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Há não muitos anos os sites e revistas de lifestyle puseram os leitores a pesquisar uns estrangeirismos que, ao ouvido português, não lembravam grande coisa. O motor de busca explicava e as imagens ainda mais esclarecedoras apareciam no separador devido, mas permanecia ainda a dúvida sobre a etimologia das palavras que não se pareciam com nada: bob era o corte de cabelo que acabava na linha do maxilar e lob aquele que deixava o cabelo pelos ombros. As passerelles onde se mostraram as coleções de outono/inverno 2017 ditaram, porém, que os cabelos compridos estão de volta — como se alguma vez nos tivessem deixado.
Um sinónimo falível de mulher
Cabelos sedosos, brilhantes e compridos — pode parecer o início de uma frase publicitária e esse facto já diz muito. É sabido que a publicidade apela aos desejos e se serve da sensualidade e, no campo capilar, se está a falar para uma mulher não há maneira de ser mais universal que usando o cabelo comprido. Peça chave na definição de beleza, o cabelo é desde há muito um instrumento de identificação dos géneros e, embora se possa dizer que é falível, especialmente nos últimos séculos e nas sociedades ocidentais, ainda opera. Joana d’Arc cortou o cabelo para combater porque tanto o cabelo curto como a guerra são propriedades do masculino (e também por questões práticas). Se quisermos uma história que acabe bem — e um exemplo que educou gerações mais recentes — Mulan faz exatamente o mesmo no filme da Disney.
O tema não é de importância menor, e prova-o o facto de São Paulo se ter ocupado da sua reflexão nas cartas aos Coríntios: “Não vos ensina a própria natureza que se um homem tem cabelo comprido é uma vergonha para ele, mas que se uma mulher tem cabelo longo é uma glória para ela?”. Reina em tese a teoria dos opostos, segundo o sociólogo britânico Anthony Synnott: sexos opostos devem ter cabelos opostos. “O cabelo é talvez o nosso mais poderoso símbolo de identidade individual e de grupo — poderoso porque é físico e portanto extremamente pessoal e porque, embora pessoal, é também público em vez de privado. Assim, a comunicação através do cabelo é normalmente voluntária, em vez de imposta ou inata”, escreve no seu artigo “Vergonha e glória: uma sociologia do cabelo”. “É praticamente universal a ideia cultural de que as mulheres têm cabelo mais comprido do que os homens”, acrescenta Kurt Stenn no seu livro Hair: a Human History, publicado no ano passado.
Quando Leandra Medine, a fundadora do blogue Man Repeller, cortou o cabelo há quatro anos, descreveu precisamente a vontade de tomar as rédeas da representação que o cabelo implica. Não o cortou radicalmente, curtinho “como um homem”, mas um pouco acima dos ombros — e bastou. “O cabelo curto permitia-me acreditar que eu estava acima dos estereótipos daquilo que é o feminino arquétipo”, escreveu ao dar-se conta, no ano passado, que afinal o cabelo comprido não estava morto, como tinha vaticinado do seu Eu ingénuo de 23 anos.
Ao longo da história, só excecionalmente o cabelo comprido foi um luxo masculino – um luxo literalmente, já que o cabelo ou as perucas da corte de Luís XIV custavam dinheiro a manter. Uma cabeleira de comprimento considerável permanece, defendem os investigadores, um símbolo socioeconómico: “Para ter um cabelo comprido é preciso ter os meios para tratar dele”, escreve Kurt Stenn. No seu livro o dermatologista entra pela história e pelos significados antropológicos do cabelo, mas também pela sua composição biológica e pelos usos que tem no quotidiano da sociedade de consumo – para além de ser pintado e penteado nas cabeças, é usado no fabrico de bolas de ténis, a NASA experimentou usá-lo para limpar derramamentos de óleo e é, não esqueçamos, condutor de eletricidade.
Esta fibra que o especialista classifica como “uma das mais fascinantes do mundo”, quando longa e bem tratada, teve implícita ao longo dos séculos a ideia de que o seu portador tem meios para a manter, não só pensando nos perfumes e séruns que se lhes aplicavam, mas em toda a ajuda necessária para executar os apanhados complexos desde a antiguidade. Os anos 20 foram a década da libertação, quando a mulher se livrou de muita da parafernália que lhe prendia os movimentos — incluindo o cabelo que, agora pelo maxilar e sem espaço para grandes traças enroladas, podia também ele dançar. Nessa década é o cabelo o maior símbolo da pirueta que as garçonnes dão no seu modo de se apresentarem: de calças, maquilhagem carregada e o cabelo a deixar espreitar a ponta das orelhas, não querem ser “como homens” mas afirmam que há outra forma de ser mulher que não a do típico cabelo longo apanhado.
Desde a Antiguidade Clássica que os cabelos compridos são sinónimo de feminino – os homens que não os cortavam eram considerados efeminados, explica a arqueóloga Elizabeth Bartman. Uma pequena exceção para os filósofos gregos, de barba e cabelo grande, e ainda assim não tão grande como o de Afrodite, a deusa do amor que por vezes se tapava apenas com os seus cabelos, especialmente nas suas apropriações pela pintura do Renascimento, em que aparece de cabelo solto, com movimento, muito lascivo se comparado com o da nobreza europeia, apanhado recatadamente, pronto a soltar-se como uma revelação apenas na intimidade. Soltos só mesmo para a plebe ou para mulheres descontroladas, como as que iam ter com os homens ao Cais das Naus mesmo antes de partirem para a Índia – mulheres “em cabelo”, canta Camões, que na aflição da despedida nem tiveram tempo de o tapar.
Erotismo que penetra pela cabeça
O Dom Casmurro do brasileiro Machado de Assis nunca é citado por causa das suas passagens sobre o cabelo – e isso é uma injustiça. “O trabalho era atrapalhado, às vezes por desazo, outras de propósito para desfazer o feito e refazê-lo. Os dedos roçavam na nuca da pequena ou nas espáduas vestidas de chita, e a sensação era um deleite. Mas, enfim, os cabelos iam acabando, por mais que eu os quisesse intermináveis. Desejei penteá-los por todos os séculos dos séculos, tecer duas tranças que pudessem envolver o infinito por um número inominável de vezes. Se isto vos parecer enfático, desgraçado leitor, é que nunca penteastes uma pequena”, atira Bentinho, ao lembrar-se dos momentos que antecederam o primeiro beijo a Capitu.
Um cenário tão sensual brota do toque numa extensão do corpo, que o sujeito deseja infinita, o mais longa possível, mas que nem sequer é sensível. “O cabelo é, claro, suave à carícia, mas tocar-lhe tem outros efeitos para aquele a quem pertence. Apesar do cabelo não ser sensível em si mesmo, as suas raízes penetram a pele e isso entra em contacto com os nervos sensíveis. Consequentemente, apertar-se o cabelo vai para além do próprio cabelo e das suas raízes, enviando sensações mais profundas que a pele, quase como se a própria carícia tivesse penetrado o corpo, através do cabelo”, escreve o professor de filosofia James Giles no seu livro The Nature of Sexual Desire.
Patsy Kensit concorda. A atriz britânica disse esta semana ao Independent que o momento em que David Bowie lhe penteou os cabelos foi provavelmente o mais erótico da sua vida. Tinha 16 anos e estava apaixonada pelo ídolo que conheceu quando rodavam Absolute Beginners (1986). “Um dia eu estava na sala de maquilhagem, a maquilhadora tinha saído e Bowie entrou. Não disse uma palavra, apenas pegou na escova e começou a escovar-me o cabelo. Provavelmente só deu três escovadelas, mas pareceu-me a experiência mais erótica que alguma vez teria na vida.”
O Alcorão estabelece a forma como homens e mulheres se devem vestir — sem deixar transparecer as formas do corpo — mas ao definir as regras da representação social vai mais longe que isso. É comum a todas as culturas islâmicas que as mulheres não devem mostrar o cabelo em público. A especialista em estudos Islâmicos Teresa de Almeida e Silva explicou ao Observador que o cabelo é considerado uma arma de sedução que vai contra a ideia de modéstia que está descrita no livro sagrado. E assim com a cultura cristã. Ainda São Paulo, na dita carta aos Coríntios, não tinha falado nos gloriosos cabelos femininos, já declarava que eles são para cobrir enquanto se reza ou entrando num templo.
As Igreja Católica foi durante séculos castradora nas imensas possibilidades que os cabelos abrem. “No século XVIII, as comunidades religiosas americanas consideravam que uma jovem com longos cabelos era perigosa e sedutora, mas no final do século XIX, quando o cabelo mais curto começou a torna-se tendência, as mesmas comunidades religiosas consideraram que o cabelo curto era agora o perigoso e sedutor”, explicou Kurt Stenn em entrevista à Modern Salon.
A relação das religiões com os cabelos longos parece ser problemática ainda antes destes profetas. Na Grécia antiga, quem melhor poderia falar disso era Medusa, a górgona que viu o seu cabelo transformado em serpentes depois de ceder aos avanços de Poseidon em pleno templo de Atena, segundo a versão de Ovídio. A deusa da guerra já não andava contente com a beleza da criatura e o castigo foi que os seus cabelos ondulantes tomassem as curvas de répteis. O cabelo como fonte de castigo ou renúncia à vida prova a sua importância quotidiana na apresentação das mulheres – na Índia cortá-lo é um sacrifício aos Deuses e em algumas regiões as mulheres rapam-no ao enviuvarem, como sinal do fim da vida amorosa.
Ele volta a crescer
Quando se falou na “cartada feminina” que Hillary Clinton poderia jogar nas eleições norte-americanas, não se estava a falar do estado capilar da candidata – que aliás foi comentado negativamente quando apareceu no dia seguinte à contagem dos votos com menos maquilhagem e o cabelo por armar. Clinton tem uma vida na política e na pele de uma mulher e sabe os meandros que esta conjugação de fatores implica: “Se eu quiser aparecer num capa basta-me mudar de penteado”, chegou a dizer, como lembrou a Vogue recentemente.
Clinton quererá capas certamente, mas não pelo seu hairstyle, que não tem a importância política de uma Lady Godiva, a aristocrata da idade média que percorreu nua, a cavalo, as ruas de Coventry, na Inglaterra, cobrindo-se apenas com o seu longo cabelo para exigir que o marido baixasse os impostos aos aldeões. No entanto, não pode negligenciar-se o impacto das cabeleiras das figuras políticas atuais. Que o digam Letizia Ortiz quando adotou o bob da moda em 2015 e viu a imprensa internacional dar valor notícia ao facto, ou Kate Middleton que tem as suas ondas em sexto lugar nos looks mais icónicos de sempre, segundo uma votação promovida pela cadeia de lojas Superdrug no final do ano.
Para muitas mulheres ocidentais do século XX, o dia de cortar o cabelo (ainda que os tradicionais dois dedos) é também um drama – provoca ansiedade e uma sensação de perda nas primeiras horas ou dias, quando se correm os dedos pelos fios agora não tão compridos. É uma espécie de momento Sansão em que toda a força e identidade parecem ter abandonado o corpo com o corte do cabelo. Abandona-se a versatilidade do cabelo comprido e resta a pesquisa por truques para o fazer crescer o cabelo mais rápido enquanto se ouvem as mães e avós dizer: “ele volta a crescer”.
Leandra Medine não sentiu perda nenhuma, mas reconhece o conforto que é um cabelo longo. “Comecei a reparar no tipo de raparigas que mantinham o cabelo longo. Eram como o meu antigo Eu: usando a cabeça como um cobertor de segurança, – um sítio onde se esconderem, a antítese do poder.” Passados quatro anos, instalou-se um cansaço e “uma misteriosa sensação de pertença” tomou conta de Leandra ao notar o cabelo um pouco acima dos cotovelos. Se durante tanto tempo o cabelo longo a fazia sentir-se demasiado menina, agora “é como se carregasse uma carrada de segredos lucrativos atrás de mim e que nunca revelarei”.
Os cabelos XXL que envolvem a mulher numa aura onírica, como escreve a Vogue, estão aí, mas quem sabe se serão para ficar, agora que o cabelo curto para a mulher está conquistado. Como lembra Anthony Synnott, enquanto o cabelo de um homem está tradicionalmente sempre na mesma, o de uma mulher tem liberdade criativa e está sempre a mudar.