Índice
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Este é o terceiro de oito artigos sobre a história e nomenclatura do calçado e suas marcas mais conhecidas. Os anteriores podem ser lidos aqui:
- Os primeiros passos: Breve história das marcas de calçado, pt. 1
- Caminhando às arrecuas: Breve história das marcas de calçado, pt. 2
Pé chato, joanetes e outras mazelas
Pontualmente, ouvem-se vozes que denunciam os ínvios caminhos que o calçado tem tomado nos últimos séculos e as disfuncionalidades e problemas de saúde que tal tem gerado – estes fazem parte do cenário mais vasto a que Daniel E. Lieberman, autor de A história do corpo humano: Evolução, saúde e doença (ver Ascensão e queda do macaco todo-o-terreno), designa como as “doenças de abundância, novidade e desuso”, resultantes do crescente conflito entre as características do corpo humano que resultaram de milhões de anos de selecção natural e as condições que esse corpo encontra nas sociedades modernas – assunto também tratado por Vybarr Cregan-Reid em Alteração primata: Como o mundo que criámos nos está a mudar (ver A cadeira e outros grandes inimigos da humanidade). Perante este desacerto, escreve Lieberman no capítulo final da obra citada, a nossa tendência é para tratarmos “os sintomas dessas doenças, porque é mais fácil, mais rentável e mais urgente do que tratar as causas”, mas “ao fazê-lo estamos a perpetuar um ciclo de retroacção pernicioso – a desevolução – entre a cultura e a biologia”.
Os adversários dos sapatos convencionais apontam o uso continuado destes como uma das principais causas da elevada incidência do pé chato (“pes planus”, na terminologia médica) nas sociedades desenvolvidas do nosso tempo – uma em cada três pessoas, em média –, por comparação com as populações actuais que ainda andam descalças durante a maior parte do tempo. Os bebés nascem com pés chatos, mas o exercício irá, em princípio, criar, pouco a pouco, o arco que é essencial para uma caminhada e uma corrida eficientes; porém, uma vez que os sapatos convencionais são rígidos, almofadados e incluem um apoio para o arco do pé, os músculos são menos solicitados a trabalhar e o arco acaba por ficar num estádio incipiente. Numa ironia amarga, muitos sapatos fazem alarde do apoio para o arco que proporcionam – ora, o que acontece realmente é que, ao providenciarem uma pseudo-solução para um problema inexistente, acabam por criar um problema real.
Outro problema ortopédico que pode ser potenciado pelo uso de sapatos convencionais são os joanetes (“hallux valgus”), ou seja o desvio do primeiro dedo (o “dedo grande”) em direcção aos restantes dedos, em vez de estar alinhado com o eixo longitudinal do pé. Embora os joanetes possam ter diversas causas, nomeadamente genéticas, há indícios de que o uso de sapatos pontiagudos e de salto alto contribui para o problema – não será por acaso que os joanetes são mais preponderantes nas mulheres do que nos homens e que estudos em esqueletos da Inglaterra medieval registaram uma elevada incidência de joanetes nos séculos XIV-XV, quando estavam em voga sapatos pontiagudos.
O uso continuado de sapatos que sobrelevam o calcanhar, voga que ganhou imparável ímpeto após a II Guerra Mundial (ver capítulo “Divagação erótica: Saltos altos” em Os primeiros passos: Breve história das marcas de calçado, pt. 1), conduz, entre outras consequências, ao encurtamento do tendão de Aquiles, que desempenha papel fulcral na locomoção, e a uma rigidificação do tornozelo. Os efeitos negativos são mais sérios em quem usa stilettos, mas basta o uso regular, cinco dias por semana, de sapatos com um salto de cinco centímetros para produzir um encurtamento de 13% dos músculos da parte posterior da perna. Quando a utilizadora frequente de stilettos estiver descalça ou usar sapatos rasos, os músculos e tendões encurtados ficarão sob tensão, o que gerará uma sensação de desconforto e a levará a concluir (sem que perceba porquê) que se sente melhor com saltos altos. Ou seja, o salto alto é uma perversão que, uma vez instalada, se torna “imprescindível”.
Não se ficam por aqui os malefícios da elevação do calcanhar: esta introduz um “erro” de postura que a “vítima” tenta, instintivamente, compensar com ajustamentos que irão exercer stress sobre os joelhos, as ancas e as costas. Vários estudos mostram que o uso de sapatos de salto alto obriga a maiores esforços os músculos das regiões cervical e lombar – ou seja, os erros cometidos nos pés repercutem-se pelo corpo acima até ao pescoço.
Há quem proponha pôr fim ao conflito entre cultura e biologia que ensombra a saúde e o conforto do Homo sapiens do século XXI mediante um regresso ao passado, o que passa, no domínio da nutrição, por defender a “dieta paleolítica” e, no domínio da locomoção, por advogar a corrida sem sapatos. Quase todos os movimentos de “regresso ao passado” enfermam de lacunas de conhecimento, de erros de percepção e de um entusiasmo militante que raia o fanatismo, que levam, frequentemente, a que os resultados desta “mudança de vida” não sejam os esperados.
É o caso da voga de correr descalço que emergiu no século XXI nos países desenvolvidos e recebeu forte impulso do best-seller Born to run, lançado em 2009 pelo jornalista e aficionado da corrida Christopher McDougall (não confundir com o álbum homónimo de Bruce Springsteen, cujas correrias se fazem sobre quatro rodas). É certo que foi sem sapatos que o atleta etíope Abebe Bikila venceu a maratona nos Jogos Olímpicos de Roma, em 1960 (e estabeleceu num novo recorde mundial para a prova), mas Bikila tinha larga experiência de correr e caminhar descalço desde a mais tenra idade; outros fundistas – quase sempre africanos – que venceram importantes competições internacionais descalços tinham antecedentes similares.
Já o cidadão ocidental comum que adira à corrida sem sapatos na idade adulta possui pés (e pernas) que foram formados (ou, melhor, deformados) por décadas de uso de calçado convencional, 365 dias por ano e 16 horas por dia, pelo que é muito provável que os seus músculos, tendões e ossos emitam protestos veementes, sob a forma de dores e lesões, até forçar o temerário a regressar aos ténis convencionais.
Regresso à simplicidade
Em meados da primeira década do século XXI, em resposta ao despontar da tomada de consciência da divergência entre a herança biológica do Homo sapiens e o caminho tomado pela civilização, algumas marcas desenvolveram “barefoot shoes”, que visam combinar algumas das (alegadas) vantagens ergonómicas de se correr descalço com um mínimo de protecção contra impacto, abrasão e temperaturas extremas e a aderência acrescida proporcionada por uma sola de borracha. Os “sapatos minimalistas” (termo que é mais rigoroso que o oximórico “barefoot shoes”) caracterizam-se por 1) a sua forma acompanhar o desenho do pé, com uma parte dianteira larga que permite aos dedos espraiarem-se, 2) colocarem o calcanhar no mesmo nível que os dedos, 3) não possuírem suporte de arco nem sola intermédia esponjosa e 4) serem de construção muito flexível e despojada.
São sapatos muito leves (pesam usualmente à volta de 150-250 gramas) mas que muitos acharão terrivelmente desconfortáveis, uma vez que não fazem muito por amortecer o impacto com o solo e atenuar as irregularidades deste, o que levará quem os calça a adiotar uma passada que incide menos sobre o calcanhar e mais sobre as zonas média e dianteira do pé. Não sendo uma experiência tão radical quanto correr e andar descalço, os sapatos minimalistas exigem dos músculos dos pés mais trabalho em troca do acréscimo de liberdade de movimentos, equilíbrio e tactilidade e da postura mais correcta que proporcionam, o que geralmente desagrada a quem durante toda a vida calçou sapatos convencionais.
Há quem leve o minimalismo mais longe e adopte as sandálias conhecidas como huarache, que consistem apenas numa sola fina presa ao pé por atacadores. Estas sandálias, hoje fabricadas em materiais sintéticos pelas marcas de sapatos minimalistas e que pesam à volta de 100 gramas, inspiram-se nas huaraches de couro tradicionalmente usadas pelos índios Tarahumara (também designados Rarámuri), do estado de Chihuahua, no México. Foi quando Christopher McDougall “descobriu” esta tribo e a sua extraordinária aptidão para corridas de longa e muito longa distância por caminhos pedregosos (equivalentes ao “trail running” do atletismo moderno), calçando as desarmantemente singelas huaraches e registando uma incidência de lesões inferior à dos utilizadores de ténis convencionais, que teve uma “iluminação” e se tornou num apóstolo da corrida sem sapatos ou com sapatos reduzidos à mínima expressão.
Mais recentemente, algumas marcas propuseram uma forma ainda mais elementar de calçado: os “shoe socks” (há quem sugira a contracção para “shocks”) ou “peúgas-sapato”, ou seja, uma peúga com a parte inferior revestida por um fina camada de borracha.
O monstro pentadáctilo
Apesar da grande explosão da oferta de calçado minimalista que tem ocorrido nos últimos anos, o modelo mais mediático e mais imediatamente reconhecível continua a ser o FiveFingers, lançado pela marca Vibram em 2006. Este modelo levou o conceito de sapato-luva ao ponto de providenciar compartimentos independentes para cada dedo do pé (o que, naturalmente, requer que se usem peúgas de cinco dedos, que a Vibram também comercializa). A ideia já antes tinha sido aplicada pontualmente em sapatos feitos por medida, mas foi a Vibram a trazê-la pela primeira vez para a produção em massa; o conceito viria a ser emulado – com modesta adesão dos consumidores – por outras marcas de sapatos desportivos, nomeadamente pela Adidas, com o adiPure Trainer de 2012, ainda que este tenha sido apresentado como estando vocacionado para uso em interiores.
Em 2012, a Vibram foi alvo de uma acção judicial interposta por uma utilizadora dos FiveFingers, que acusava a marca de publicidade enganosa, ao afirmar que aquele modelo fortalecia o pé e diminuía a incidência de lesões, sem apresentar comprovativo científico desses efeitos. Não tardou que a esta acção se juntassem 150.000 outros consumidores “defraudados”, a quem a Vibram acabou, dois anos depois, por pagar a soma global de 3.75 milhões de dólares, num acordo extra-judicial; a marca deixou também de proclamar que os FiveFingers traziam benefícios para a saúde.
Este episódio é revelador dos equívocos que rodeiam os pés e o calçado: mesmo que os sapatos minimalistas possam, em certas circunstâncias, fortalecer os pés, melhorar a postura e diminuir a incidência de lesões, seria ingénuo esperar que, se aos 50 anos se começar a calçar sapatos minimalistas durante uma hora por semana, os efeitos nefastos de muitos anos de vida sedentária e sapatos convencionais se irão dissipar ao fim de alguns meses. Na verdade, o resultado mais provável que se obtém quando alguém com pés flácidos e deformados faz uma transição abrupta para calçado minimalista, não são pés robustos e saudáveis, mas sim pés flácidos, deformados e lesionados. A Vibram deveria saber disto melhor do que ninguém e também deveria saber que a publicidade gera expectativas irrealistas nos consumidores, pelo que teria feito melhor em abster-se de fazer promessas que sabia que os seus sapatos não poderiam cumprir.
Não é claro se o desfecho desta acção judicial terá prejudicado as vendas dos FiveFingers, até porque o maior inimigo destes sempre foi, e será, a sua “estética”: quem os use para correr terá apenas que enfrentar olhares de desaprovação, sorrisos escarninhos e meneios de cabeça condescendentes, mas quem ouse levá-los para casamentos, baptizados, velórios, funerais, cerimónias de formatura, entrevistas de emprego ou almoços de negócios terá a vida social/profissional irremediavelmente arruinada.
“Descalça as tuas sandálias!”
A admissão em igrejas e outros espaços de culto está, implicitamente, condicionada ao decoro no vestir, e algumas igrejas até afixam na porta de entrada uma lista do vestuário considerado inapropriado. As regras quanto ao calçado não costumam ser explicitadas, mas pés descalços estão fora de questão, havaianas certamente não serão bem-vindas e até haverá quem franza o cenho a sandálias, apesar de Jesus, apóstolos, profetas e outras figuras bíblicas, bem como santos e mártires serem invariavelmente representados na pintura religiosa descalços ou com sandálias (mas não com havaianas). Entrar num templo com Vibram FiveFingers, dará provavelmente direito a expulsão e excomunhão e há que admitir que tal sapato parece obra do mafarrico e inspira tanta desconfiança quanto um casco fendido.
A magna e muito debatida questão do (eventual afastamento) da Igreja dos ensinamentos de Cristo excede largamente o escopo deste artigo, mas é útil reflectir sobre o afastamento entre Cristo e a presente sociedade ocidental, de raiz cristã, no que respeita a escolhas de calçado. A Abadia de Prüm, na Alemanha, pretende ter algo a dizer sobre o assunto, uma vez que reclama possuir as sandálias de Cristo, que terão sido ofertadas à abadia pelo papa Zacarias (papado: 741-752), uma doação confirmada por Estêvão II (papado: 752-757). Todavia, a ciência – que tende a desempenhar o papel de desmancha-prazeres em matérias de fé – diz-nos que os bocados ressequidos de couro exibidos em Prüm são antes fragmentos de uns requintados chinelos do período merovíngio (séculos V-VIII).
As “sandálias bíblicas” hoje populares em Israel (onde são conhecidas também como “sandálias Tanakh”) não são de grande ajuda para elucidar o enigma do que calçaria Cristo, pois embora se alegue que estão em uso desde tempos bíblicos e gozem de especial apreço entre os sionistas, a sua modernidade é evidente – na verdade, são contemporâneas da emergência do “movimento dos kibbutz”, na década de 1930.
O que a arqueologia e a história nos podem dizer é que, no início do I milénio e nos séculos em torno, a maioria dos habitantes da Palestina andaria descalça ou usaria singelas sandálias de couro, similares à que foi encontrado em Masada e datada de 73 d.C. e que está hoje exposta no Museu de Israel, em Jerusalém, e que, vendo bem, pouco diferem das huaraches dos Tarahumara.
Na Bíblia há um razoável número de referências a pés e sandálias e há episódios que versam os cuidados com os pés, o que é compreensível num tempo e num lugar em que, com excepção dos altos dignitários e dos soldados de cavalaria, toda a gente se deslocaria sobre eles. Em João 13 narra-se, com minúcia, como, antes da Última Ceia, Jesus fez questão de lavar e secar os pés dos seus discípulos, apesar da oposição inicial de Pedro; o episódio foi amplamente tratado na pintura religiosa, especialmente por Tintoretto, que fez dele o tema de (pelo menos) seis quadros (e talvez faça de Tintoretto um fetichista de pés).
Os pés de Jesus são, por sua vez, alvo de cuidados num episódio (ou mais) que tem lugar na casa de Simão, em Betânia, quando uma mulher os unge com perfume. Não há acordo entre os exegetas bíblicos quanto ao número de ocasiões em que os pés de Jesus foram ungidos por uma mulher, uma vez que as versões dos quatro evangelistas apresentam divergências assinaláveis e, para agravar a confusão em torno deste(s) episódios(s), num sermão proferido em 591 o papa Gregório I, quiçá num momento de distracção, associou a prostituta arrependida (não identificada) que lava os pés de Jesus e os enxuga com o seu próprio cabelo, em Lucas 7: 36-50, a Maria Madalena, fazendo com que esta tenha passado a figurar na mitologia cristã como prostituta arrependida.
Nos relatos de Mateus, Marcos e João, é explicitado que o perfume empregue na unção era assaz dispendioso, o que levou alguns discípulos a protestar pelo desperdício de um produto que poderia ser convertido numa boa maquia que poderia ser distribuída pelos pobres, mas Jesus repreendeu-os, instando-os a deixar que a mulher levasse a cabo a sua tarefa e dizendo-lhes “Por que molestais esta mulher? Pois praticou uma boa ação para comigo. Porquanto os pobres sempre os tendes convosco; a mim, porém, nem sempre me tendes.” (Mateus 26). É o único momento nos relatos sobre a vida de Jesus em que este se desvia de um comportamento pautado pela frugalidade e ascetismo.
A Igreja fundada sobre os seus ensinamentos foi progressivamente desviando-se destes princípios austeros, atingindo por vezes uma opulência tão flagrante que desencadeou uma reacção contrária, levando ao surgimento de ordens (e sub-ordens) religiosas que advogavam um regresso à simplicidade. Isto passou, nalguns casos, pela rejeição de calçado, inspirada em Mateus 10:10, em que Cristo impõe aos seus discípulos que, quando viajem a espalhar a sua doutrina, não levem consigo dinheiro, alforje, roupa extra, bordão ou sandálias, e em Êxodo 3:5, em que Deus ordena a Moisés “Descalça as tuas sandálias, porque o lugar em que estás é terra santa”. Após casos isolados de religiosos que descartaram os sapatos, como São Francisco de Assis, a primeira ordem a interditar formalmente o uso de calçado foram as Carmelitas Descalças, fundadas em 1662 por São João da Cruz e Santa Teresa de Ávila.
Com o correr do tempo, as Carmelitas Descalças, tal como outras “ordens descalças” (como os Capuchinhos), deixaram de seguir regras tão rigorosas e reinterpretaram o conceito de “descalço” como rejeição de sapatos fechados e elegantes, passando a usar alpargatas e sandálias (nomeadamente as populares Birkenstock), que nas estações e climas frios podem ser complementadas com peúgas.
Conclui-se daqui que o “regresso à simplicidade original” das “ordens descalças” acabou por ser um fiasco do ponto de vista podiátrico, pois redundou nos pecados da sola rígida e do calcanhar sobrelevado que têm assombrado a humanidade nos últimos séculos.
Hoje, o vínculo entre pés descalços e religião cristã circunscreve-se aos peregrinos que, pretendendo aumentar a penosidade da peregrinação, de forma a realçar a sua devoção, fazem questão de não usar sapatos em caminhadas que podem ter centenas de quilómetros. Uma vez que os pés da maioria deles estão formatados por décadas de clausura em sapatos, a peregrinação degenera, amiúde, num calvário.
Nota hagiográfica
Os santos patronos dos sapateiros são os irmãos Crispim e Crispiniano, que terão vivido no século III d.C. Segundo reza a lenda, nasceram em Roma numa família nobre e foram para a Gália espalhar a palavra de Jesus, o que faziam durante o dia, enquanto à noite fabricavam sapatos para provir à sua subsistência (embora, mui cristãmente, nada cobrassem pelos sapatos que faziam para os pobres).
A conturbada relação entre o Império Romano e o cristianismo atravessava então um período acerbo, que ficou conhecido como as “Perseguições de Diocleciano”, e, para azar de Crispim e Crispiniano, a Gália seria (segundo a hagiografia cristã) então governada por Rictius Varus, que se empenhou a fundo na repressão do cristianismo e a quem as actividades de proselitismo dos dois irmãos não passaram despercebidas. Varus ordenou a sua prisão, em Soissons (ou noutro lugar qualquer, ou em lugar algum, pois não há provas palpáveis de que Crispim, Crispiniano e Rictius Varus tenham sequer existido), e tentou que os irmãos abjurassem da sua fé, empregando para tal requintadas torturas, que se revelaram incapazes de abalar a sua determinação.
Entre as várias versões, mais ou menos cruentas, imaginativas e rocambolescas, sobre a forma como os irmãos acabaram por ser executados pelas autoridades romanas, c. 286-87, há que destacar a que conta que foram esfolados, o que é muito apropriado para santos patronos dos sapateiros, luveiros, seleiros, curtidores e outros ofícios que envolvem o trabalho com couro.
Pode parecer estranho que, nos últimos cinco ou seis séculos, os santos Crispim e Crispiniano não tenham tido a iniciativa de surgir em sonhos aos sapateiros, intimando-os a deixar de fabricar calçado tão punitivo para os pés dos crentes. Mas, uma vez que a religião cristã se alicerça nas noções de pecado, culpa, contrição e expiação e exalta o martírio, é possível que a Igreja aprove a ideia de que os sapatos devem ser um cilício para os pés.