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Pensões de reforma: cinco mitos e a realidade

A Segurança Social é sustentável? Os mais novos vão pagar as pensões? Estamos a pôr velhos contra novos? Descontamos para não receber? E a CGA? 5 mitos desconstruídos num ensaio de Luís Teles Morais.

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Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.

É mesmo para assustar e anunciar o que aí vem: comecemos com dois gráficos simples. O rácio de dependência económica (figura 1) dos idosos relaciona o número de pessoas com 65 ou mais anos profissionalmente “inativas” com o número de trabalhadores (entre os 15 e os 74 anos). O significado estonteante destes números é mais fácil de apreender tomando o inverso: em 2016 existiam cerca de 2,3 trabalhadores por cada inativo. Em 2050 existirão 1,4.

Quando falamos de sustentabilidade da Segurança Social, são as pensões contributivas – as que resultam de direitos acumulados em função dos “descontos” associados aos rendimentos do trabalho – que importam. Desde logo, porque são a maior parte. O peso destas pensões no PIB manter-se-á, de acordo com as projeções existentes, praticamente igual ao nível atual.

Esta evolução é geralmente apontada, tanto pelas instituições internacionais como pelo Governo, como demonstrativa da sustentabilidade de longo prazo do sistema público de pensões. Ainda assim, no médio prazo (2020-40), os gastos com pensões subirão acima dos 12% do PIB (figura 2). Mas nada de catastrófico, dir-se-á: os gastos com pensões estão controlados.

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O leitor atento, porém, só poderá estar neste momento algo confuso: vamos ter quase o dobro dos pensionistas e os gastos com pensões não mudam? À primeira vista, poder-se-ia dizer que algo não bate certo. A resposta está no funcionamento dos sistemas públicos de pensões, como veremos de seguida, num ensaio em que se desconstruirão vários mitos sobre este tema. Se quiser fixar desde já um número, que seja este: 2040, a década em que os desequilíbrios destes sistemas serão potencialmente dramáticos.

O que é um sistema de pensões? Que critérios para o avaliar?

Em Portugal, a Segurança Social abrange o conjunto dos trabalhadores, proporcionando proteção relativamente a diversos riscos sociais: desde logo, velhice, mas também doença, desemprego, parentalidade, invalidez e morte. No caso em análise, o sistema de pensões de velhice, o objetivo é assegurar ao cidadão um rendimento adequado na reforma, após o fim da carreira profissional.

Simplificando, o sistema de Segurança Social incorpora dois “subsistemas” muito diferentes: um contributivo e um não contributivo. O primeiro, abordado na presente análise, pretende garantir aos cidadãos um rendimento na reforma, que substitua os rendimentos do trabalho, ligado ao esforço realizado ao longo da carreira profissional para pagar contribuições sociais obrigatórias. O segundo está associado a pensões de acesso universal (embora dependente, em regra, de condição de recursos) financiadas pelas receitas gerais do Estado. Este último tem objetivos redistributivos e de combate à pobreza e exclusão social na velhice, distintos do primeiro.

Finalmente, existe ainda a Caixa Geral de Aposentações (CGA), sistema de previdência social para os servidores do Estado. Este assegura pensões de velhice, invalidez e morte. Fundada em 1929, foi encerrada a novos subscritores em 2005, ano a partir do qual os novos funcionários públicos passaram a ser integrados no regime geral da Segurança Social.

Quer no caso da Segurança Social, quer no caso da CGA, o sistema funciona em repartição: as contribuições dos trabalhadores num determinado servem para o pagamento imediato das pensões dos reformados. Em troca, os subscritores adquirem o direito a receber pensões futuras, em função do seu histórico contributivo. Ou seja, não se tratam de regimes de capitalização, em que as contribuições constituem o fundo de poupança-reforma a que depois se recorre para pagar as pensões no futuro. Sublinhe-se que este tipo de sistema não seria necessariamente mais robusto em face dos problemas de fraco crescimento e envelhecimento da população (sobre isto ver mais aqui, p. 14).

A avaliação e debate sobre os sistemas de pensões, e de potenciais medidas para a sua alteração, assume dimensões várias: o seu desenho institucional; os seus resultados em termos de proteção na velhice; o seu equilíbrio financeiro, medido por projeções actuariais; a sua influência no desempenho macroeconómico do país. Existe algum consenso no debate sobre este tema no sentido de distinguir três critérios fundamentais para apreciar um sistema.

Primeiro, a sustentabilidade (financeira), a capacidade de o sistema se manter equilibrado (“solvente”) ao longo do tempo (nos planos financeiro e demográfico), tendo em conta a sua relação com o desempenho macroeconómico. Segundo, a equidade, relacionada com um critério (subjetivo) de “justiça”, seja no plano distributivo, isto é, entre pessoas de uma mesma geração com diferentes níveis de rendimento e riqueza, seja no plano intergeracional, ou seja, entre pessoas de diferentes gerações. Terceiro, a adequação, a capacidade de o sistema gerar níveis aceitáveis (cuja definição é também subjetiva) de proteção na velhice, ou seja, pensões de montante suficientemente elevado de modo a impedir que o fim da vida laboral não implique uma perda substancial de rendimentos.

Existem conflitos entre estes critérios: por exemplo, uma medida que torne as pensões mais adequadas pode torná-las também menos sustentáveis. Mas existem também complementaridades: um sistema menos sustentável é, em princípio, menos justo entre gerações.

Existem conflitos entre estes critérios: por exemplo, uma medida que torne as pensões mais adequadas pode torná-las também menos sustentáveis. Mas existem também complementaridades: um sistema menos sustentável é, em princípio, menos justo entre gerações.

Mito 1? “A Segurança Social é sustentável”: (des)equilíbrios entre pensões e contribuições no Ageing Report

Regularmente, são publicadas avaliações institucionais sobre o sistema de pensões em Portugal: uma pelo Ministério da Segurança Social, atualizada todos os anos no Relatório do Orçamento do Estado; e outra, a cada três anos, no âmbito do Grupo de Trabalho para o Envelhecimento, coordenado pela Comissão Europeia, que apresenta um pouco mais de detalhe. Focar-nos-emos, aqui, nos mais recentes resultados dessas avaliações.

À primeira vista, as projeções do Ageing Report parecem reconfortantes. O aspeto das projeções até melhorou face à edição anterior (2015). Reforça-se a ideia de um sistema equilibrado no curto e no (muito) longo prazo. Porém, com um desequilíbrio relevante no médio prazo, associado às transições demográfica e estrutural do sistema (com a progressiva integração das novas regras, mais restritivas). Esta seria a conclusão a retirar da figura 3.

As contribuições sociais, neste quadro, chegam confortavelmente para pagar as pensões de reforma no início e no fim do período de projeção, por outro. Todavia, nas décadas de ’30 e ’40 surge um problema: as contribuições são insuficientes para cobrir a totalidade das pensões (e não estamos a contar com outras prestações: pensões de invalidez, subsídio de desemprego, etc.). Isto por si é um problema sério, a necessitar de resolução, mas não parece catastrófico. Em abono da verdade, as projeções do próprio Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS) apontam há bastante tempo para uma previsão de défices do sistema previdencial naquele período, que fariam esgotar o fundo de reserva da Segurança Social algures na década de ’40. O próprio Ministro Vieira da Silva tem admitido que existirá essa dificuldade a médio prazo.

Um olhar mais atento para o Ageing Report revela, todavia, que o cenário projetado é bastante mais gravoso do que parecia à primeira vista. No exercício seguinte, tentaremos perceber qual é a projeção implícita no cenário do Relatório sobre o Envelhecimento para o conjunto dos sistemas públicos contributivos.

A figura 4 apresenta (em % do PIB) as prestações e contribuições totais da Caixa Geral de Aposentações e da parte contributiva da Segurança Social. Exclui-se, pois, as pensões não contributivas.

O gráfico apresenta também as projeções das contribuições sociais para ambos os subsistemas, que deverão cobrir todos estes riscos. Aqui a distinção entre as duas linhas (azul e laranja) é de interesse. Por um lado, a linha azul representa aquilo que o Ageing Report designa como “contribuições sociais” (o que aparecia na figura 1). Na verdade, esta série incorpora a dotação do Orçamento do Estado para cobertura do défice da Caixa Geral de Aposentações. Sublinhe-se que esta dotação vai para além das contribuições normais das entidades empregadoras públicas. Por outro lado, a linha laranja representa as contribuições sociais que de facto são projetadas no Ageing Report, expurgadas da referida dotação. Aqui sim inclui-se apenas contribuições a cargo dos trabalhadores e dos empregadores para a Segurança Social; e quotizações dos trabalhadores e contribuições das entidades empregadoras (públicas) para a CGA.

Afinal, o produto das contribuições e quotizações não chega, nem de perto, para financiar as prestações sociais contributivas – nem pensões, muito menos as outras. No pior momento, em 2040, temos uma situação em que as contribuições só chegam para pouco mais de metade das prestações. Só em 2070 o sistema volta a equilibrar-se.

Por que razão a diferença é de interesse? Porque a diferença entre a linha laranja e a linha azul, que chega a 3% do PIB em 2040, é um volume substancial de fundos públicos adicionais, que já se prevê transferir do Orçamento do Estado para a CGA. E, vista assim, a situação é dramática. O mesmo cenário, as mesmas projeções, mas com um olhar mais atento para o significado das variáveis revela, afinal, uma situação realmente catastrófica. Afinal, o produto das contribuições e quotizações não chega, nem de perto, para financiar as prestações sociais contributivas – nem pensões, muito menos as outras. No pior momento, em 2040, temos uma situação em que as contribuições só chegam para pouco mais de metade das prestações. Só em 2070 o sistema volta a equilibrar-se.

Ainda sobre o mito 1: afinal, não é “sustentável”. Porquê?

Como veremos em seguida, o desequilíbrio deriva em boa parte do défice permanente e substancial da Caixa Geral de Aposentações (CGA). Num exercício limitado pelos dados disponíveis, procurou-se desagregar as projeções entre os dois subsistemas. Vamos por partes, olhando primeiro para a CGA e depois para a Segurança Social.

A CGA é o subsistema mais pequeno. Representa menos de metade do total das pensões e a tendência é decrescente. A desproporção é maior quando olhamos para a dimensão dos universos de pensionistas: atualmente a Segurança Social paga cerca de 2 milhões de pensões de velhice, enquanto a CGA paga cerca de 500 mil pensões de aposentação. Isto reflete pensões muito mais elevadas na CGA, associadas a salários (e níveis de qualificação) também bastante superiores. As contribuições e quotizações, que asseguram atualmente cerca de metade das pensões, caem de forma acelerada no período de projeção. Concomitantemente, cresce a dotação do Orçamento do Estado necessária para pagar as prestações. A partir de meados da década de ’40 a quase totalidade das pensões da CGA é suportada pelo OE.

Desta forma, praticamente metade do défice previsto não deriva da secular tendência demográfica, mas sim do peso e desequilíbrio estrutural deste subsistema. Sublinhe-se que a Caixa Geral de Aposentações, tendo sido “fechada” em 2005, não beneficia das contribuições de novos entrantes no sistema. A existência de um défice crescente é, por isso, natural, à medida em que os atuais subscritores passam à aposentação sem que sejam substituídos por novos.

Todavia, este argumento não é suficiente para explicar tamanha discrepância. O fecho do sistema significa que as contribuições para a Segurança Social estão “inflacionadas” – no sentido em que há uma nova subpopulação de contribuintes que passou a acrescer a esse sistema a partir de 2005, sem um grupo correspondente de pensionistas. Ou seja, deveria criar uma “folga” na Segurança Social, de que não há grandes sinais visíveis. Dito de outra forma, o desequilíbrio na Segurança Social seria maior se tivesse de ser esse subsistema a compensar a CGA pelas contribuições em falta (e das quais beneficia).

Olhando agora à Segurança Social (sistema previdencial-repartição), a situação é também, de acordo com as projeções, mais preocupante do que parecia à primeira vista. O ‘gap’ entre as contribuições e o conjunto das prestações contributivas – incluindo não só as pensões de velhice (azul) mas também as outras pensões (cinzento) e os subsídios “profissionais” – apenas se dissipa no final do período de projeção, em 2070. Até lá, a situação varia entre o difícil já em 2020 (com um défice de cerca de 1,5% do PIB) e o dramático em 2040 (mais de 4% do PIB em falta).

No caso da Segurança Social, porém, temos algumas razões para crer que estas projeções se apresentam demasiado pessimistas. Desde logo, não é crível que o sistema passe do atual excedente a um claro défice em 2020. Olhemos para as projeções do MTSSS (figura 7), que apontam para uma situação bastante mais confortável.

No cenário do MTSSS, as contribuições mantêm-se praticamente constantes, em termos percentuais do PIB, ao longo do período de projeção. Isto implica que a redução da proporção da população ativa é compensada pelo aumento da produtividade. Esta é uma primeira diferença importante face ao cenário do Ageing Report, onde embora as contribuições sejam até superiores no final do período, caem mais no período crítico. Por outro lado, no cenário do Ministério, temos as pensões a pesar substancialmente menos no PIB – ao longo de todo o período em análise. A tendência é semelhante: aqui temos um aumento de 31% de 2020 para 2040, enquanto esse mesmo aumento é de 34% no cenário do Ageing Report. Mas o nível é inferior. Não nos foi possível reconciliar as duas projeções, à data de fecho deste ensaio.

Em qualquer caso, o cenário continua a ser preocupante, já que ainda antes de 2030 o sistema entra em défice, o qual persiste até ao final do período de projeção. O fundo de reserva da Segurança Social esgota-se na década de ’40. Mas a dimensão do desequilíbrio é totalmente diferente, para melhor.

Em qualquer caso, o cenário continua a ser preocupante, já que ainda antes de 2030 o sistema entra em défice, o qual persiste até ao final do período de projeção. O fundo de reserva da Segurança Social esgota-se na década de ’40.

Olhando para o futuro, a prudência aconselharia a esperar, em 2050, um “verdadeiro” défice algures entre este 1% e aqueles dramáticos 4%. Seja como for, a conclusão geral é a mesma de há muitos anos: no muito longo prazo, o sistema está equilibrado. Até lá, está desequilibrado.

Mito 2? “Os mais novos não vão ter pensão”: adequação e generosidade no Ageing Report

As atuais projeções sugerem que o sistema proporcionará, em termos médios, um rendimento adequado na reforma. A média da taxa de substituição bruta, que representa o valor da pensão em termos do último salário, evolui dos 68% em 2016 para um mínimo de 56% em 2060. Uma queda importante, mas que não sugere que os atuais subscritores vão ficar desprotegidos na reforma.

O valor para a taxa de substituição líquida de impostos não é projetado – que é, em termos de adequação, o indicador mais fiel –, mas é sempre superior (melhor) do que o valor bruto. A razão é muito simples: enquanto o salário (bruto) é sujeito a IRS e a contribuições sociais, as pensões são apenas sujeitas a IRS. Tomando como referência as estimativas da OCDE, a taxa de substituição líquida em 2060 seria de 76% (+20 p.p.). Dificilmente se pode descrever uma pensão de três quartos do salário como irrisória.

Cai por terra, deste modo, a ideia de que “os mais novos não vão ter pensão”. Claro que se, no futuro, os impostos ou contribuições forem aumentados para resolver o défice, a pensão líquida será menor – ainda assim, os dados não apontam, de todo, para que os jovens de hoje fiquem sem pensão de reforma.

A taxa de substituição líquida é o indicador mais utilizado para avaliar a adequação das pensões. Porém, para medir a generosidade do sistema, será porventura mais interessante observar o chamado rácio de benefício. Este relaciona a pensão média com o salário médio pago na economia no mesmo ano. Ou seja, compara-se o rendimento dos pensionistas com o dos trabalhadores contemporâneos, e não com o próprio rendimento ao longo da vida ativa.

A queda de quase 20 p.p. do rácio de benefício projetada no Ageing Report significa que as pensões serão, neste sentido, bastante menores. Isto refletirá em parte o facto de os pensionistas futuros terem recebido salários inferiores nas suas carreiras (pois estes vão crescendo ao longo do período de projeção). Noutra parte, porém, reflete também a progressiva concretização das regras menos generosas na formação da pensão. Em qualquer caso, é a peça que faltava no puzzle com que iniciámos este ensaio. Os mais novos terão pensão, mas em média mais baixa (e mais tardia, dado o aumento progressivo da idade da reforma).

Cai por terra, deste modo, a ideia de que “os mais novos não vão ter pensão”. Claro que se, no futuro, os impostos ou contribuições forem aumentados para resolver o défice, a pensão líquida será menor – ainda assim, os dados não apontam, de todo, para que os jovens de hoje fiquem sem pensão de reforma.

Mito 3? “Estamos a colocar velhos contra novos”

A discussão em termos de justiça não se pode ficar pela mera contabilização de custos e benefícios agregados, sob pena de se tornar, ela própria, “injusta”. Importa, antes de mais, estabelecer alguns conceitos importantes para a discussão. Desde logo, o que é justiça intergeracional. Quando formulamos princípios de justiça entre a situação de diferentes gerações, incluindo não-contemporâneas, não estamos a falar de “novos” ou “velhos”. A “unidade de conta” apropriada é a coorte – o conjunto das pessoas nascidas num determinado período (ano, década, etc.) – considerando-se os custos e benefícios ao longo de todo o respetivo ciclo de vida.

Em síntese, não estamos a colocar “velhos” contra “novos”, mas sim a comparar “nascidos em 1940”, “nascidos em 1990”, “nascidos em 2030”, etc. – considerando as contribuições e impostos pagos enquanto “novos” e os benefícios recebidos enquanto “velhos”.

Mas o que é, afinal, uma pensão justa? A discussão sobre a justiça ou não dos benefícios atribuídos não é de resolução imediata e depende de muitos fatores. Porém, existe um critério com que a generalidade das pessoas se identifica para definir uma pensão “justa” – embora talvez um termo melhor seja, por exemplo, “consistente”. É a lógica implícita no “direito à pensão” com base na ideia de uma “vida inteira de descontos”: a pensão justa, mais propriamente atuarialmente justa, é aquela que decorre do acumulado dos descontos.

Mais precisamente: é a pensão que iguala o valor atualizado dos descontos ao longo da carreira, ao valor atualizado das pensões que se espera receber ao longo da reforma (tendo em conta a esperança média de vida). Expliquemos o que isto significa de forma mais intuitiva. Se não existisse Segurança Social ou CGA, e um pensionista médio, em vez de “descontado” para estes sistemas, tivesse guardado o mesmo montante numa conta poupança e trocasse, na reforma, esse montante por uma pensão mensal vitalícia, quanto receberia?

Embora útil como referência, este conceito enquanto referencial de justiça é insuficiente e enganador. Isto porque, na realidade, esta “justiça” atuarial só faz realmente sentido ex ante e não ex post, na medida em que são atribuídas em função de estimativas probabilísticas para a esperança de vida (e outros parâmetros). Se a estimativa pecar por defeito, então a pensão concedida não era “injusta”, mas sim foi atribuída com base em pressupostos errados. Da mesma forma, o nível de contribuições exigido no passado tinha em conta pressupostos demográficos e até macroeconómicos que, a posteriori, se revelariam otimistas. A forma “justa” de resolver o problema que daí decorre tem de ter esta distinção em conta.

Num contexto de envelhecimento e redução da população ativa, mesmo um sistema composto apenas de pensões actuarialmente justas não seria autossustentável. 

Além disso, é preciso também evitar interpretações abusivas do significado agregado desta “justiça atuarial”: num sistema em repartição, “justiça atuarial” não implica “sustentabilidade”. Num contexto de envelhecimento e redução da população ativa, mesmo um sistema composto apenas de pensões actuarialmente justas não seria autossustentável. Finalmente, obviamente “justiça atuarial” não implica “justiça distributiva”, e um sistema pode incluir mecanismos de redistribuição que penalizem as pensões mais elevadas (e vice-versa), afastando-se também assim da consistência atuarial.

Mito 4? “O fruto dos descontos de uma vida de trabalho”

É um dogma inabalável da política sobre estas matérias: não se pode tocar nas pensões, pois são o fruto de uma vida inteira de “descontos” realizados na vida laboral. Todavia, faltam factos – números – que deem substância a esta “verdade” universal.

A ausência de dados detalhados sobre a Segurança Social, um problema antigo para que têm alertado tanto académicos como instituições internacionais e nacionais (e.g. Conselho das Finanças Públicas e UTAO) impede-nos de confirmar ou infirmar este dogma. Só com microdados de carreiras contributivas e pensões se poderia realizar estudos que permitam identificar grupos beneficiados e prejudicados e tornar a tomada de decisão o mais “justa” possível. Não tem sido possível aceder a tais dados, pelo que se apresenta aqui o resultado de algumas simulações rudimentares, a partir de carreiras contributivas fictícias.

O raciocínio é simples. Consideramos uma carreira fictícia que gera um “capital contributivo”: (a) durante a vida ativa vai acumulando com as contribuições feitas ao longo do tempo (considerando a evolução das respetivas taxas); (b) a partir da reforma esse capital vai-se gastando com a pensão de velhice (considerando as regras de formação de pensões atualmente em vigor); (c) depois da morte é paga uma pensão de sobrevivência a um(a) herdeiro(a). Se o “capital” remanescente no final de tudo isto for positivo, corresponde a um imposto implícito: uma parte do acumulado das contribuições não é devolvido pelo sistema ao contribuinte na reforma. Se for negativo, corresponde a um subsídio implícito: o acumulado das contribuições foi insuficiente para cobrir o total das prestações que lhe são depois pagas.

A carreira considera um valor próximo da média da esperança média de vida na idade da reforma (20 anos, para simplificar). Sendo este um valor médio, os pensionistas que viverem menos tempo são (mais) prejudicados face a esta projeção, e os que viverem mais são (mais) beneficiados. Consideraremos que a pensão de sobrevivência é recebida pelo herdeiro(a) relevante durante 7 anos.

O Dr. José Exemplar, técnico superior nascido em 1958, iniciou a sua carreira em 1985 a auferir 1.200 euros (a preços de hoje) brutos, e reformar-se-á em 2025, trabalhando 41 anos. Entre promoções e aumentos, o salário do Dr. José Exemplar cresce e crescerá 1% em termos reais todos os anos (além de ser compensado pela perda de poder de compra a cada ano via inflação) até ao final da carreira. Atualmente, ganha 1.683 euros mensais, e no final da carreira ganhará 1.787 euros. Este exemplo é especialmente relevante tendo em conta que o Dr. José Exemplar receberá a sua pensão nas décadas de ’30 e ’40, precisamente aquelas em que, como vimos, o desequilíbrio do sistema é mais crítico.

De acordo com a fórmula de cálculo em vigor atualmente, a pensão a atribuir ao Dr. José em 2025 tem o valor de 1.388 euros mensais (77,2% do último salário). Esta fórmula resulta de uma combinação das regras antigas (mais generosas) e das recentes (menos generosas). Além disso, após a sua morte, o seu cônjuge sobrevivo terá direito a uma pensão no valor de 60% desse montante (833 euros).

Na figura 9, apresenta-se o resultado da simulação sobre o “capital contributivo” associado aos descontos do Dr. José – a linha azul. O “capital” só seria suficiente para pagar a pensão a que o Dr. José tem direito durante 15 anos. O restante, bem como a totalidade da pensão de sobrevivência, já não seria coberto pelo resultado dos descontos feitos pelo Dr. José (e pelo seu “empregador”). A linha laranja representa um cenário alternativo: qual seria a pensão consistente com os descontos do Dr. José (ou seja, que levasse o “capital” a zero no final do período)? A resposta é 1021 euros, uma taxa de substituição (bruta!) bastante mais reduzida, de 57,1%.

A discrepância entre os descontos e a pensão, sendo substancial, não é dramática. Uma redução desta pensão que reduzisse a diferença para metade, por exemplo, seria de 180 euros brutos. Um grande corte, mas dificilmente se poderia considerar “confisco”, nem deixaria o pensionista na pobreza. 

Neste exemplo simples, a discrepância entre os descontos e a pensão, sendo substancial, não é dramática. Uma redução desta pensão que reduzisse a diferença para metade, por exemplo, seria de 180 euros brutos. Um grande corte, mas dificilmente se poderia considerar “confisco”, nem deixaria o pensionista na pobreza. Pela negativa: este exemplo diz respeito a um indivíduo hipotético que se reformará apenas em 2025, já sendo bastante afetado pelas regras mais recentes. Se mesmo assim existe um ‘gap’ destes, o que se poderia encontrar num indivíduo reformado 20 anos antes, em que o cálculo da pensão terá sido essencialmente baseado nas remunerações mais recentes?

Mito 5? “O Estado é que não fez os descontos para a Caixa Geral de Aposentações”

Os problemas de equidade têm sido colocados também num plano dito “horizontal”. Ou seja, sobre a diferença entre a Segurança Social e a Caixa Geral de Aposentações, mais precisamente, quanto à possibilidade de dois pensionistas com carreiras semelhantes beneficiarem de condições diferentes na reforma.

Aqui, interessa-nos mais a contribuição da CGA para o desequilíbrio intergeracional, na medida em que muito do esforço que será necessário pedir às gerações mais recentes decorre do défice deste subsistema. Seguindo o critério anterior da consistência contributiva das pensões, procuraremos apresentar alguns elementos que permitam avaliar sobre a “justiça atuarial” das pensões na CGA.

Reformados reunidos à entrada da sede da Caixa Geral de Aposentações

MÁRIO CRUZ/LUSA

Voltemos ao Dr. José Exemplar, mas assumindo agora que, em 1985, teria ingressado na administração pública e, assim, na CGA. Todas as restantes hipóteses mantêm-se.

Apesar das mexidas na CGA, as quotizações “descontadas” do seu recibo de vencimento não variam muito ao longo da vida do Dr. José: de 8% em 1985 passam a 11% em 2011 (e assumimos que não variam no futuro). Porém, a contribuição do Estado varia dramaticamente: só foi criada em 2009, chegando até aos 23,75% de 2014 em diante. Antes disso, ao contrário do que acontecia na Segurança Social, apenas existiam as quotizações dos funcionários (a uma taxa de 8%) e o Estado-empregador não realizava quaisquer contribuições.

De acordo com o simulador disponível no website da Caixa Geral de Aposentações, o Dr. José terá direito, na reforma, a uma pensão no valor de 1549,07 euros. Além disso, de acordo com as regras do regime, o “herdeiro hábil” tem direito a uma pensão de 50% desse valor.

Na figura 10, apresenta-se o resultado de uma simulação simples, com estas hipóteses, sobre o “capital contributivo” associado aos descontos do Dr. José. Este cresce de forma muito mais acelerada a partir de 2009, quando o Estado começou também a “descontar”. Mais acelerada ainda, porém, é a forma como é consumido na reforma. Esse capital só seria suficiente para pagar a pensão a que o Dr. José tem direito durante pouco mais de 10 anos. O restante, e a pensão de sobrevivência, já não seria coberto pelo resultado dos descontos feitos pelo Dr. José e pelo Estado. A diferença para a pensão consistente é, neste caso, chocante: a pensão seria de pouco mais de metade do valor estatutário, apenas 841 euros, correspondentes a uma taxa de substituição de 47% do último salário.

E se o Estado tivesse, de facto, feito os descontos? É o que tentamos examinar na simulação seguinte, na figura 11, assumindo taxas contributivas idênticas às vigentes na Segurança Social. Neste caso, a pensão consistente já seria bastante mais próxima daquela a que o Dr. José tem direito. Esgotaria o capital contributivo apenas dois anos antes da sua morte, uma situação até menos má do que a simulada no caso da Segurança Social.

“O Estado não fez os descontos”. Se os tivesse feito, não seriam suficientes para cobrir a totalidade do valor a pagar, embora as pensões fossem bastante mais consistentes.

Em resumo, segundo este exemplo (que é bastante limitado), as pensões da CGA estão totalmente desfasadas das contribuições realizadas. De facto, “o Estado não fez os descontos”. Se os tivesse feito, não seriam suficientes para cobrir a totalidade do valor a pagar, embora as pensões fossem bastante mais consistentes.

Conclusões: agir antes que seja tarde

O envelhecimento da população tem como origem principal a forte subida da esperança de média de vida, que é obviamente motivo de regozijo. Porém, há muito que foi identificada a forte pressão que o envelhecimento coloca sobre as economias avançadas. É um erro pensar que se trata apenas um problema de sustentabilidade das finanças públicas. Mas é, de facto, no plano orçamental que a pressão se manifesta de forma mais saliente. Não só no que diz respeito às pensões, mas igualmente no âmbito dos cuidados de saúde e continuados.

Não há soluções perfeitas, e as tendências para menores benefícios e maiores custos orçamentais no futuro serão provavelmente inelutáveis. Todavia, e embora o diagnóstico possa ser bastante afinado, o cenário, como vimos, é muito grave. É alarmante que as contribuições não cubram mais de metade das prestações contributivas em 2040. Uma resposta adequada e justa a este desafio exige que as políticas deixem de ser baseadas em dogmas e mitos.

É alarmante que as contribuições não cubram mais de metade das prestações contributivas em 2040. Uma resposta adequada e justa a este desafio exige que as políticas deixem de ser baseadas em dogmas e mitos.

Como nos mostrou o caso fictício do Dr. José Exemplar – que faz parte de uma geração já bem menos beneficiada que as anteriores – a “herança social” implícita no sistema parece ter efeitos redistributivos que, seja no plano intergeracional, seja no plano intrageracional, vão no sentido contrário ao que tipicamente se considerará “justo”. As medidas a tomar para resolver os défices deverão ir no sentido de contrariar estes efeitos, em vez de os agravar. Tal será muito mais difícil se não agirmos agora: primeiro, abrindo definitivamente a “caixa negra” das pensões (realizando simulações semelhantes às acima com dados reais) e, depois, com base em factos, discutindo todos – velhos e novos – o que fazer para resolver, com tempo e previsibilidade para contribuintes e pensionistas, estes desafios estruturais.

Nota do autor: O presente ensaio só foi possível graças aos estímulos que o Institute of Public Policy, a Nova School of Business and Economics e a Fundação Calouste Gulbenkian (no âmbito de dois projetos de investigação) têm prestado ao trabalho realizado sobre estas temáticas, a que o autor permanece grato.

* Economista; assistente Convidado e doutorando na NOVA School of Business and Economics; investigador e membro da direção do Institute of Public Policy

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