de 1984, aos 46 anos — os traumas são o motivo primordial para um estado progressivo de alcoolismo, ou como nos resume Nuno Nazareth: “o suicídio não assumido”. “Ser compositor é uma coisa muito complexa, é uma vida inteira à procura da excelência, e como a excelência não se alcança, vivemos e morremos com este sonho fantástico que é tentar fazer cada vez melhor”, reflete sabiamente Fernando Tordo.
José Carlos Pereira Ary dos Santos viveu e morreu com este sonho fantástico da música popular portuguesa, de fazer cada vez melhor, de mudar irreversivelmente os poemas da canção, até aos dias de hoje. “Num único ponto que se deu um passo: os poemas são melhores, francamente melhores. Isto deve-se em boa parte ao premiado Ary dos Santos”, conclui resignado o editorial da Mundo da Canção, com o seguinte apontamento final, que nunca devemos esquecer: “Foi ele quem trouxe poesia para a canção”.