Coro é pintora e arrasta consigo um peso bem escuro: a chamada síndrome do sobrevivente, uma culpa enorme por ter visto morrer a irmã afogada num acidente e ter resistido, continuando sem ela. Quando parte de carro sem avisar ninguém, incontactável, desnorteada e prestes a ficar sem combustível, vê-se obrigada a pedir ajuda. É assim que chega a um território habitado por uma comunidade de mulheres em autogestão, chamado Betânia (nome do lugar bíblico onde Cristo ressuscitou Lázaro). E dali não consegue sair.
Da tragédia familiar de Coro pouco ficamos a saber, apenas o suficiente, e o mesmo é válido para a totalidade do romance de Pilar Adón, apostada em deixar espaços em branco para quem lê colorir a gosto. Numa conversa à margem da 25.ª edição do festival literário Correntes d’Escritas, realizada, na Póvoa de Varzim, entre 17 e 26 de fevereiro, a autora explica como gosta de levar os leitores a criar as suas próprias histórias, a partir das sugestões que deixa.
Adón recusa descrever fisicamente as personagens, fornecer pistas que permitam identificar os lugares, responder a todas as perguntas. Prefere dar a cada pessoa margem de manobra para abrir caminhos na imaginação, tal como ela fazia quando, muito menina, devorava os livros da mãe. Eram títulos impróprios para a sua idade, pouco percebia, mas sem problema: criava os seus mundos imaginários, esses onde ainda hoje se sente confortável — ao ponto de afirmar não ter vida para lá da literatura. Escreve romances, contos e poemas, é editora, tradutora de inglês-castelhano e, acima de tudo, leitora.
De Bestas e Aves, o romance mais recente de Pilar Adón (que vai buscar o título à obra Ulisses, de James Joyce), acaba de ser publicado em Portugal. Pretexto para uma conversa que vai das memórias de infância aos sentimentos de desconforto e desorientação que persistem na idade adulta, contrariando as esperanças imberbes de que, a certa altura, tudo estaria claro e resolvido. Também se fala de redes sociais, de cães e de como as palavras, na vida real, podem ser tão curtas. A propósito, se a autora tivesse de resumir o livro numa palavra, seria “pertença”.
A obra, multipremiada em Espanha, foi descrita, no jornal espanhol El Mundo, como um “pesadelo poético”. Na apresentação a que teve direito no Correntes d’Escritas, a editora Maria do Rosário Pedreira apelidou-o de “desconcertante”, frisando tratar-se de um elogio. Mais tarde, na mesa “Deu-nos abril o gesto e a palavra” (versos de Maria Teresa Horta), em que participava Pilar Adón, o moderador, João Gobern, referiu-se a ela como “a sua última grande descoberta” em matéria de cultura espanhola. E deixou o aviso: “Quem gosta de literatura fácil, daquela que faz festinhas e serve só para nos aconchegar o sono, não leia este livro”. Mais uma vez, era um elogio.
Na apresentação da obra De Bestas e Aves, no festival literário Correntes d’Escritas, disse que, quando começa um livro novo, há duas coisas que tem de saber: a primeira frase e como acaba. Lembra-se do momento em que este livro começou a crescer dentro de si?
Sim, lembro-me perfeitamente, porque, quando termino um romance, começo a escrever o próximo. O romance é como a minha casa. Quando era pequena, os meus pais saíram das suas aldeias, foram para uma cidade muito pequena, nos arredores de Madrid. E nas férias, no Natal, na Páscoa, íamos para a aldeia. Nunca me senti da cidade e também não podia ser associada à aldeia, porque, quando ia para a aldeia, era de Madrid; quando estava em Madrid, pertencia à aldeia. Este sentimento de não pertencer a lado nenhum levou-me a acreditar que o romance é o meu lugar, a minha verdadeira casa. Quando sei que, onde quer que vá, posso continuar a escrever o meu romance, sinto-me segura. Sinto-me tranquila, porque há as minhas personagens, os meus lugares, e posso levá-los. Quando acabei o romance anterior, Las Efímeras [sem tradução em português], comecei imediatamente a escrever De Bestas e Aves. E claro que não foi logo a primeira frase, como está agora. Mas sabia que estava a escrever um novo romance. Estava a tirar notas para esse romance. E lembro-me do dia em que decidi que a primeira frase ia ser “En Betania no había teléfono” [“Em Betânia não havia telefone”].
Foi há quanto tempo?
Há muitos anos. Enquanto estou a escrever um romance, há os poemas, as traduções, o meu trabalho como editora, por isso não me lembro do momento exato. Mas basta verificar em que ano foi publicado o romance anterior, Las Efímeras e, nesse ano [2015], pensar em seis, oito meses antes, quando o entreguei ao meu editor. Foi esse o momento em que comecei a escrever De Bestas e Aves.
O romance é o seu lugar de conforto. E a poesia?
A poesia, para mim, é muito diferente. Comecei a escrever poesia quando já não era jovem. É muito comum começar a escrever versos na adolescência. E nunca, nunca, em adolescente, escrevi poesia. Comecei por escrever contos, depois romance. E, quando estava nos 20 e muitos, comecei a escrever poesia. Pode dizer-me agora mesmo para escrever algo em prosa, e eu escrevo; bom ou mau, escrevo. Mas se me disser “escreva um poema”, digo-lhe que não. Não quero soar muito mística, mas a poesia chega até mim. Não posso ir à procura de um poema. O poema vem. Mas posso ir à procura de um texto em prosa. É o que faço: sento-me e procuro-o, escrevo-o, forço-o. Não posso forçar a poesia, nunca.
A personagem principal é uma pintora que sai de casa sem planos, sem telemóvel, e conduz, simplesmente, até que se perde, está quase sem gasolina e tem de pedir ajuda. Nesse processo, encontra um sítio onde vive uma comunidade de mulheres, do qual não consegue sair. Uma analogia em relação à vida real, para com quem procura um sentido, procura controlar aquilo que o rodeia?
Sim… Quando era mais nova e pensava em mim com 40 ou 50 anos — tenho 52 —, achava que por esta altura já teria tudo resolvido. Está tudo resolvido, sei quem sou, onde pertenço, conheço o lugar onde vivo. Esses eram os meus sonhos. Por esta altura, deveria saber todas estas coisas. Não é verdade. Isso não acontece. Acho que não acontece com ninguém. Ou talvez neste tempo em que vivemos. Porque, quando olho para trás e penso no meu pai, na minha mãe, nos meus avós, acho que eles costumavam estar mais confortáveis nos seus lugares. Sabiam onde pertenciam, qual era a sua tarefa, tinham os seus filhos, as suas casas. Viviam mais tranquilamente. No nosso tempo, toda a gente está a viver em constante desconforto. Estamos frustrados, queremos mais, queremos coisas que não temos e talvez nunca venhamos a ter. Não sei, porque não trabalho diretamente com estas questões, mas talvez a culpa seja das redes sociais. Estamos o tempo todo a ver pessoas que parecem tão felizes, tão ricas, tão bonitas. Tudo é perfeito. E depois olhamo-nos ao espelho e dizemos: meu Deus, não tenho uma casa rodeada de natureza, não sou tão bem sucedida, não tenho aquela vida incrível. Acho que estamos perdidos, em parte por isto, porque estamos o tempo todo a receber… Não apenas a ser atacados por estas imagens — vamos à procura delas, no Instagram, no Facebook. Temos uma certa idade agora, mas vêm aí novas gerações, vêm aí jovens, e estão expostos a coisas a que nunca estivemos.
Vivemos um tempo em que isso não acontecia, sabemos como era a vida antes.
Sim, mas eles não. E estão o tempo todo a receber pornografia, por exemplo. A pornografia é terrível, agora. Pessoas muito, muito jovens estão a receber muita estimulação sexual. É, muitas vezes, violento. E é assim que estão a crescer, acham que é natural, porque o veem o tempo todo nos telemóveis e não têm outra informação além dessa. E a frustração, o estar-se perdido, acho que vão ser cada vez maiores.
Perdido como a personagem principal de De Bestas e Aves, Coro, que tem questões com as quais tem de lidar e não sabe como.
Sim.
O seu entendimento sobre a situação presente, as redes sociais, influenciou, de algum modo, esta história?
Não. De facto, a primeira coisa que Coro faz é deixar o telemóvel. Isto [aponta para o telemóvel em cima da mesa], para mim, é uma nova forma de escravatura. Pensamos que é um instrumento, que isto nos ajuda na vida diária, mas somos escravos disto. Somos tão dependentes que, quando saímos de casa, de manhã, e nos esquecemos do telemóvel, culpamo-nos: oh, meu Deus, deixei o telemóvel em casa, que estúpida, como pude? E a Coro é tão perfecionista e tão controlada. Ela controla tudo, ou pensa que controla tudo. Quando sai sem o telemóvel, meu Deus, é a pior coisa que poderia fazer, porque agora está perdida, não tem Google Maps e não sabe como voltar. E não pode telefonar a ninguém. Quando eu era jovem, havia cabinas telefónicas; agora não. Agora, não podemos telefonar a ninguém se não tivermos isto [aponta para o telemóvel]. Ela está perdida porque se sente culpada pela morte da irmã. Mas sente-se mais perdida porque não tem telemóvel.
“Quero que o leitor crie as suas próprias histórias”
Disse que Betânia é inspirada num lugar que conhece muito bem, mas não revela qual, porque não importa. Esse lugar que criou pode ser em qualquer parte do mundo, não há pistas geográficas, para que os leitores possam preencher os espaços em branco. O próprio livro, a maneira como termina, deixa muito à imaginação de cada um. Ficam questões por responder. Já disse que quer que o leitor participe na história. É o que procura, quando lê?
Exatamente. Comecei a ler quando era muito nova. Assim que consegui juntar duas palavras quis ter livros à minha volta, em casa. Não tínhamos uma biblioteca enorme, porque não havia livros por faixas etárias, como agora, e não havia muito dinheiro para comprar livros. Os meus pais deram-me uma educação muito boa, aprendi inglês muito nova, tudo isso. Mas os livros que li não foram pensados para mim.
Não eram adequados à sua idade?
Não. Era a minha mãe que lia, e ela tinha as suas próprias estantes. Havia livros como Jane Eyre, de Charlotte Brontë, ou O Monte dos Vendavais [de Emily Brontë].
Mulheres escritoras.
Homens também. Por exemplo, Mario Puzo, com O Padrinho… Comecei a ler todas essas coisas e, como não percebia nada, porque era muito, muito nova, levei essas histórias para o meu próprio mundo e fi-las para mim mesma. Creio que essa maneira de ler perdurou, e é assim que agora quero que me leiam — quero que o leitor, ele ou ela, crie as suas próprias histórias com as minhas sugestões. Alguns leitores não querem entrar nesse jogo, preferem que tudo seja bastante claro desde o início, que todas as respostas estejam lá. Mas eu não quero esse tipo de literatura. Gosto da literatura que me faz participar e me toma por uma leitora inteligente. Obviamente, sei como são as minhas personagens. Sei qual a sua aparência, a cor do seu cabelo ou a forma dos seus rostos. Sei isso tudo.
Mas não diz.
Não digo. Quero que elas se expressem pela maneira como agem, a maneira como falam, a maneira como se comportam. Não as descrevo, porque é demasiada informação. E o lugar: se eu lhe disser “Betânia é em Guimarães”, já vai para Guimarães e encontra tudo, não consegue imaginar, não consegue sonhar. E eu prefiro que vá para onde quer que queira [risos].
Ao terminar o livro, surge a pergunta: “Será que perdi alguma coisa?” É essa a intenção? Deixar perguntas no ar?Motivar a releitura?
Sim, sim. Por exemplo, muitos leitores, em clubes de leitura e coisas do género, perguntam-me o que acontece a Coro. Qual é o verdadeiro fim? E, se quiserem mesmo, digo-lhes o que lhe acontece, porque sei. Mas, normalmente, não querem.
Já afirmou que a própria natureza é uma personagem, não só neste livro, mas em todos. Há uma forte presença de animais, desde o início: cães, cabras, a borboleta, os pássaros. A natureza, em geral, por vezes parece opressiva. Mas os cães são um lugar de conforto. Quando Coro chega, é-lhe atribuído um cão, dizem-lhe que devia dar-lhe um nome, ele está sempre lá. Há algo da sua vida pessoal aqui? Era sua intenção dar um companheiro a Coro, algum conforto no meio de toda aquela loucura?
Sim. Sempre tive cães. Desde bebé. Devido a esse lugar a que o meu pai pertencia.
O seu pai era um homem do campo.
Sim.
Era caçador. Disse que não por desporto…
Sim, ele precisava de comer, então, caçava. Era diferente do mundo da minha mãe, que viveu em Madrid assim que pôde, é uma mulher da cidade. Mas o meu pai, qualquer coisa, ia para a aldeia e para o campo. Por exemplo, eu nasci no dia 12 de outubro. Por isso me chamo Pilar — o 12 de outubro, em Espanha, é o dia da Virgen del Pilar.
A sua mãe era religiosa?
Sim, muito. E eu sou católica, também, por causa dela. Nasci naquele dia, que é o dia da Hispanidad, o dia em que Colombo descobriu a América, 12 de outubro; e é o dia em que as pessoas podem voltar a caçar. Então, no dia em que nasci, o meu pai estava a caçar e a minha mãe sozinha, no hospital, a ter-me [risos]. Ele era assim, precisava de estar no campo, e eu admirava-o muito. Esta personagem no romance, Adel, a menina… De alguma maneira, sou como ela, porque passava o tempo todo atrás do meu pai: diz-me isto, diz-me aquilo. Que pássaro é aquele? E esta árvore, como se chama? Ele podia viver no monte e comer qualquer coisa lá. Sabia o que comer e o que não comer. E eu queria aprender, também.
E aprendeu?
Não… Então, sempre tive cães. Sempre, sempre. Cresci com cães e porcos. A minha avó, mãe do meu pai, tinha um porco. E estávamos com o porco até ao dia em que era morto. E tínhamos frangos, galinhas, todo o tipo de animais de quinta. Os cães eram do meu pai. Iam com ele para a caça. Muitas vezes iam e nunca mais voltavam, porque eram atingidos por acidente. Os animais de estimação, agora, são os nossos bebés. Por exemplo, não sou mãe, não tenho crianças. E há muitas pessoas como eu: não temos filhos, mas temos animais de estimação, vestimo-los, levamo-los para a cama e compramos-lhes comida deliciosa. Não era o caso, naquele mundo. Os animais eram ferramentas… Vejo como tudo mudou. Para mim, um cão é uma companhia essencial. Perdi o meu cão, de 18 anos, há semanas. Ainda não acredito. Voltar a casa e ele não estar lá é muito estranho.
Queria que Coro se sentisse menos sozinha?
Sim, claro. É muito generoso da parte das mulheres darem-lhe um cão e dizerem-lhe: dá-lhe um nome. Damos nome a alguma coisa e essa coisa é nossa. Tem algo a ver com a criação. Há esta frase, na Bíblia: “En el principio fue el verbo” [“No princípio era o verbo”]. E a primeira coisa que Deus faz é dar nomes às coisas, dar nomes aos animais, dar nome ao homem e à mulher. Quando damos nome a algo, de alguma maneira, estamos a criar essa coisa também, a fazer com que nos pertença.
“O amor é muito, muito difícil de comunicar”
No livro, há problemas de comunicação. Enquanto Coro está a viver com aquelas mulheres, queixa-se de que parecem não a ouvir, porque diz que quer ir-se embora e elas não lhe dão respostas, pelo menos respostas claras. E, a certa altura, falam sobre as diferenças entre humanos e animais e alguém diz que as palavras não significam nada. Isto é um drama, para si, como escritora? Sente que quer expressar-se da forma mais perfeita e isso nem sempre é possível?
Não é um problema enquanto escritora, mas é um problema enquanto ser humano. Pode parecer estranho e absurdo fazer esta diferenciação, porque, obviamente, um escritor é um ser humano.
O escritor está no controlo.
Sim. É isso.
Mas não consegue controlar como é que as pessoas vão compreender, ou não, o que está a tentar dizer.
Quando entrego o livro ao meu editor, o livro já está noutra esfera, já estou desapegada dele. E então — isto vai soar muito, muito mal —, se as pessoas compreendem ou não…
Não é assim tão importante.
Sim.
E deixa espaços em branco, para as pessoas preencherem.
Isso. A minha maior preocupação é fazer o melhor trabalho que conseguir. Encontrar a palavra adequada, a maneira de fazer sentir angústia, medo ou isolamento, todas essas coisas, não só à minha personagem, mas a si, como leitora. E então posso controlar as palavras, os diálogos. Questões por responder ou respondidas de maneira estranha? A responsabilidade está do seu lado. Tem de decidir como entrar, como encarar, como tratar as personagens. Quão longe quer ir? Isso é com quem lê, não é comigo. Para mim, a comunicação, as palavras, nunca são um problema na literatura…
E na vida real?
Isso é outra questão…
Na apresentação do livro, partilhou uma história pessoal: na pandemia, não podia ver a sua mãe, que tinha 80 anos, e dizia que a amava, ao telefone, mas não era a mesma coisa; até que, no desconfinamento, pôde abraçá-la. Disse algo sobre as palavras, por vezes, não serem suficientes. Sente isso?
Sim, na vida de todos os dias, sobretudo em relação ao amor. Acho que é muito fácil comunicar ódio, raiva, esse tipo de sentimentos. Mas o amor é muito, muito difícil de comunicar, porque mesmo quando estamos todos os dias com a pessoa que amamos, não é fácil dizer, as palavras não chegam. E acontece a mesma coisa quando queremos expressar gratidão. Por exemplo: senti-me muito, muito grata pelos prémios que este livro recebeu. E quando os jornalistas, a propósito do prémio nacional, me telefonaram a perguntar o que tinha a dizer, como me sentia, tudo o que conseguia dizer foi: obrigada, sinto-me muito grata. Não tinha outras palavras, ou outra maneira de expressar a minha gratidão. Talvez os bons sentimentos sejam mais difíceis de expressar por palavras, enquanto os maus são muito fáceis de expressar, porque temos muitos palavrões. E podemos repeti-los. O amor é muito difícil.
Está aqui como escritora, já disse que é perfecionista, gosta de controlar o seu trabalho, quer fazer o melhor que pode. Quando um livro seu é traduzido para outra língua, perde algum controlo. Não pode ter a certeza de que aquelas palavras são exatamente as que quer dizer. Como lida com isso? Consegue desapegar-se? Porque também é tradutora, sabe como é difícil.
Sim. Tento confiar. Por exemplo, este livro foi traduzido para inglês, e eu falo inglês, então pude ler. Mas mesmo sabendo que talvez algumas das palavras não fossem as que eu queria, respeitei o trabalho do tradutor e estava bem. Também sou tradutora, sei que é muito difícil, e sim, consigo desapegar-me. Acho que isso é bom. Passo os dias todos a escrever, ou a traduzir, ou a corrigir provas, e é estranho, mas, de alguma maneira, acho que, desde que controle o meu trabalho e o meu texto, posso controlar o resto. Não posso controlar o que a minha mãe faz, o que o meu irmão faz, o que o meu marido faz. E não posso controlar o mundo. É absurdo, eu sei. E é uma via direta para o sofrimento, porque…
O controlo é uma via direta para o sofrimento?
Pensar que podemos controlar as coisas para lá da literatura é uma armadilha da mente. De alguma forma, decidir que, se controlar o texto, é possível controlar outras coisas na vida. Posso controlar, por exemplo, que as pessoas não se atrasem? Por que é que se atrasam? Se consigo controlar isto, devia poder controlá-las. É absurdo. É estúpido. Mas, de alguma maneira, a mente brinca connosco. E é todos os dias, a todas as horas. Não é de segunda a sexta, é de segunda a domingo. Trabalho todos os dias. Não tenho vida para lá da literatura.
Não sente necessidade de parar?
Não.
Nem precisa de férias?
Preciso, mas as minhas férias estão relacionadas com os livros. Tenho de levar o meu livro para a praia, por exemplo. Se não levar o meu livro, sinto-me mais perdida do que se não levar o telemóvel.
Anda sempre com um livro?
Sempre.
O que está a ler?
Agora estou a ler um livro de Thomas Bernhard. Adoro-o. Tem livros extraordinários.
Se tivesse de resumir De Bestas e Aves numa palavra, qual seria?
Pertença.
Terminou este romance em 2022. Assumo que começou logo outro.
Sim.
Tem planos para o publicar em breve? Pode adiantar algo sobre ele?
Não. Só posso dizer que estou a escrevê-lo, mas, ao mesmo tempo, estou a escrever contos. Vai haver, assim espero, um livro de contos, e depois o romance, e talvez um livro de poesia.
Já tem a primeira frase do romance?
Não. Estou a tirar notas e a escrever parágrafos. Gosto de parágrafos bem escritos, porque posso controlá-los. Mas vai aparecer.