Nesta segunda-feira, um egípcio desviou um voo para Larnaca (Chipre) com o objetivo de entrar em contacto com a ex-mulher. Um sequestro “idiota”, segundo o Ministério dos Negócios Estrangeiros egípcio, que foi notícia em todo mundo e acabou sem vítimas. Nos anos 80, um avião da TAP foi sequestrado por razões igualmente insólitas.
Tudo aconteceu a de 6 de maio de 1980. Rui Rodrigues, residente no Feijó, então com 16 anos, comprou um bilhete para o voo da TAP 131, que fazia a ligação entre Lisboa e Faro e sequestrou o avião empunhando uma pistola de pequeno calibre do pai, com seis balas. Apesar da ameaça, tudo acabou bem.
“Foi uma história bastante romântica, bastante benigna, só possível de ser vivida em Portugal e nos anos 80. Hoje não sei se teria o mesmo desfecho”, disse ao Observador José Correia Guedes, co-piloto do Boeing 727 e um dos protagonistas da inusitada história que fez as primeiras páginas dos jornais do dia seguinte.
Rui Rodrigues (que o Observador não conseguiu contactar, apesar de várias tentativas) ficou conhecido como “piratinha do ar”. Comprou a sua primeira viagem de avião e, naquele dia, subiu a bordo como um passageiro normal, com a arma de pequeno calibre do pai escondida dentro de uma das colunas de um rádio portátil. Ao contrário do que acontece hoje, na época os passageiros e as bagagens de mão não passavam pelos raios-X.
Depois da descolagem, o jovem foi à casa de banho na frente do avião, desmontou o rádio, sacou da arma e entrou no cockpit. O sequestro começou logo de seguida: “A porta do cockpit abriu-se, hoje em dia isso já não seria possível, mas na altura era. Nós íamos muito concentrados na pilotagem, o comandante Coutinho Ramos, o operador de sistemas S. Rodrigues (flight engineer, uma figura que atualmente já não existe) e eu, o co-piloto, quando ouvimos uma voz aos gritos, muito tensa: ‘Vamos para Madrid, vamos para Madrid!'”
Eram quase dez da noite daquela terça-feira quando a equipa de pilotagem, os sete tripulantes e os 83 passageiros foram surpreendidos com a exigência de mudança de rota. Com a pistola apontada alternadamente às suas cabeças, os pilotos tiveram mesmo que cumprir a ordem do sequestrador, que estava “com uma arma na mão, muito tenso”: “Tremia muito, a mão dele tremia muito”.
“Desviámos a rota e informámos os passageiros que, por razões de ordem meteorológica, não iríamos aterrar em Faro mas em Madrid,” conta o co-piloto ao Observador. Uma “mentira piedosa”, mas pouco verosímil, já que “estava uma noite fantástica e via-se toda a costa do Algarve”. “Quem foi à janela percebeu imediatamente que estávamos a mentir.”
O rapaz tomou o avião com o objetivo de “fugir de casa”, segundo confessou a José Correia Guedes. Com o intuito de levar o plano de fuga adiante, o jovem pirata do ar fez duas exigências: queria 10 milhões de dólares e um salvo-conduto para a Suíça.
Não era primeira vez que um avião da TAP era sequestrado. A 10 de novembro de 1961, um Lockheed L-1049G Super Constellation proveniente de Casablanca, em Marrocos, e com destino ao aeroporto da Portela foi desviado por seis passageiros (opositores ao regime) que forçaram o avião a voar a baixa altitude sobre Lisboa, Barreiro, Setúbal, Beja e Faro com o objetivo de lançar panfletos incitando à revolta. E a 22 de outubro de 1978 um pirata aéreo que acabou por ser detido exigiu ser levado até Marrocos, desviando um voo entre Lisboa e o Funchal.
Isso não impediu a que a tripulação sequestrada pelo “piratinha do ar” em 1980 passasse por um breve “período de choque e de surpresa”. “Ninguém está preparado para uma coisa dessas”, diz José Correia Guedes. Para o então co-piloto, a atitude do jovem justifica-se, em parte, como um fenómeno de cópia. “Nessa altura, nos anos 80, estavam muito na moda, entre aspas, os sequestros de aviões. Havia vários grupos terroristas que faziam toda a espécie de sequestros, incluindo de aviões. Isto para além dos desvios para Cuba, que também eram muito frequentes. Na época era uma situação comum.”
O plano de voo foi alterado e o primeiro momento caricato aconteceu precisamente no momento da alteração. “Mudar de rota dava uma trabalheira, tínhamos que fazer uma série de coisas e fazer contas. E, no meio disto tudo, quando ele nos viu naquela azáfama, ele virou-se e disse: ‘Eu peço desculpa pelo trabalho que lhe estou a dar.'”
Os pilotos notificaram o sistema de controlo de tráfego aéreo de que algo de anormal se passava com o avião, mas já a perceber que “um sequestrador que se quer fazer rebentar não diz isto, não pede desculpa pelo trabalho que está a dar; mas isto revela o caráter dele: era uma boa pessoa, que teve um momento de desvario.”
Depois de aterrarem na zona militar do aeroporto de Barajas, foram cercados pelas forças de segurança, prontas a tomar de assalto o avião, caso fosse necessário. Nesse momento foi chamado o embaixador de Portugal em Espanha, João Sá Coutinho, que passou a mediar as negociações via rádio entre o avião e a torre de controlo. O sequestrador manteve as exigências e, depois das consultas a Lisboa, veio a resposta de Sá Carneiro, primeiro-ministro, que não acedeu ao pedido dos 10 milhões de dólares.
Daí em diante, as negociações entraram numa nova fase, com os 83 passageiros em mente. Finalmente, o sequestrador aceitou abrir uma porta de trás do avião. “Saíram as mulheres e as crianças e alguns passageiros que apanharam a porta aberta e se piraram”. A partir daí, a situação alterou-se.
“A experiência diz-nos que quando o sequestrador começa a fazer concessões é sinal de que vai ceder até ao fim. Esta foi a primeira cedência”, explica José Correia Guedes. No seguimento das negociações, os restantes passageiros também foram libertados e ficou só a tripulação a bordo, incluindo os comissários e os assistentes. O sequestrador também os tinha deixado sair, eles não quiseram. “Ficaram connosco até ao fim”, lembra Correia Guedes.
O final do episódio de sequestro implicou a viagem de regresso a Lisboa, não sem antes se passar um segundo episódio caricato. Oficiosamente encarregue das negociações com o sequestrador, José Correia Guedes tentou estabelecer uma relação de proximidade com o jovem. Uma relação que hoje considera como “síndrome de Estocolmo”, uma situação em que sequestrador e sequestrado desenvolvem uma relação de empatia.
A tal ponto que, quando lhe pediu as balas da arma, o jovem acedeu: “Pensou durante algum tempo. Houve uma cena um bocado patética porque ele só me deu cinco balas, ficou com uma. Eu expliquei-lhe que sabia alguma coisa de armas e que as pistolas tinham pelo menos seis balas, faltava uma. E ele disse: ‘Esta é para mim, vou acabar aqui’, dando a sugestão de que eventualmente se poderia suicidar. Aí acabamos os dois de lágrima no olho, literalmente”.
Com o problema da arma resolvido, havia outra negociação a fazer, mas desta vez com os espanhóis. Era preciso convencê-los a deixarem o avião sair e a “não entrarem pelo avião dentro”. “Foi dito à torre que continuávamos sob sequestro e que íamos partir com destino desconhecido. Os espanhóis, que queriam era ver-se livres de nós, meteram combustível nos tanques e deixaram-nos descolar com o sequestrador a bordo.”
Só depois de o avião voltar a estar no ar, rumo a Lisboa, é que anunciaram que o sequestrador se tinha entregado. “Quando chegámos a Lisboa estava um espalhafato monumental: os jornalistas, a televisão e a polícia, que levou o rapaz.”
Depois do susto, o então co-piloto não esqueceu as promessas que havia feito a Rui Rodrigues durante as negociações. Quando aterrou, entregou a pistola vazia e, quando chegou a casa, a primeira coisa que fez foi ligar para a mãe do sequestrador: “Quando cheguei a casa, já era alta madrugada e na altura ainda só havia telefone fixo. A primeira coisa que eu faço é ir para o telefone, cumprir a primeira parte da minha promessa: falar à mãe dele. Ele tinha-me dado o número e pediu-me: ‘Olha, quando chegares a casa, liga para a minha mãe e conta-lhe o que aconteceu porque ela deve estar muito preocupada’. Uma coisa do mais insólito possível”.
A segunda promessa que havia feito ao jovem só cumpriu no dia seguinte: ligar ao seu próprio pai, que na altura era juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça a contar a história do rapaz. Ao contrário do que José Correia Guedes esperava, o pai não aprovou o facto de ter tentado ajudar o sequestrador. Disse-lhe que, ao ter ficado com as balas, estava a ocultar provas. Mais tarde, o co-piloto foi entregá-las à Polícia Judiciária.
De insólito em insólito, a história poderia ter terminado aqui — mas não terminou. Como diz José Correia Guedes, tudo aquilo parecia “uma novela mexicana de quinta categoria”. Rui Rodrigues ficou em prisão preventiva e “dois ou três dias depois do sequestro” pediu ao co-piloto que o visitasse na cadeia. “Queria dar-me um abraço e agradecer-me a benevolência com que o tratei”.
No dia em que saiu da cadeia, onde ficara em prisão preventiva, apareceu em casa de José Correia Guedes, que o convidou para jantar. Meses depois, no julgamento, o co-piloto depôs a favor dele. “O caso foi tratado com bastante benevolência e, entretanto, gerou-se também um movimento na sociedade portuguesa: o padre e o professor e toda a gente a dizer que o rapaz era muito inteligente, que teve um momento infeliz e que não se podia perder uma vida destas. Aquelas coisas do costume, muito próprias da nossa lusitanidade, somos todos muito benevolentes”.
No final das contas com a Justiça, Rui Rodrigues foi condenado a uma pena suspensa. “E no meio disto tudo ele disse-me que ia tirar o curso de Direito e que quando casasse eu ia ser o padrinho.”
Isso não chegou a acontecer. “Ele fez o seu caminho e durante vários anos não soube nada dele. Contactei-o vinte ou trinta anos depois e convidei-o para almoçar. Ele mandou-me uma mensagem a dizer que tinha ficado muito sensibilizado comigo, mas que não queria voltar a essa história. Era um assunto que ele não gostava de recordar. E pronto, nunca mais soube nada dele.”