No princípio, era uma “máquina de guerra eleitoral”. O Podemos foi oficialmente criado em março de 2014, a apenas dois meses das eleições para o Parlamento Europeu. Em maio de 2014, a “máquina de guerra eleitoral” era um projeto ainda incipiente e por isso desconhecido para muitos — sabia-se apenas que era um partido com um discurso populista de esquerda mais radical e que se orgulhava de ter como base o movimento dos indignados, fundado com as manifestações de 15 de março de 2011.
Contra as expectativas dos mais céticos, “a máquina de guerra eleitoral” provou ser eficaz: sem pedir licença aos “velhos partidos”, ficou em quarto lugar com 8% dos votos.
Mal soube dos resultados, Pablo Iglesias, o primeiro e até agora único secretário-geral do partido, fez um discurso onde, mais do que dar uma palmadinha nas próprias costas, procurou atingir os seus adversários. “Os partidos da casta receberam um sério corretivo”, disse, em alusão aos socialistas do PSOE e ao Partido Popular, que governava há quase três anos com Mariano Rajoy na liderança. E o objetivo de Pablo Iglesias era tirá-lo de lá, como explicou nesse discurso na noite de 25 de maio de 2014.
“Não pusemos um teto. A minha vontade é ir às [eleições] gerais. E tentar ganhá-las. Assumimos um diagnóstico político do 15M [a sigla usada para referir o movimento iniciado a 15 de março de 2011]. Não podemos falar do fim, mas sim do princípio do fim do bipartidarismo. Há que derrubá-los, porque são os culpados da ruína do país”, disse, sob um coro de aplausos e ovações.
A partir desse momento, Pablo Iglesias tornou-se num nome incontornável na política espanhola e passou a ser cada vez mais conhecido. Rapidamente deixou de ser el de coleta (“o do rabo de cavalo”) para ser a cara de uma esquerda populista, arreigadamente jovem e com um discurso de quem quer chegar ao poder desafiando abertamente os que lá estão.
Aos poucos, isso foi acontecendo. 2015 foi, quase até ao seu fim, um ano generoso para o Podemos. Em Madrid, a ex-juíza Manuela Carmena, líder de uma coligação onde o Podemos era uma peça essencial, tornou-se presidente da câmara em junho. No mesmo mês, Ada Colau, também ela a cabeça de lista coligada com o Podemos, passou a governar a cidade de Barcelona. E em novembro, foi a vez de os aliados do Podemos em Valência subirem ao poder. E assim, de repente, o Podemos tinha nas suas mãos as três maiores cidades de Espanha.
Era este o “assalto aos céus” de que Pablo Iglesias tanto falava, pedindo a expressão emprestada a Karl Marx, quando este escrevia sobre a comuna de Paris, em 1871. O voo mais alto era logo a seguir: as eleições gerais de dezembro de 2015.
O “fim do bipartidismo” de que Pablo Iglesias falava na noite das europeias aconteceu nas eleições de dezembro — mas o Podemos, que com o passar do tempo começou a colecionar polémicas, como o financiamento venezuelano e o seu tom radical, ficou-se pelo terceiro lugar, com 20,8%. Seguiram-se meses de bloqueio, em que o vencedor PP, sem maioria, não conseguiu apoios para formar Governo e o PSOE procurava a ajuda do Podemos e o Ciudadanos para governar. O Podemos não esteve disposto a dar a mão aos socialistas e Espanha foi a novas eleições em junho de 2016.
Aí, chegou-se à sua esquerda, aliando esforços com a Izquierda Unida, onde está o Partido Comunista Espanhol — do qual Pablo Iglesias foi militante na sua juventude. A soma dos dois partidos não se refletiu nas urnas e, em total, perderam cerca de 1 milhão de votos, mantendo-se no terceiro lugar.
“O que fizemos nos últimos dois anos é histórico, mas esperávamos resultados diferentes”, disse Pablo Iglesias naquela noite. “Os resultados surpreenderam-nos a todos.”
O “populismo light” de Errejón contra o “populismo hard” de Iglesias
É este o resumo da história do Podemos e também da vida política de Pablo Iglesias — até há pouco tempo, as duas coisas eram sinónimos. O mesmo não se pode dizer com todas as certezas sobre o futuro do Podemos, que este fim-de-semana se junta para o seu segundo congresso — apelidado de Vistalegre II, depois do Vistalegre inicial, em outubro de 2014.
Desta vez, o projeto de Pablo Iglesias é desafiado pelo homem que ao longo dos últimos quase três anos tem sido visto ao lado de Iglesias, desde o discurso congratulatório das eleições europeias à mensagem de pesar das últimas eleições gerais. Trata-se de Iñigo Errejón, fundador do Podemos, número dois de Pablo Iglesias e agora o seu maior rival no seio do maior partido da extrema-esquerda espanhola.
Este fim-de-semana, há duas visões para o partido em disputa. De um lado, está Pablo Iglesias, que acredita que partido se deve manter na extrema-esquerda, manter ou até reforçar os laços com os comunistas da Izquierda Unida, fixando “um pé nas instituições e mil pés nas ruas”. Do outro, está Iñigo Errejón, que quer um Podemos mais aberto ao diálogo com os outros partidos — sobretudo ao PSOE — e que não se “feche sobre si mesmo, mais estreito, sempre com a armadura e mais longe do nosso país”.
“Errejón defende o populismo light e Iglesias defende um populismo hard“, resume ao Observador Iván Gil, jornalista que escreve sobre o Podemos para o El Confidencial. “Iglesias quer levar agora o partido às raízes das eleições europeias e Errejón quer dar um passo à frente.”
Ainda assim, o debate que antevê o Vistalegre II tem sido muito pouco político. Mais do que isso, tem sido a troca de acusações e até de insultos que marcaram a discussão dentro deste jovem partido, onde foram cavadas trincheiras bem profundas. Tudo isto faz-se em torno das figuras de Pablo Iglesias e Iñigo Errejón e não necessariamente dos seus projetos. Rapidamente, o partido que queria “assaltar os céus” deixou-se cair na “máquina de lama”, expressão de Umberto Eco que tem sido muito evocada nos últimos tempos por aquelas paragens.
“O Podemos está agora a ser vítima da sua praxis“, diz Iván Gil. “A maquinaria de guerra eleitoral deles sempre teve um toque de populismo, que até agora era aplicado contra um inimigo externo. Agora, o inimigo é interno. E o que estamos a ver agora é o que o populismo faz melhor: ao mesmo tempo que finge que está a discutir política, deixa esta para o lado e aproveita para falar de outras questões.”
Se perder, Pablo Iglesias já garantiu que se demitirá da liderança do partido. Porém, Iñigo Errejón quer que este se mantenha no cargo, mesmo que saia derrotado. “O meu secretário-geral é o Pablo Iglesias”, disse, garantindo que na segunda-feira devem “remar juntos”. Mas a união parece um cenário cada vez menos provável.
Quando Iglesias “adotou” Errejón
À primeira vista, tudo parece ir bem entre Pablo Iglesias e Iñigo Errejón — e consequentemente com o Podemos. A 15 de dezembro do ano passado, chegaram a beijar-se na boca, a pedido de uma apresentadora do Intermedio, um programa de notícias satírico. “É só marketing político”, desvaloriza Iván Gil, a rir.
A relação entre os dois sempre foi feita de tensão e amizade. Conheceram-se na Universidade Complutense de Madrid, onde estudaram Ciência Política, no início da década passada. Segundo contou Pablo Iglesias à Cadena Ser, já lhe tinham falado de um “miúdo” que diziam ser “muito inteligente e que parecia ter seis anos”. Na verdade, Iñigo Errejón teria cerca de 19 anos e Pablo Iglesias estaria pelos 24. O encontro deu-se quando o mais velho deu com o outro “sentado à porta da cantina” a segurar num “bocado de pão, no qual deitava um bocado de açúcar”. Chegou-se ao pé dele perguntou-lhe: “Porque é que comes o pão com açúcar?”. “É que assim é como se fosse um suíço”, respondeu-lhe Iñigo, referindo-se aos pães de leite com uma camada de açúcar populares em Madrid.
“Claro que nesse momento deu-me vontade de adotá-lo e, efetivamente, adotei-o”, contou naquela entrevista de novembro de 2015, quando o conflito ainda estava longe de ser aberto e declarado de forma pública.
Ainda assim, as discordâncias entre os dois eram assumidos e conhecidas há muito tempo, mas o respeito entre os dois também estava lá. Na sua tese de mestrado, de 2012, Iñigo Errejón fez questão de sublinhar isso mesmo nos agradecimentos, onde incluiu Pablo Iglesias. “Conhecemo-nos, enfrentamo-nos, mas não demorámos muito a compreender que vínhamos do mesmo sítio e devíamos olhar um pelo outor porque nos faltava muito caminho para percorrermos juntos”, escreveu. “Em Pablo Iglesias encontrei um companheiro de mente incisiva e vontade bolchevique, tal como um permanente estímulo intelectual. Ele ensinou-me que a arte da guerra se pratica com método e perseverança, com mais ações do que palavras, como gosto.”
Em vésperas do Natal passado, e a um mês e meio antes do congresso de Vistalegre II, pablistas e iñiguistas deixaram de lado quaisquer cerimónias. A luta foi aberta nas redes sociais, entre posts patrocinados no Facebook (a campanha Iñigo Errejón gastou 9875 euros para promover publicações, a de Pablo Iglesias ainda não deu números), mensagens privadas no Twitter e também no Telegram. O início foi dado quando o iñiguista José Manuel López foi substituído do cargo de porta-voz do Podemos de Madrid pela pablista Lorena Ruiz-Huertas, após votação interna. Ainda assim, alguns no setor iñiguista queixaram-se de uma “purga” e o próprio Iñigo Errejón escreveu no Twitter: “Este não é o caminho”.
A resposta do lado pablista surgiu com uma campanha naquela rede social, com a hashtagh #IñigoAsíNo — que em português seria algo como #AssimNãoIñigo.
Do lado iñiguista, as acusações da “purga” em curso no seio do Podemos apenas cresceram. O líder do Podemos de Valência chegou até a comparar Pablo Iglesias com Saddam Hussein e Francisco Franco, acusando-o de, tal como aqueles ditadores, querer passar a imagem de que “entre o líder carismático e o povo não há nada”.
“A maneira como o debate tem sido feito tem ajudado a reforçar a ideia de que o Podemos é um partido pouco sério e imprevisível”, diz ao Observador Berta Barbet, especialista em comportamento político e opinião pública e editora do site Politikon, onde escreve um grupo de politólogos independentes. Ao mesmo tempo que o Podemos vai estar reunido, também o PP estará em Congresso. Aí, Mariano Rajoy não encontrará nenhuma oposição, servindo aquele encontro para reforçá-lo ainda mais. No El País, o jornalista Rubén Amón fala deste fim-de-semana de congressos partidários como sendo de “Êxtase e Tragédia” — restando poucas dúvidas de qual deles cabe ao PP e qual sobra para o Podemos. “Será muito difícil desligarem-se desta ideia durante este fim-de-semana”, diz Berbat Barbet do atual clima no partido liderado por Pablo Iglesias.
Jorge Lago, militante e fundador do Podemos, cujo think-tank, 25-M, é por ele dirigido, lamenta o tom do debate no seu partido. Em entrevista ao Observador, deixa críticas ao lado pablista: “Assinalar num debate público que não se está de acordo com uma decisão não é o mesmo do que fazer uma campanha dirigida contra uma pessoa”, diz. Porém, não aponta o dedo ao secretário-geral do partido. “Mas a culpa não é de Pablo Iglesias, mas sim de algumas pessoas que o rodeiam”, acrescenta, sem querer adiantar nomes. Jorge Lago, em cuja casa foram feitas algumas das primeiras reuniões do Podemos aquando da sua fundação, parece ainda ter pejo em criticar o líder do partido.
Mas o próprio Pablo Iglesias rejeita esta ideia de que aqueles que o rodeiam são a face má deste debate. “Se temos diferenças políticas, há que assinalá-las, mas não devemos andar à procura de fantasmas”, disse ao El País. “Querer descredibiliar as ideias de alguém dizendo que alguns companheiros formam um grupelho é uma vergonha.”
“O problema do Podemos é não ter uma maneira de subir ao poder”
Ao mesmo tempo que todo este ruído domina o debate interno do Podemos, perdura uma certeza: se não houver nenhum sobressalto, as próximas eleições gerais espanholas serão apenas em 2021. E, para Berta Barbet, é precisamente a espera até lá que mais deve preocupar o Podemos. “Sem eleições à vista, também não há maneira de o Podemos subir ao poder tão cedo quanto isso”, diz.
Para Jorge Lago, essa espera até 2021 deve ser usada para mudar as dinâmicas do Podemos, argumentando que agora já não basta ser uma “máquina de guerra eleitoral”. “Estamos numa situação diferente, que permite e até certo ponto obriga a que a estrutura não seja esta maquinaria eleitoral”, defende. “O Podemos tem agora de funcionar como queremos que o Estado espanhol funcione, uma espécie de prólogo.” O que, nas suas palavras, é o sinónimo de “um partido mais inclusivo, mais aberto a todos os cidadãos, mais transversal, com clara participação de género, com pessoas de vários quadrantes”.
Jorge Lago, como iñiguista que é, gostava de ver o Podemos mais disposto a olhar para fora das suas linhas. “O Podemos tem de mostrar-se útil à população espanhola já, não só aos cinco milhões que votaram em nós mas também aos outros que não votaram em nós”, diz. “Não podemos dizer a essas pessoas que não soubemos convencer, mas que ainda assim simpatizam connosco, que não há nada a fazer até às próximas eleições. Temos de subir a nossa parada no parlamento e posicionar-nos na agenda política.” Assim, defende o militante do Podemos, o partido deverá ser “uma organização muito mais aberta, democrática, porosa”.
A esquerda em suspenso
Mesmo que se torne em tudo o que Jorge Lago defende, no atual quadro político, o Podemos não conseguirá cumprir o seu objetivo de governar, olhar para a sua direita e chegar a qualquer tipo de acordo com o PSOE — algo que, sob a batuta de Pablo Iglesias, e confirmando uma decisão de quase 90% dos militantes, rejeitaram em abril de 2016.
Diz o Jorge Lago que o Podemos “não pode viver obcecado com o PSOE”. “Golpear o PSOE de forma constante e irrefletida é contraproducente e fecha-nos a uma parte do eleitorado”, explica. “Taticamente, é mais inteligente estender a mão ao PSOE para que as suas contradições sejam expostas e eles se sintam obrigados a corrigirem-nas.” Jorge Lago tem três referências para sustentar o que diz: o acordo de Ada Colau com os socialistas em Barcelona; o entendimento de Manuela Carmena em Madrid; e o que se passa em Portugal, entre o Partido Socialista e os partidos à sua esquerda. Para este fundador do Podemos,”o Bloco foi inteligente” e admite “é interessante estudar” o que está a ser feito por cá.
Afinal, neste momento, também o PSOE vive uma guerra interna, depois de ter saído das eleições de 2015 e de 2016 com os seus piores resultados de sempre. Pressionado pelos barões e direções regionais do partido, Pedro Sánchez demitiu-se do cargo de secretário-geral em outubro. Agora, é de novo candidato às primárias, que acontecerão em finais de maio. Terá pela frente Susana Díaz, que conta com o apoio das estruturas do partido — mas que poderá não ser tão forte entre as bases como Sánchez.
Do lado dos socialistas, Susana Díaz deixa claro que não é com o Podemos que alguma vez quererá entrar em acordo. Já Pedro Sánchez, que nunca conseguiu concretizar qualquer aliança com Pablo Iglesias, vê com bons olhos uma subida de Iñigo Errejón à liderança do Podemos. “Creio que o Podemos de Errejón se entenderia com o PSOE de Sánchez”, disse em entrevista ao 20 minutos.
Tudo isto pode ser um cenário válido entre aqueles que querem contrariar a direita espanhola. Mas são muitos ses e ainda mais as incertezas que a esquerda terá pela frente. A primeira será esclarecida já na próxima segunda-feira: conseguirá o Podemos recomeçar o seu “voo até aos céus” depois de ficar com as asas tão pesadas da lama dos últimos meses?
“É quase impossível”, diz Iván Gil, que aposta mais na “excisão ou retirada” do setor derrotado “a médio prazo”. “Quem ganhar vai impor a sua própria equipa e evitará que o outro setor conte com cargos de responsabilidade”, diz.
Berta Barbet está de acordo. “O perdedor não vai querer continuar a ser humilhado e o vencedor poderá querer humilhar o perdedor”, prevê a politóloga.
Estamos então perante um período negro para o Podemos, independentemente do projeto vencedor neste fim-de-semana?
“Depende de quais são as expectativas”, diz. “O Podemos assim não vai governar tão cedo. Vão ser a segunda ou terceira força durante uma larga temporada. Mas isto em si já é um feito. Um partido que em três anos conseguiu 20% não é um falhanço.”