O Grande Divórcio

A música erudita e o público mantêm há décadas relações frias e distantes. Há quem ponha as culpas do afastamento na preguiça e conservadorismo do público, há quem culpe Karlheinz Stockhausen, Iannis Xenakis e Pierre Boulez e outros vanguardistas radicais por produzirem música demasiado complexa e intelectualizada e até de estarem a marimbar-se para o público. Há quem faça recuar o arrefecimento das relações até à Segunda Escola de Viena – Arnold Schoenberg, Alban Berg e Anton Webern – que, há cerca de um século, rejeitou a linguagem tonal, vista como esgotada e cerceadora da criatividade, e desenvolveu a dodecafonia e o serialismo.

Em resultado deste divórcio, tornou-se impensável que o falecimento de um grande compositor do nosso tempo possa causar uma comoção pública similar à que foi desencadeada pela morte de Verdi, cujo funeral de Estado (que teve lugar um mês depois de um discreto funeral privado), congregou 300.000 pessoas, o que faz dele a cerimónia fúnebre mais concorrida na história de Itália.

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Funeral de Verdi, 27 de Fevereiro de 1901

Até a morte de uma figura tão influente como Pierre Boulez, em Janeiro de 2016, terá passado despercebida à maioria das pessoas, embora tenha sido objecto de notas necrológicas nos media – como observou maliciosamente G.K. Chesterton, “o jornalismo consiste em anunciar que Lord Jones morreu a pessoas que nunca souberam que ele estava vivo”. De qualquer modo, as suas facetas de maestro e de polemista eram bem mais conhecidas do que a de compositor (é improvável que um leitor deste texto tenha passado o serão de ontem a degustar Le marteau sans maître). Mas enquanto a morte de Boulez foi noticiada, os outros compositores de renome falecidos em 2016 – Peter Maxwell Davies, Einojuhanni Rautavaara e Pauline Oliveros – não despertaram a atenção dos media generalistas fora dos respectivos países.

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Ao contrário das estrelas pop, cuja extinção provoca ondas de choque nos media e nas redes sociais – o Facebook e o Twitter passaram boa parte de 2016 ataviados com laços de crepe negro, chorando as partidas de Cohen, Bowie, Prince e George Michael – os compositores eruditos já não cativam a atenção das massas nem – o que é mais inquietante – das elites.

Quem são as grandes figuras da música do nosso tempo?

Se no século XIX se perguntasse quem eram os maiores compositores vivos, a lista não coincidiria com o cânone hoje em vigor, mas teria muitos nomes em comum. Se, por exemplo, a questão fosse posta em 1825, poderia faltar Schubert, que só foi reconhecido tardiamente, e poderiam surgir bem colocados compositores que entretanto perderam alguma popularidade, como Spohr e Hummel, ou quase desaparecem do radar, como Clementi ou Reicha, mas estariam lá Beethoven, Donizetti, Bellini, Rossini, Meyerbeer e Weber. E, o que é mais relevante, a resposta não seria muito diferente se se questionassem os melómanos comuns e os “especialistas”.

Se a pergunta sobre quem são os “grandes compositores vivos” fosse feita hoje, os “especialistas” listariam os nomes de Helmut Lachenmann, Wolfgang Rihm, Kaija Saariaho, Sofia Gubaidulina, Thomas Adès, Harrison Birtwistle, Tristan Murail, Unsuk Chin, Magnus Lindberg, Pascal Dusapin, Bruno Mantovani, Jörg Widmann, George Benjamin e Brian Ferneyhough.

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Página da partitura de Désintégrations, de Tristan Murail

Porém, o melómano médio não só não escolheria nenhum deles como não conhece a sua música ou sequer reconhece os seus nomes. Na verdade, o cânone do melómano médio de hoje tem o seu centro de massa no século XIX e admite poucos compositores cujas carreiras se tenham desenvolvido após a II Guerra Mundial. A sua lista de compositores vivos seria encimada por Philip Glass, Steve Reich, Michael Nyman, Arvo Pärt, Max Richter, Wim Mertens e John Adams, que, não por coincidência, pertencem todos à escola minimal-repetitiva (a designação é útil, mesmo que alguns dos compositores nela arrolados rejeitem tal classificação e outros, embora colhendo nela influências, tenham evoluído noutras direcções).

As obras fundadoras do minimalismo surgiram na década de 60, pela mão de quatro compositores nascidos com escasso intervalo entre si: Terry Riley (n. 1935), La Monte Young (n.1935), Reich (n. 1936) e Glass (n. 1937). Porém, Riley e Young nunca conseguiram expandir-se para fora do círculo restrito de especialistas e mesmo os críticos os citam com mais frequência do que os ouvem. Na nova geração de compositores minimais que tem vindo a ganhar notoriedade nos últimos anos, a principal referência é Philip Glass, não Reich e muito menos Riley ou Young. Entre eles estão nomes como Max Richter e Jóhann Jóhannsson e “rockers eruditos” como Bryce Dessner (dos The National) e Jonny Greenwood (dos Radiohead), cujas composições “clássicas” foram editadas pela respeitável Deutsche Grammophon. Os nomes mais aclamados da nova geração minimalista são Nico Muhly, que foi assistente de Glass, e Max Richter, que antes de se lançar a solo fez parte do Piano Circus, um ensemble de pianos criado para tocar obras de Glass, Reich, Pärt e Brian Eno.

Sobre Reich já aqui se escreveu há umas semanas (Steve Reich aos 80: Este disco não está riscado), vejamos como é que o segundo alcançou tão invejável estatuto.

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“O minimalismo acabou em 1974”

Philip Glass nasceu a 31 de Janeiro de 1937 em Baltimore, no seio de uma família judaica (tal como Steve Reich). A mãe de Glass era bibliotecária e o pai era dono de uma loja de discos, o que permitiu que Glass se familiarizasse desde novo com a música erudita. Após ter revelado talentos musicais e intelectuais precoces, entrou aos 15 anos para a Universidade de Chicago, onde estudou matemática e filosofia, e passou uma temporada em Paris, antes de ingressar na prestigiada Juilliard School of Music, em Nova Iorque, onde estudou piano. Por esta altura, Glass começou a rejeitar o serialismo, que se tornara na linguagem “obrigatória” da vanguarda, e centrou as suas preferências em compositores do século XX que se tinham mantido à margem desta corrente, como Aaron Copland, Charles Ives e Virgil Thomson. Não foi por acaso que escolheu prosseguir os estudos musicais em Paris, entre 1964 e 1966, com Nadia Boulanger, que fora professora de Copland e Thomson.

A estadia parisiense colocou-o em contacto com a vanguarda teatral e cinematográfica europeia e levou-o a envolver-se na direcção musical de peças de teatro e a colaborar com Ravi Shankar na composição da banda sonora do filme experimental “Chappaqua”. O encontro com Shankar foi decisivo para a sua evolução como compositor: rejeitou tudo o que escrevera até aí e passou a trabalhar com as estruturas repetitivas da música indiana. Passou uma temporada na Índia em 1966 e de regresso a Nova Iorque, fundou, em 1967-68, o Philip Glass Ensemble, que seria, nos primeiros anos de carreira, o veículo para dar a conhecer as suas composições. Mas as suas primeiras peças, compostas sob a influência da sua experiência indiana e das primeiras obras de Steve Reich, estavam afastadas do gosto do establishment, pelo que, para pagar as contas, Glass foi obrigado a exercer actividades tão pouco musicais como motorista de táxi e canalizador.

Os títulos das suas primeiras peças denunciam, tal como os das peças de Reich, a deliberada frieza e aridez dos processos composicionais: Music in fifths (1969), Music in similar motion (1969), Music with changing parts (1970), Music in twelve parts (1971-74).

[Music in fifths:]

https://youtu.be/-GL3yNFmv0o

No entender de Glass, Music in twelve parts é um ponto de viragem na sua carreira: ele admite que o que compusera até então podia ser classificado como “minimal”, mas que Music in twelve parts representa a súmula e a culminação das suas explorações nesse domínio e rejeita o termo “minimalismo” para o que compôs daí em diante – “o minimalismo acabou em 1974” –, preferindo defini-la como “música com estruturas repetitivas”.

As “etiquetas” e as “escolas” podem ser úteis para quem escreve sobre música, mas são sempre aproximações muito imperfeitas e facilmente podem degenerar em usos abusivos e estereotipados (uma acusação frequentemente feita à crítica musical). Porém, mesmo que tenha havido mudanças no processo composicional de Glass de 1974 em diante, qualquer pessoa que tenha paciência para ouvir as três horas e meia de Music in twelve parts reconhecerá, apesar das proclamações programáticas do compositor, o leque de fórmulas que iriam sustentar a copiosa produção de Glass nas quatro décadas seguintes.

[Versão integral de Music in twelve parts: são três horas e meia de música]

https://youtu.be/50TCDj-g8U8

As três primeiras óperas

Glass deixou o círculo, então restrito, dos devotos do minimalismo e chegou a um público alargado com a estreia em 1976 da ópera Einstein on the beach, desenvolvida em estreita colaboração com Robert Wilson, parceria que viria a produzir outras obras maiores da carreira de Glass. Einstein on the beach contém muitas das características que viriam a marcar a produção operática de Glass: ausência de um enredo no sentido convencional do termo, fragmentação cronológica da ópera (fazendo por vezes coexistir ostensivamente diferentes épocas numa mesma cena), cruzamento de referências culturais, personagens que retomam importantes figuras históricas e reflexões sobre grandes temas da actualidade.

[Excerto de “Einstein on the beach”]

Glass pode ser acusado de tudo menos de falta de ambição: antes de escolher Albert Einstein como personagem central da sua primeira ópera, Glass pensou em Chaplin, Hitler e Gandhi. Gandhi acabaria por ser repescado para a sua segunda ópera, Satyagraha (1980) e a terceira, Akhnaten (1984), teria por tema o faraó egípcio Amenhotep IV (também conhecido pelo seu nome grego, Amenófis IV), que se rebaptizou como Akhenaton e tentou impor ao Egipto o culto monoteísta do deus solar Aton.

Não se tratam porém de óperas históricas no sentido usual do termo: Einstein on the beach não é uma biografia operática de Einstein, mas um conjunto de reflexões desgarradas sobre o mundo tecnológico do final do século XX, usando os lugares-comuns associados à figura de Einstein (a farta cabeleira branca, o bigode farfalhudo, as roupas informais, o hábito de tocar violino) como um débil fio condutor. Na verdade, nas quatro horas e meia de duração da ópera, o nome de Einstein apenas surge duas vezes e tudo é mantido deliberadamente vago e informe. Robert Wilson tratou de esclarecer que “não é preciso prestar atenção às palavras, pois elas não significam nada. Não estou a dar-vos puzzles para que os resolvam, apenas imagens para ouvir”.

Se as palavras que o libretista escreveu não significam nada, a música também não oferece muita substância. Quando tomada em trechos de cinco ou seis minutos, Einstein on the beach pode ser encantatória; mas quando ouvida na íntegra, é entorpecente. Os seus criadores parecem ter estado conscientes disso, pois convidaram o público a entrar e sair da sala quando assim lhe aprouvesse – o que faz de Einstein on the beach menos uma ópera tradicional do que um happening.

[Excerto de Einstein on the beach: “Knee play 2”: as Knee plays são peças que funcionam como uma articulação (daí a analogia com “joelho”) entre diferentes cenas da ópera]

https://youtu.be/RDN7OKRLMUk

Satyagraha (1980) atém-se mais à vida de Gandhi do que Einstein on the beach à de Einstein, mas tem a particularidade de fazer entrar em cena outras personagens históricas – Lev Tolstoy, Rabidranath Tagore e Martin Luther King, em papéis mudos – e de cruzar episódios da vida de Gandhi na África do Sul, no âmbito da luta pela igualdade de direitos, com eventos históricos afins que ocorreram noutras épocas e lugares, nomeadamente uma batalha lendária mencionada no Bhagavad-Ghita, e a luta pelos Direitos Civis nos EUA dos anos 60.

A consideração de Robert Wilson sobre a irrelevância das palavras em Einstein on the beach parece ser também aplicável a Satyagraha, já que o libreto, concebido conjuntamente por Glass e Constance de Jong, é em sânscrito, uma língua morta.

[Excerto de Satyagraha, no Würtembergisches Staatstheater de Stuttgart, quando da estreia da ópera, em 1984]

Mostrando novamente o seu desprezo pelas palavras (ou pelo entendimento que o público delas possa ter), o libreto de Akhnaten (1984) é uma colagem de textos das mais diversas fontes, que são cantados nas línguas originais: assim, além do inglês do narrador, podem ouvir-se trechos em egípcio antigo, acadiano e hebraico antigo. O único momento em toda a ópera em que uma personagem (que não o narrador) canta numa língua não-morta é “Hino ao Sol” do II acto (em inglês).

Tal como nas óperas anteriores, há momentos conseguidos: na cena do funeral de Amenhotep III, o moto continuo glassiano aliado à percussão ritual e ao texto extraído do Livro dos Mortos produzem um efeito empolgante (com afinidades com o neo-primitivismo da Carmina Burana de Carl Orff). Akhnaten, a ópera mais convencional da trilogia que Glass designou como “opera portraits”, tem a seu favor a riqueza tímbrica de uma grande orquestra (ainda que sem violinos), o que é um notável progresso em relação a Einstein on the beach, concebida para os magros efectivos do Philip Glass Ensemble: flautas, saxofones e clarinetes baixo (três de cada) e uma dupla de órgãos eléctricos, cujo timbre tem o condão de tornar ainda mais enervantes as usuais cegarregas glassianas.

[Cena 1 de Akhnaten: funeral de Amenhotep III, o pai de Amenhotep IV]

Música para filmes

Antes da estreia de Akhnaten, Glass deu outro passo decisivo para dilatar o seu público: compôs a banda sonora para Koyaanisqatsi (1982), um filme experimental realizado por Godfrey Reggio e produzido por Francis Ford Coppola. O filme, que articula imagens de paisagens naturais e humanas, não é exactamente um documentário, havendo quem lhe chamasse um “poema sinfónico visual”: não possui enredo explícito, personagens, diálogo ou narração, cabendo à música providenciar o fio condutor. Reggio recorreu sistematicamente à aceleração e desaceleração do tempo, um recurso hoje profusamente usado (quantas vezes a despropósito), mas que, na altura, era inovador.

O termo “koyaanisqatsi” vem da língua dos índios hopi e significa “vida em desequilíbrio” e o filme estabelece um contraste entre a imponência e dignidade das paisagens naturais – quase sempre áridas e rochosas – e a futilidade da agitação humana nas grandes urbes e a desolação e os detritos que a civilização vai deixando atrás de si. Na cena final, um foguetão eleva-se majestosamente no ar para explodir pouco depois, sendo os últimos minutos ocupados com a interminável queda dos destroços em chamas – mesmo sem palavras, a mensagem de Reggio é óbvia.

[Final de Koyaanisqatsi]

A música em incessante pulsação – seja ela lenta ou frenética – de Glass não só é um complemento perfeito das imagens, como é das raras partituras para cinema de Glass que sobrevive razoavelmente sem o filme. O prestígio de Koyaanisqatsi fez com que Glass se tornasse muito solicitado como autor de bandas sonoras: seguiram-se, entre outros, Mishima (1985), de Paul Schrader, The thin blue line (1988) e A brief history of time (1991), de Errol Morris, bem como a sequela de Koyaanisqatsi, Powaqqtasi (1988), que teria ainda um terceiro capítulo em Naqoyqatsi (2002).

[Excerto de Powaqqtasi]

Consagração

Entretanto, no mesmo ano de Koyaanisqatsi a CBS lançou Glassworks, um disco que consolidaria definitivamente a popularidade de Glass, ao apresentar as suas ideias – as mesmas de sempre, claro – em formato compacto, o que lhe permitiu chegar a quem não tinha paciência para uma ópera de quatro horas e meia. 1982 viu também surgir a ópera de câmara multimédia The photographer (1982), baseada na vida do fotógrafo Eadweard Muybridge. Em 1986 saiu mais um disco fulcral para a aceitação de Glass fora dos meios eruditos: Songs from liquid days é uma colecção de seis canções com música de Glass e letras de Laurie Anderson, David Byrne, Paul Simon e Suzanne Vega, que ficam a meio caminho entre a pop e a canção orquestral do Romantismo tardio. Consta que a CBS, que impôs o disco como forma de recuperar parte dos prejuízos incorridos com a gravação de Satyagraha, propôs a Glass que Billy Joel cantasse uma das canções, mas Glass recusou e o nome mais sonante no elenco vocal acabou por ser Linda Ronstadt. Foi uma decisão atilada: Billy Joel era um nome demasiado conotado com música comercial e Glass sempre zelou por manter uma aura arty.

[“Open the kingdom”, de “Songs from liquid days”, com a letra irónica de David Byrne a ser servida por música empolada e estridente, que se diria concebida para servir de banda sonora a uma cerimónia de casamento da família real britânica]

https://youtu.be/U2hlGqS6n0Q

Foi a partir do final da década de 1980 que, beneficiando do prestígio conquistado, a carreira de Glass entrou na fase da produção em massa, para atender as encomendas de obras que começavam a chover de todos os lados.

Na ópera surgiram The making of the representative for Planet 8, com libreto de Doris Lessing, composta em 1985-86 e estreada em 1988, e The voyage, destinada a comemorar os 500 anos da chegada de Colombo ao Novo Mundo, encomendada pela Metropolitan Opera de Nova Iorque, composta em 1990 e estreada em 1992.

[“Mechanical ballet”, de The voyage]

https://youtu.be/csVo-Yt9BzE

Portugal, através da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses também quis ter uma ópera composta pelo compositor da moda. Glass, que acabara de compor The voyage, começou por não manifestar interesse em regressar ao tema das viagens marítimas ibéricas na viragem dos séculos XV-XVI, mas acabou por reconsiderar e, em colaboração com Robert Wilson, compôs em 1991 White raven (O corvo branco), sobre libreto da escritora Luísa Costa Gomes. A ópera estrearia a 26 de Setembro de 1998, no Teatro Camões, em Lisboa, no âmbito da Expo 98.

[Excerto de White raven, numa récita no Teatro Real de Madrid, em 1998, com Ana Paula Russo (Rainha) e Yuri Batukov (Rei)]

Glass regressaria aos romances de ficção científica de Lessing com The marriages between zones 3, 4 and 5 (1997) e faria uma dupla incursão pela vida de grandes astrónomos, com Galileo Galilei (2002) e Kepler (2009). Também reincidiria no tema da Guerra Civil Americana –já tinha composto um acto da ópera colectiva The Civil Wars. A tree is best measured when it is down (1984) – com Appomattox (2007). O romance Waiting for the barbarians, de J.M. Coetzee, deu uma ópera homónima (2005) e a peça de Peter Handke Spuren der Verirrten deu outra, em 2013.

[Excerto de “Spuren der Verirrten”]

Também em 2013 estreou The perfect American, baseada num livro de Peter Stephan Jungk que pretende revelar o lado negro da personalidade de Walt Disney.

[Excerto da estreia de “The perfect American”, no Teatro Real de Madrid: é rara a ópera de Glass que não misture tempos históricos, portanto não é inesperado que Walt Disney contracene com Abraham Lincoln]

Esta produção de óperas pode parecer torrencial, mas é apenas uma parte do que Glass tem composto para o palco, pois ainda há a considerar uma dúzia de obras classificáveis como ópera de câmara, ópera-ballet ou teatro musical, quase sempre conectadas a referências culturais respeitáveis, como Jean Cocteau, Edgar Allan Poe, Franz Kafka ou Jalaluddin Rumi (poeta persa do século XIII).

[Abertura da ópera “La belle et la bête” (1994), a partir do filme homónimo de 1946, de Jean Cocteau]

https://youtu.be/r34abqPim8k

Some-se a isto música de cena para uma vintena de peças e bandas sonoras para dezenas de filmes, tão díspares quanto “Elena” (2011), de Andrey Zviagintsev, e “Quarteto Fantástico” (2015), de Josh Trank. Até realizadores de renome como Martin Scorsese (“Kundun”) e Woody Allen (“Cassandra’s dream”) já usaram os seus serviços. Há que reconhecer que, pela sua pulsação em moto continuo, a música de Glass se presta bem à sonorização de filmes, mas a “marca Glass” tornou-se tão reconhecível que corre o risco de desviar a atenção do espectador familiarizado com o compositor – “olha, isto soa a Philip Glass” – quando o ideal é que nem sequer se dê pela banda sonora.

Um compositor respeitável: Sinfonias, concertos, quartetos de cordas

Glass levou algum tempo até se aventurar nos formatos canónicos da tradição erudita, mas assim que começou não mais foi capaz de parar. A sua primeira sinfonia só surgiu em 1992 e deriva o seu material do álbum Low (1977), de David Bowie, um procedimento inédito no mundo da música sinfónica – e pode acrescentar-se, uma astuta jogada comercial.

[III andamento (Warszawa) da Low Symphony]

Em 1996, Glass reincidiu em Bowie na Sinfonia n.º 4, derivada do álbum Heroes, que seria reciclada, logo nesse ano, para um bailado de Twyla Tharp.

[I andamento (“Heroes”) da Sinfonia n.º 4: numa primeira audição é difícil detectar o original de Bowie e, por outro lado, são mais do que óbvios os truques típicos de Glass]

https://youtu.be/3TZsW99Vw_U

A produção sinfónica tem prosseguido em bom ritmo: o concerto do 80.º aniversário de Glass, no dia 31 de Janeiro de 2017, no Carnegie Hall de Nova Iorque, será abrilhantado pela estreia da Sinfonia n.º 12, complementada pela estreia nova-iorquina de Ifé: Three Youruba songs, compostas em colaboração com Angélique Kidjo (após a experiência de Songs from liquid days, Glass tem vindo a compor canções para artistas pop, como Mick Jagger, Natalie Merchant ou Suzanne Vega; compôs um ciclo de canções sobre textos de Leonard Cohen, intitulado Book of longing).

[Enquanto não chega a Sinfonia n.º 11, eis a n.º 10, de 2011]

https://youtu.be/dorE6fUMPe0

O formato concerto para solista(s) e orquestra não foi negligenciado: há dois para violino, sendo que o n.º1, de 1987, é um dos mais molestos concertos para violino da história, enquanto o n.º2 The American four seasons, de 2009, até tem momentos de alguma originalidade, que acabam por ser atropelados pelos clichés glassianos usuais.

[O Concerto para violino n.º 1 recebeu um selo de respeitabilidade ao ser gravado para a Deutsche Grammophon por músicos do gabarito de Gidon Kremer, Christoph von Dohnányi e a Filarmónica de Viena]

https://youtu.be/9ySGfGr7JsU

Há ainda dois concertos para violoncelo, um para cravo, um para dois pianos, outro para violino e violoncelo, outro para quarteto de saxofones e ainda um para dois timbales.

Após um quarteto de cordas isolado em 1966, Glass regressou ao formato em 1983 e compôs até à data sete (o mais recente é de 2014).

[VI andamento do Quarteto de cordas n.º 3 Mishima (1985), a partir de material da banda sonora de Mishima, pelo Catalyst Quartet]

Quanto à música para teclas, Glass começou por compor, nos anos 60-70, para o pouco canónico órgão eléctrico, mas passou a preferir o piano a partir da década de 80. E para consolidar a imagem de compositor respeitável e institucional nada melhor do que dois volumes de Études (em francês, no original), surgidos em 1995 e 2012. A estas peças somam-se numerosas transcrições para piano de obras destinadas a outras formações, a maioria realizadas pelo seu director musical, Michael Riesman.

[Mad Rush, pelo próprio compositor. A peça foi composta para uma recepção ao Dalai Lama em Nova Iorque, em 1979, na catedral de St. John the Divine, mas como a agenda do Dalai Lama tinha uma elevada componente de imprevisibilidade, a organização encomendou a Glass uma peça cuja duração pudesse ser prolongada indefinidamente. Foi o próprio Glass que a tocou no órgão da catedral]

Até há pouco, as obras para piano de Glass estavam disponíveis apenas em interpretações pelo próprio compositor ou por pianistas obscuros, a maior parte delas em editoras igualmente obscuras ou na Orange Mountain Music, a editora fundada por Glass para divulgar a sua música. Porém, em 2015 chegou mais um certificado de respeitabilidade: a prestigiada editora Decca lançou um duplo CD com música para piano de Glass por Valentina Lisitsa, uma das maiorias pianistas mundiais e uma autoridade em Liszt e Rachmaninov, embora os excepcionais recursos expressivos de Lisitsa sejam desperdiçados em composições tão mecânicas e rígidas como as de Glass.

[Excerto de um recital por Nicholas Horvath integralmente preenchido com 600 lines (1967), uma das primeiras composições de Glass, concebida para ser executada durante um tempo indeterminado. O excerto neste vídeo contém apenas 45 minutos de uma performance que estendeu por 10 horas e meia]

Há um extenso programa de festividades previstas para assinalar o 80.º aniversário de Glass: além do já mencionado evento no Carnegie Hall, o Barbican Centre de Londres já teve no fim-de-semana anterior um programa 100% Glass, haverá estreias americanas das óperas The perfect American, em Long Beach, e de The Trial, em St. Louis, e o Philip Glass Ensemble toca La belle et la bête em Nova Iorque.