Cristina Pinto Dias foi escolhida por Miguel Pinto Luz para a Secretaria de Estado da Mobilidade, saindo da Autoridade para a Mobilidade e os Transportes (AMT) para onde entrou em 2015 depois de ter passado 18 anos na CP saindo com uma indemnização por acordo de rescisão. A compensação foi polémica e trazida novamente às notícias pela sua entrada no Governo.
Mas nem Miguel Pinto Luz, nem Cristina Pinto Dias veem qualquer problema nesse percurso. O ministro das Infraestruturas e Habitação garante ter sido informado previamente de que a sua secretária de Estado da Mobilidade tinha recebido uma compensação de 80 mil euros por sair da CP pouco tempo antes de ser nomeada para a administração do regulador dos transportes.
Em respostas ao Observador, Miguel Pinto Luz realça que o tema, que remonta a 2015, “foi avaliado do ponto de vista jurídico e verificada a não existência de qualquer ilegalidade”. E garante: “Fui informado”.
Cristina Pinto Dias também diz ao Observador que, no âmbito do processo de nomeação, “houve o habitual escrutínio” a todo o seu percurso profissional “no âmbito das competências” que foi exercendo nos vários cargos públicos que teve “a honra de ocupar, de onde naturalmente surgiram as notícias à época, de 2015, sobre este assunto”.
A notícia da indemnização foi avançada, em outubro de 2015, pelo jornal Público, já depois de Cristina Pinto Dias ter saído da CP, onde desempenhava o cargo de vice-presidente, para ser nomeada para a AMT, o que aconteceu em julho do mesmo ano com o Governo de Pedro Passos Coelho. A agora secretária de Estado da Mobilidade já tinha confirmado à Rádio Renascença a indemnização de 80 mil euros, acrescentando ao Observador: “A compensação em causa refere-se a uma rescisão por mútuo acordo que reflete os 18 anos de antiguidade como técnica superior e a perda do direito a regressar ao meu lugar de origem após desempenho das funções no regulador.”
Cristina Pinto Dias justifica que “usou o direito, enquanto técnica superior com mais de 18 anos de casa, de rescindir por mútuo acordo” o contrato “em igualdade de circunstâncias a centenas de colegas que também o fizeram”. Ao trocar a CP pelo regulador dos transportes, a então gestora passou a receber mais 77% de remuneração, para além da compensação por rescisão do vínculo contratual com a empresa de transportes.
Recebeu a indemnização, mas nas declarações que fez chegar ao Tribunal Constitucional não a discriminou. Cristina Pinto Dias estava obrigada, enquanto administradora da CP e, depois, enquanto vogal da AMT, a entregar declarações de rendimento e património no Tribunal Constitucional.
Declarações no Tribunal Constitucional omissas sobre indemnização
Nas declarações, consultadas pelo Observador, não está qualquer referência expressa à indemnização, ainda que numa das declarações de atualização o valor referente a 2015 do seu rendimento bruto como dependente tenha subido face ao que recebia em 2014, o que pode ser explicado quer pela indemnização de 80 mil, quer pelos cerca de cinco meses que esteve, em 2015, na AMT, onde recebia mensalmente quase o dobro do vencimento na CP.
Se na declaração entregue quando entrou na AMT (23 de julho de 2015) constava um rendimento anual bruto referente a 2014 de 80.990,71 euros, já na atualização da declaração que fez em novembro de 2016 o rendimento pelo ano de 2015 atinge os 123.053,39 euros.
E em termos de rendimentos são os únicos dados que constam (tem depois referências a imóveis, carros, depósitos e empréstimos). Sempre que houve mudanças nos imóveis, Cristina Pinto Dias fez declarações ou atualizações.
Mas estaria obrigada a discriminar a indemnização? A secretária de Estado diz ao Observador que entregou duas declarações em 2015 ao Tribunal Constitucional “pelo exercício de funções por Titulares de Cargos políticos e altos cargos públicos, no cumprimento escrupuloso da lei em vigor à data do preenchimento”. De facto, houve uma declaração de cessação de funções na CP e outra pela entrada na AMT, mas em ambas o rendimento que constava era o de 2014.
Foi só quando fez as referidas atualizações que Cristina Pinto Dias revelou um rendimento em 2015 superior, sem o discriminar. Nesse ano a lei em vigor determinava apenas que “sempre que no decurso do exercício de funções se verifique um acréscimo patrimonial efetivo que altere o valor declarado referente a alguma das alíneas do artigo anterior em montante superior a 50 salários mínimos mensais, deve o titular atualizar a respetiva declaração”. Só a partir de 2022 é que se determinou que nessa atualização deviam estar indicados “os factos que originaram o aumento do ativo patrimonial, a redução do passivo ou o aumento de vantagens patrimoniais futuras, quando de valor superior a 50 vezes o salário mínimo nacional em vigor à data da declaração”.
Ou seja, não teria de especificar a origem do aumento salarial. A questão colocou-se quando Alexandra Reis recebeu uma indemnização da TAP, em valores bastante superiores. Num primeiro momento, as declarações desta gestora, que recebeu cerca de 500 mil euros da TAP (brutos) e que originou uma comissão de inquérito à transportadora, não tinham a referência a qualquer indemnização, o que estaria em violação da lei. Alexandra Reis acabou por devolver a indemnização.
Então gestora não tinha de informar (e não informou) CP de que ia para o regulador
A agora secretária de Estado foi nomeada para a administração da Autoridade de Mobilidade e Transportes a 23 de julho, um dia depois da avaliação da comissão parlamentar que realizou a audição aos cinco nomeados para este regulador e no qual o nome de Cristina Pinto Dias foi aprovada por unanimidade. Ainda não tinha saído a notícia da compensação de 80 mil euros. Todo o processo de saída da CP para a AMT terá acontecido em julho de 2015, último mês em que a então vice-presidente da operadora ferroviária ocupou o cargo.
O pedido de parecer à Cresap (a comissão de recrutamento dos dirigentes do Estado) seguiu no dia 6 de julho com a assinatura do então ministro da Economia, Pires de Lima. Quer a CP, quer a AMT estavam na tutela direta do então secretário de Estado, Sérgio Monteiro. A Cresap considerou o seu perfil adequado, valorizando a experiência significativa no topo dos caminhos da ferro e operadores públicos, apesar de considerar que “obteve qualquer formação específica termos de regulação económica”, não obstante ter sido diretora do Instituto Nacional do Transporte Ferroviário.
Pela informação recolhida pelo Observador, a saída de Cristina Pinto Dias da CP e do cargo de vice-presidente está diretamente ligada com o convite para a administração da Autoridade de Mobilidade e Transportes. Até porque não poderia assumir esta função sem se desligar primeiro da empresa que está na esfera da regulação da AMT.
Mas não informou nem a tutela (Ministério que a convidou para a AMT), nem a CP de que saía da empresa para ir para a administração do regulador, confirmou nas respostas ao Observador. Cristina Pinto Dias indica que “estava a usar um direito enquanto trabalhadora com 18 anos como os demais colegas da CP“. E “na adesão ao programa de rescisões por mútuo acordo nada é abordado sobre o futuro do trabalhador”, acrescenta.
A informação recolhida pelo Observador confirma que nos anos em que a Cristina Pinto Dias foi administradora da CP, entre 2010 e 2015, a empresa (como outras do setor público) tinha em vigor um programa de reestruturação que facilitava a saída de quadros por rescisões de mútuo acordo. Esses acordos iam à administração da empresa, à data liderada por Manuel Queiró, para validação, mas eram negociados pelo departamento de recursos humanos. Cristina Pinto Dias garante ao Observador que enquanto vice-presidente não participou na apreciação do seu próprio acordo. E quando questionada se teria a opção de deixar a empresa sem receber a compensação, esclareceu apenas que a sua opção foi a rescisão por mútuo acordo.
Entre 2011 e 2015, a CP pagou 29 milhões de euros em indemnizações por saídas. No ano de 2015, o relatório e contas refere 2,4 milhões de euros e a saída de 34 pessoas, das quais apenas sete via acordo de rescisão por mútuo acordo.
Da CP para a AMT, Cristina Pinto Dias quase duplicou salário
O pagamento a Cristina Pinto Dias não é identificado nas contas da CP. Mas a sua rescisão foi feita na qualidade de quadro da CP e não administradora, ao contrário do que sucedeu no mesmo ano com outra administradora, Isabel Marques Vicente, que foi demitida por conveniência, devido a uma relação conflituosa com a então secretária de Estado do Tesouro (Isabel Castelo Branco), tendo recebido uma indemnização e que é referida no relatório e contas. Esta gestora não estava nos quadros da CP. A CP não respondeu às questões do Observador.
Ao trocar a administração da CP pela da AMT, a atual secretária de Estado da Mobilidade conseguiu um aumento significativo da sua remuneração. Enquanto vice-presidente da empresa pública, ganhava um vencimento bruto mensal de 5.150 euros mais despesas de representação de 2.060 euros brutos. São dados de 2015 que incorporam já o corte salarial aplicado ainda aos políticos, dirigentes e gestores do Estado.
Os vencimentos da AMT, um regulador criado em 2015 e que juntou competências sobre os transportes terrestres e marítimos, foram fixados num patamar bastante acima, com um salário 9.600 euros para o cargo de vogal mais despesas de representação. Depois do corte aplicável também aos reguladores, o salário bruto mensal de um vogal é 9.120 mais despesas de representação de 3.648 euros, o que totaliza 12.768 euros mensais brutos, face aos 7.200 euros recebidos enquanto administradora da CP, mais 77%. Este acréscimo de salário é, aliás, visível nas declarações de rendimento que fez chegar ao Constitucional. No ano de 2022 o rendimento bruto por trabalho dependente atinge os 182.116,3 euros.
Os vogais mais antigos da AMT — como Cristina Pinto Dias e o vice-presidente Eduardo Lopes Rodrigues — beneficiaram ainda de uma situação que lhes permite ganhar mais do que a presidente do regulador, que desde 2021 é Ana Paula Vitorino. Isto porque a comissão de vencimentos reduziu os salários da administração da AMT, com base numa alteração à lei quadro dos reguladores que introduziu um limite máximo legal ao vencimento mensal. Mas o novo valor, mais baixo, só se aplicou às nomeações após 2017, neste caso a Ana Paula Vitorino porque a norma não teve efeitos retroativos deixando de fora os mandatos que já estavam em curso.
Nomeada para um mandato de seis anos, Cristina Pinto Dias (e o vice-presidente Lopes Rodrigues) acabou por estar à frente da AMT durante praticamente oito anos, até ser nomeada para a Secretaria de Estado da Mobilidade. Sobre esta duração, diz que “cabe ao Estado proceder à substituição dos membros do conselho de administração da AMT, após fim do mandato”: “Eu estive sempre em pleno exercício das minhas funções conforme decorre da lei em vigor.”
Ao longo deste período, o anterior Governo pediu a alguns, mas não a todos, membros que tinham o mandato terminado para permanecer até serem substituídos como foram os casos do presidente João Carvalho e das administradora Rita Sampaio Nunes e Cristina Pinto Dias.
Com a sua saída, a administração do regulador, que tinha cinco membros aquando da primeira nomeação, ficou reduzida a dois.