“Quantas árvores lhe parece que tenho aqui plantadas?”
Antevemos que há rasteira na pergunta atirada pelo jovem agricultor alemão Marc Leiber, enquanto nos guia por uma pequena parcela de terreno cultivado, que não chega a um hectare. Ainda assim, arriscamos: uma centena? Marc ri-se. Falhámos, obviamente. Resta saber por quanto. “Dezasseis mil”, corrige-nos. É difícil conter o espanto — e o alemão sabia-o antes de lançar a pergunta. O terreno de Marc no concelho de Montemor-o-Novo não é uma plantação qualquer: é uma agrofloresta das mais avançadas que existem no planeta, objeto de estudo por especialistas e doutorandos, e um autêntico laboratório onde são experimentadas soluções que podem vir a transformar radicalmente o modo como a Humanidade produz alimentos na terra. As árvores estão plantadas em autênticos ninhos de palha alinhados no terreno — não só porque Marc tem horror à palavra “buraco” para descrever o lugar onde cresce uma planta, mas também porque o ninho permite baixar a temperatura do solo — e incluem dezenas de espécies diferentes. Até silvas ali encontramos. Mas não são ervas daninhas: foram mesmo ali plantadas.
Marc Leiber, de 25 anos, chegou ao Alentejo Central há dois anos. Nascido na Alemanha, passou parte da juventude nos Estados Unidos antes de regressar à Europa, para estudar Agronomia na Universidade de Den Bosh, nos Países Baixos. Foi lá que conheceu o agrónomo suíço Ernst Götsch, que é considerado o pai da agricultura regenerativa e aclamado como uma das grandes referências da agronomia contemporânea pelos académicos da agricultura. Götsch, radicado no norte do Brasil desde a década de 1980, aceitou visitar o projeto universitário que Marc dinamizara com alguns colegas — e o jovem aproveitou a ocasião. “Conheci-o e, depois, pedi-lhe se podia fazer um estágio com ele.”
Foi no estágio com o mestre Ernst Götsch que Marc Leiber ouviu falar da Herdade do Freixo do Meio, onde viria a comprar um terreno de 5,5 hectares, um dos quais atualmente ocupado com o seu projeto inovador, a Quinta das Abelhas. “Estive num Brasil com ele a fazer a minha aprendizagem e, durante esse tempo, ele veio aqui dar consultoria à herdade”, conta o agricultor ao Observador, sentado num fardo de palha no seu pequeno terreno alentejano. “Ele contou-me várias histórias deste sítio, disse-me que era um sítio muito bonito, que tinha muito potencial e que eu devia vir vê-lo. Eles, na altura, estavam com alguns problemas na manutenção das agroflorestas e eu vim ajudá-los.”
Marc Leiber já trazia na cabeça a ideia de se estabelecer definitivamente no sul da Europa, na região do Mediterrâneo, adquirir um terreno, “fazer agricultura, trabalhar com estes conceitos e fazer pesquisa”. A vinda para Portugal, inicialmente acidental, mostrou-lhe o que rapidamente se tornaria bem óbvio: “O plano era ficar aqui. Comprei este terreno e agora isto é um projeto de vida.”
O jovem alemão encontrou nos ensinamentos de Ernst Götsch e nos terrenos de Portugal as respostas a muitas das questões que o inquietaram durante os estudos. “Tinha muitas perguntas sobre os conceitos que os professores nos ensinavam, sobretudo acerca da sustentabilidade e da funcionalidade a longo prazo desses conceitos”, assume Leiber. “Tive a sensação de que os conceitos que nos ensinavam não iam ser produtivos durante muito mais anos. Não iam oferecer-nos uma grande segurança para a nossa alimentação no futuro.”
“Depois, apareceu a agrofloresta”, esclarece. “Este projeto baseia-se todo em ensaios e experiências para conseguir modelos e depois escalar este conceito de agricultura, para encontrar maneiras mais eficazes e mais eficientes, e também para entender quais são as espécies-chave com as quais temos de construir estes agroecossistemas.”
Mas, afinal, o que é uma agrofloresta? Em maio deste ano, numa entrevista ao Observador, a jornalista Isabel Lindim, autora do livro Portugal, Ano 2071, com previsões sobre como vai estar Portugal dentro de cinquenta anos devido ao efeito das alterações climáticas, apontava o recurso à agrofloresta como uma das principais soluções para mitigar os efeitos do aquecimento global, regenerar o ambiente e assegurar a adaptação às novas condições do clima — tudo isto enquanto se mantém a produção de alimentos para a Humanidade. “É diversificar no tipo de cultivo que se faz”, explicava na altura a jornalista. “Manter a floresta e, no entanto, produzir e cultivar.”
“As plantas colaboram mais do que competem”
Pode parecer, à partida, uma explicação simples — mas há uma ciência mais complexa por trás deste conceito.
A herdade do Freixo do Meio, um complexo agrícola com 600 hectares situado na pequena freguesia de Foros de Vale Figueira, a cerca de quinze quilómetros a noroeste de Montemor-o-Novo, é um dos melhores lugares do país para aprender sobre o conceito de agrofloresta e para o ver em funcionamento. A propriedade voltou às mãos dos donos em 1990, depois de mais de uma década expropriada no contexto da Reforma Agrária, e coube a Alfredo Cunha Sendim, que a herdou dos avós, revolucionar a produção na herdade e transformá-la numa referência nacional para a agricultura contemporânea. Ainda na década de 1990, a herdade foi pioneira na introdução da agricultura biológica. Hoje, o Freixo do Meio emprega três dezenas de pessoas e opera uma complexa rede de produção de perto de trezentos produtos diferentes, incluindo hortícolas, frutícolas, carnes, laticínios e até madeiras.
Bernardo Sá Nogueira, 38 anos, natural de Lisboa, é um dos diretores do Freixo do Meio e está responsável pelas experiências agroflorestais, uma das principais apostas da propriedade. O lisboeta mudou-se para Montemor-o-Novo em busca de um lugar onde pudesse criar os filhos longe da agitação urbana e encontrou no Alentejo Central o equilíbrio entre a calma do campo e a proximidade à família. “Há aqui um equilíbrio de dinamismo, que já existe em Montemor, e que acho que em Portugal não há noutra cidade”, assume, antes de se lançar nas explicações técnicas sobre as agroflorestas de que cuida.
“Regenerar ecossistemas e produzir comida ao mesmo tempo. Se nós fizermos estas duas coisas, acho que estamos a fazer a verdadeira agrofloresta”, resume o biólogo, insistindo que o que distingue a produção agrícola convencional da produção agroflorestal é precisamente a importância da regeneração do ecossistema. Na prática, transforma-se um sistema meramente extrativo num sistema produtivo — que, em condições ideais, conseguiria sustentar-se por si próprio, sem a intervenção humana, como a natureza soube fazer durante milénios. A única intervenção externa necessária seria a colheita.
Bernardo está acompanhado de José Mateus, um biólogo de 36 anos natural de Vila Franca de Xira, nos subúrbios de Lisboa, que também se mudou para Montemor-o-Novo em busca de paz e tranquilidade. Colega de curso de Bernardo Sá Nogueira, José Mateus trabalha como consultor agrícola por todo o Alentejo, ajudando novos proprietários a montar os seus sistemas agroflorestais.
Ambos concordam que para entender verdadeiramente o conceito de agrofloresta é preciso romper com as definições convencionais da agricultura das últimas décadas, marcada pelos avanços tecnológicos da revolução verde. “O que se fez aqui com a revolução verde foi chegar com tratores da Rússia, escavar isto tudo, plantar trigo em cima de trigo todos os anos até esgotar os solos”, explica Bernardo. “Agora, já há uma maneira diferente de ver as coisas. Já vem um pacote tecnológico diferente. Já só se vê o solo e a terra como o sítio em que as plantas ficam fixas. É quase só o esqueleto. Vem um pacote de fertilizantes e é tudo feito pela rega: não é precisa a fertilidade do solo. Só o espaço.”
Esta abordagem extrativa danificou, muitas vezes irremediavelmente, os solos portugueses — e cada avanço tecnológico obrigou a novas soluções. “A fixação de azoto é feita de forma elétrica em vez de pelas leguminosas. As plantas não estão saudáveis, atraem pragas e usamos químicos”, explica José Mateus, evidenciando a pescadinha-de-rabo-na-boca que tudo isto representa: sempre que atacamos uma espécie que classificamos como praga, acabamos por enfrentar as espécies de que a tal praga era predadora.
A agrofloresta propõe um regresso ao tempo em que a natureza produzia alimento em abundância sem que isso significasse uma destruição do ecossistema em que a comida era produzida. Para isso, é necessário aumentar a diversidade, reduzir a quantidade e modificar os processos. A primeira grande diferença entre uma produção convencional e uma agrofloresta é a própria paisagem: ao contrário do que sucede na maioria da planície alentejana, ali não vemos à nossa frente uma enorme extensão com uma única espécie até perder de vista (por exemplo, trigo ou oliveiras). Estamos numa das principais agroflorestas do Freixo do Meio, a alguns quilómetros das experiências de Marc Leiber, e temos diante dos nossos olhos um espécie de confusão organizada, que Bernardo Sá Nogueira tenta decifrar: numa estreita faixa de terreno com menos de 100 metros de comprimento, inicialmente pensada para produzir citrinos, vemos “nogueiras, figueiras, videiras, pessegueiros, marmeleiros, romanzeiras, freixo para produção de madeira, ervas aromáticas, flores, calêndulas e flores comestíveis, aroeiras, zambujeiros e espécies da linha de água como salgueiros e choupos”.
O que estamos a ver parece contraintuitivo. Não há linhas organizadas, com árvores a cada dois ou três metros, numa matriz perfeita que nos habituámos a associar à grande produtividade agrícola. Nem sequer parece haver uma distância mínima entre cada árvore: há rebentos de árvores a menos de um palmo de distância. Não irão lutar pela mesma água ou pelos mesmos nutrientes, questionamos. José Mateus desfaz-nos o espanto e implode o mito: “As plantas não competem. A ecologia diz-nos que colaboram mais do que competem.”
“Temos de passar de uma visão de escassez para uma visão de abundância”, esclarece Bernardo Sá Nogueira. “Temos aqui muitas espécies, que estamos a ver se funcionam umas com as outras. Se não funcionarem, também não há problema: a ideia aqui é plantar a mais para poder ter o privilégio de escolher, de ver o que resulta e o que não resulta. Se virmos que há duas árvores muito perto que estão a querer a mesma luz, podemos facilmente sacrificar uma, podá-la, transformar tudo em madeira e deixá-la ali a alimentar o solo. Nunca é energia mal gasta — é devolvida ao solo.”
Planear no tempo e no espaço
Os dois biólogos regressam ao exemplo da natureza: nunca no mundo natural vimos um terreno só com oliveiras plantadas numa grelha perfeita, nem apenas com vinha alongada por quilómetros sem qualquer outra espécie pelo meio.
Na natureza, as espécies de plantas convivem umas com as outras e os ecossistemas incluem sempre várias espécies — nunca só uma. Por isso, argumentam, é um erro forçar as plantas a viverem sozinhas no seu quadrado da grelha. “Deixaríamos um bebé sozinho no deserto? Não. As plantas também precisam de pais e mães”, diz José Mateus. “Grande parte dos problemas que aparecem nas plantas é porque elas não gostam de estar sozinhas ao sol. O pessegueiro ganha sempre doença, a laranjeira fica toda queimada do sol. Mas nós estamos habituados a pôr as plantas a três ou quatro metros umas das outras, à chapa do sol sozinhas.”
Porém, as plantas “gostam de estar protegidas” e de conviver, porque todas têm ritmos diferentes de crescimento, almejam chegar a alturas distintas e exigem diferentes recursos. Há plantas que se dão melhor se crescerem à sombra de outra e que vão ser sempre mais baixas e largas; outras, que precisam de mais sol, vão subir mais e oferecer sombra às que ficam em baixo. Isto significa que a natureza tem estes processos em si própria — e, na maioria das vezes, não é preciso recorrer a processos artificiais para dar sombra, água ou luz a uma planta.
Numa agrofloresta, convivem todo o tipo de seres vivos: árvores de fruto, outras árvores, plantas diversas, flores, hortícolas e animais. Numa das agroflorestas do Freixo do Meio, vivem galinhas (na loja online, a herdade promove inclusivamente os seus ovos biológicos como “ovos da agrofloresta”). Para Bernardo Sá Nogueira, a multiplicidade de elementos cultivados em simultâneo permite aos produtores — sobretudo, numa fase inicial, aos mais pequenos — planearem os seus terrenos no espaço e no tempo. “Ao plantar as nossas oliveiras bebés, podemos plantar alfaces junto às oliveiras e sermos produtores de alfaces durante um ano ou dois. E plantar uns morangos com as alfaces, e produzir morangos durante uns bons anos antes de as oliveiras sombrearem aquilo — e ainda podemos ir a mais detalhes. Por exemplo, podemos plantar uma nogueira entre cada oliveira e já estamos a pensar além da oliveira.”
Agricultura em piloto automático
Mas a agrofloresta serve para mais do que uma mera diversificação dos produtos agrícolas ou uma simples renovação da paisagem rural. Para novos agricultores como José Mateus, Bernardo Sá Nogueira ou Marc Leiber, o recurso à agrofloresta é uma das peças-chave para que a Humanidade se adapte aos efeitos que as alterações climáticas já estão a ter sobre a produção de alimentos.
José Mateus resume numa expressão simples o funcionamento da agrofloresta: “Imitar o funcionamento da natureza.” E isso significa reavivar dois processos naturais que a agricultura convencional afastou definitivamente, por considerar pouco produtivos ou inúteis para a produção intensiva: a sucessão natural e a estratificação.
O primeiro diz respeito ao modo como os solos evoluem naturalmente com a complexificação das plantas que lá crescem. “As plantas vão-se sucedendo umas às outras e cada uma vai criando melhorias na condição do solo, para que uma mais exigente venha a seguir”, explica o biólogo, exemplificando: “A seguir a um grande distúrbio, a uma grande mobilização do solo, voltamos à estaca inicial, em que temos um deserto. Depois, começam a aparecer umas gramíneas, que vão ser a estepe. Depois, uns pequenos arbustos, mais tarde algumas árvores. Vai havendo uma complexificação, as raízes vão afundando, as copas vão aumentando. Isto é a sucessão natural, acontece no espaço ao longo do tempo e vê-se na paisagem, dá para perceber os sítios que foram mexidos há mais ou há menos tempo.”
“E depois há a estratificação. Ou seja, como é que cada planta, num sítio, vai estar no seu ótimo de luz e de sombra. Há umas que vão gostar de ir lá para cima, vão crescer muito — são os emergentes. Outros, que têm normalmente a folha mais escura, como os citrinos, vão conseguir tolerar um bocadinho mais de sombra dos que estão em cima”, sublinha o biólogo. Na paisagem, isto traduz-se na existência de múltiplas árvores e plantas com alturas diferentes — e não num lençol verde de plantas iguais com a mesma estatura.
A convivência entre plantas diferentes no mesmo espaço permite essa estratificação — literalmente, a criação de vários “patamares” que levam a que se verifiquem condições de temperatura e humidade muito diferentes consoante a distância ao solo, o que favorece o crescimento das próprias plantas de modo natural. “Permite a diminuição da temperatura de cima para baixo, a partir de onde estão as folhas. É a agrofloresta a funcionar como um condensador. A temperatura desce até chegar à temperatura mais baixa que podemos ver, mesmo debaixo da terra, onde podemos ver que está a acontecer a decomposição pelos fungos. Esta descida de temperatura, gradual, provoca condensação e faz com que a floresta seja “muito mais resiliente em termos de água”, diz José Mateus: “A agrofloresta produz, ao longo do tempo, a sua própria água.”
No centro da lógica de sustentabilidade das técnicas agroflorestais está a regeneração do solo e o protagonismo da fotossíntese, o processo realizado pelas plantas para obter açúcares através do dióxido de carbono, da água e da luz do sol. Trata-se do processo natural que contraria as emissões de dióxido de carbono feitas pelas atividades humanas, uma vez que capta o dióxido de carbono e emite, como subproduto, oxigénio — daí que se diga habitualmente que as florestas são os “pulmões” do planeta. “A fotossíntese é o único processo natural que temos que é contrário ao que fazemos nas fábricas e nos carros”, explica José Mateus, assinalando a importância das plantas para a “fixação do carbono”.
Imaginemos uma monocultura: uma grande planície alentejana coberta com apenas uma espécie de plantas, expurgada de todas as outras espécies por meios mecânicos ou químicos. Aí, explica José Mateus, é possível ter uma única camada de plantas a fazer a fotossíntese. Na melhor das hipóteses, é possível ter 100% do terreno a fazê-lo. Mas numa agrofloresta, com muito mais plantas por metro quadrado, a fotossíntese ocorre em vários “andares”. Ou seja, é mesmo possível ter “o dobro ou mais” de 100% do terreno a fazer a fotossíntese. E esse processo só vai promover a continuidade da agrofloresta. “Primeiro, a fotossíntese começa a produzir açúcares nas plantas. Esses açúcares, na primeira fase, vão ser libertados na raiz, vão alimentar bactérias, que vão ser responsáveis pela nutrição das plantas, porque vão conseguir transformar elementos que estão no solo de formas que não são assimiláveis. Na presença do açúcar na raiz, esta bactéria transforma uma coisa que está no solo e oferece outra coisa à planta. Isto é a grande chave da fertilidade natural. À medida que o sistema vai avançando, vem também mais carbono, que começa a ser fixado nas partes de cima, que começam a escurecer, e trazem mais uns fungos”, explica José Mateus, apontando para partes do solo mais escuras e mais frias, junto à base das plantas. “É um sistema que vai acumulando energia.”
Em tese, um sistema montado desta maneira pode, ao fim de algum tempo, entrar em modo de piloto automático. Uma vez que são recriados os processos naturais, a intervenção humana deixa de ser necessária exceto para recolher os produtos ou para podar algumas das árvores quando for evidente que não é sustentável manter duas plantas — e for preciso escolher uma. Bernardo Sá Nogueira dá um exemplo quando pára numa laranjeira plantada junto ao um salgueiro e percebe que um dos ramos do salgueiro já não tem condições para continuar sem prejudicar a laranjeira. Corta-o da árvore, e depois corta-o em pequenos pedaços e coloca-o em torno da base das duas árvores. É expressamente proibido desfazer-se da madeira queimando-a, como noutras explorações convencionais. “Ao queimar, estamos a fazer o processo inverso ao que a fotossíntese fez. A energia foi acumulada e nós ao queimarmos estamos a libertar esse dióxido de carbono todo”, explica José Mateus enquanto Bernardo Sá Nogueira vai cortando o ramo.
“E pronto. Criámos mais condições para a bicharada ficar aqui em baixo, mais madeira para os fungos, etc.”, esclarece Bernardo quando termina.
Para os dois biólogos, não há dúvidas de que os processos agroflorestais serão fundamentais para a alimentação humana nas próximas décadas. “Tudo indica que os sistemas agroflorestais serão os sistemas do futuro. É para aí que temos de caminhar se queremos uma agricultura mais sustentável”, explica José Mateus. “No fundo, trata-se de uma agricultura de processos, e não de produtos”, continua, sublinhando que a natureza tem as ferramentas para produzir alimentos sem a manipulação humana. Bernardo concorda: “Nós aguentámos milénios a saber cooperar com a natureza. Só estamos esquecidos de como o fazer. Até há 10 mil anos vivíamos em harmonia com a natureza. Até que começámos a fazer agricultura, a criar cidades, a pôr as pessoas a viver concentradas num sítio onde não se podia produzir comida e começámos a pôr outras pessoas a produzir comida para essas pessoas fora das cidades.”
“Temos estado a viver de recursos que estavam acumulados. E estamos a chegar a um tempo em que esses recursos acumulados pela natureza, esse carbono, este solo construído e que foi sempre mal utilizado, estão a esgotar-se”, explica José Mateus, sublinhando que o recurso à agrofloresta permite inverter a lógica degenerativa da agricultura tradicional (em que o solo fica pior depois do cultivo do que estava antes) e transformá-la numa lógica regenerativa (em que a própria atividade agrícola contribui para a regeneração dos solos).
Não surpreende, assim, que Marc Leiber nos apresente 16 mil plantas num pequeno terreno. O alemão comprou um terreno de cinco hectares à herdade do Freixo do Meio e tem ali desenvolvido investigações aprofundadas sobre o funcionamento de uma agrofloresta e o modo como as plantas cooperam entre si. “Será uma agricultura em que o maior insumo será o conhecimento”, explica José Mateus, sublinhando que o processo agroflorestal está longe de conseguir suprir as necessidades de alimentação já no futuro mais próximo. “Ainda não estamos afinados ao ponto de ser uma estrutura super-produtora de alimentos, que seja a solução já de amanhã. Mas está a gerar-se conhecimento sobre que espécies usar, que espaços, etc. Toda uma maquinaria terá de ser adaptada. Está a produzir-se muito conhecimento e muita experiência.” É que, embora a necessidade de intervenção humana num sistema agroflorestal vá diminuindo com o tempo, ao início é bastante alta e requer “alguma manutenção”. “O que queremos é dinamizar os processos naturais”, sublinha José Mateus. Por isso, há ainda “toda uma mecanização que nos está a faltar”.
Na Quinta das Abelhas, do jovem Marc Leiber, ensaiam-se as agroflorestas do futuro. “Isto até é um pouco mais do que uma agrofloresta”, assume Leiber — de facto, um simples montado com azinheiras e vacas pode ser uma agrofloresta, mas se não forem seguidas práticas de regeneração do ecossistema, de pouco servirá. “A tentativa é fazer um agroecossistema. Uma plantação agrícola que funcione como um ecossistema, em que todas as funções sejam cumpridas e o agroecossistema se aproxime, na sua dinâmica e estrutura, ao ecossistema natural e original deste lugar.”
“Tenho aqui um terreno com 5,5 hectares e tenho feito, até agora, plantações num hectare”, explica Leiber, sublinhando que já começou a tirar conclusões. “Aqui, neste sítio específico, três das espécies-chave que vejo para o curto-prazo, para os primeiros anos — ou seja, as plantas que vão fazer o primeiro passo para as outras poderem vir —, são os tagasastes, uma árvore de crescimento rápido que vive 20 a 40 anos, cresce com muito vigor, aguenta muito bem a secura e reage bem à poda, o eucalipto e o choupo.”
Naturalmente, a transição para uma agricultura baseada nestes processos agroflorestais enfrenta uma questão fundamental: é rentável? Sobretudo: é mais rentável que a produção convencional? Para já, dificilmente, assumem os biólogos. Mesmo se, no futuro, a automatização dos processos agroflorestais vier a torná-la competitiva, em termos de escala de produção, com a atual agricultura convencional e intensiva (e este é um grande ‘se’), há algumas resistências que dificilmente serão ultrapassáveis, nomeadamente a variedade de alimentos em questão: num determinado lugar, haverá sempre um número limitado de plantas que vão sobreviver naturalmente nesse ecossistema. Por exemplo, aquelas frutas que hoje classificamos como tropicais, e que se popularizaram na alimentação europeia, como a manga ou o abacate, não crescem naturalmente em Portugal: estaremos disponíveis para as deixar cair dos nossos hábitos alimentares?
“O grande argumento, atualmente, é a possibilidade de planear no tempo”, explica Bernardo Sá Nogueira, dando exemplos concretos: quem já tem uma produção de oliveiras pode introduzir no olival, sem retirar oliveiras, outras espécies que vão transformar a produção numa agrofloresta e garantir outros produtos a ritmos de produção diferentes. Mas os defensores da agrofloresta apontam as agulhas, essencialmente, para os grandes produtores — e sustentam que, no futuro, as grandes explorações agrícolas terão, forçosamente, de ser grandes agroflorestas. Marc Leiber mantém o seu pequeno terreno de 5,5 hectares como laboratório, mas já está de olho noutros terrenos, também no Alentejo. E aí será para evoluir a produção: “Posso começar com 5 hectares, mas já com potencial para escalar, no terreno, para 50, 100 ou mil hectares.”