É uma actividade cíclica na História da arte. De tempos a tempos, há uma espécie de movimento moral que espolinha contra obras consagradas, brade contra indecências de vária espécie e motiva artigos sobre o regresso da iconoclastia.
Casos recentes: em 2009, a Tate Modern, em Londres, retirou uma fotografia da actriz Brooke Shields nua, com 10 anos, da autoria do americano Richard Prince. Em 2016, por exemplo, um utilizador do Facebook entrou em conflito com a rede social, que o baniu depois da publicação de uma imagem de “A Origem do Mundo”, de Gustave Courbet. E há quem pergunte se não devemos parar de olhar para as obras de Caravaggio, o mesmo que matou um homem.
Os casos mais actuais são os de Balthus e Waterhouse, condenados sem possibilidade de defesa no tribunal do retorcido moralismo contemporâneo.
As acusações são tão espúrias e tão serôdias, que não merecem grande discussão. Quer na forma cobarde arranjada pela Manchester Art Gallery – que removeu o quadro “Hilas e as Ninfas” de Waterhouse para “motivar a reflexão e a discussão” –, quer nas mais claras acusações de erotismo infantil contra Balthus, se percebe a artificialidade das exigências. O quadro “Thérèse Dreaming” motivou uma petição em Dezembro de 2017 que exigia que fosse retirado do Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque. O museu recusou.
Os casos pouco têm que ver com o papel ético da arte, ou mesmo com a questão das imagens sexuais infantis: para já, porque as imagens ou têm pouco de infantil, ou pouco de sexual; além disso, não há em nenhuma das obras sinal de apoio ou de concordância com as pretensas imagens sexuais.
Assim, embora as remoções não constituam exactamente um “sinal dos tempos”, dado que a maior parte das pessoas as vê como um exagero, elas continuam a ter um papel social e artístico relevante. Isto é, embora remover o quadro de Balthus em que se vê uma rapariga de cuecas seja um exagero, a verdade é que este tipo de exageros só costuma acontecer em relação a ideias já bem sedimentadas na consciência colectiva. Seria impossível surgir nos dias de hoje uma Inquisição a propor que se proibissem obras heréticas; este surgimento só é possível numa época em que de facto é pacífica a ideia de que a heresia é um mal. Assim, este tipo de movimentos, com os seus ridículos e os seus absurdos, têm a vantagem de fazer perceber quais são os dogmas morais do mundo contemporâneo.
A proscrição de quadros levemente sugestivos em relação a crianças (ou adolescentes, no caso de Waterhouse) demonstra bem, não só o papel diabólico que a pedofilia ganhou no nosso imaginário colectivo, mas também o papel sagrado da criança. Ora, é este caso em particular que torna a retirada dos quadros mais grave do que aquilo que é habitual.
A retirada da estatuária nacionalista das ruas espanholas significa apenas uma mudança ideológica; a retirada dos quadros, porém, não significa apenas uma mudança ideológica, mas tem também a particularidade de o fazer num método que lhe é particularmente atreito.
A ideia das crianças como anjos puros, que devem ser protegidos, é que leva à ideia da retirada. As crianças merecem ser protegidas, de tal forma que os adultos que anseiam ser como crianças vêem a protecção como um bem legítimo. Já não se suscita a reflexão com a visão do quadro, não se procura o olhar crítico, nem o confronto com o erro para explicar o bem; a natureza angélica pede para ser conservada, não fortalecida. A maneira de lidar com o mal é, não rebatê-lo, mas evitá-lo – como se a pureza se estilhaçasse à simples visão do horrendo.
Ora, este modo de ver é importante porque implica uma forma de olhar para a arte completamente diferente daquela que foi a visão preponderante dos últimos séculos.
A arte contemporânea sempre ganhou respeitabilidade com a denúncia. A representação de ambientes tétricos, as prostitutas de Toulouse-Lautrec ou o povo do neorrealismo, a chamada de atenção para os desfavorecidos como uma forma de lhes “dar voz” foi, ao longo dos séculos XIX e XX, uma forma de compromisso ético da arte. O que acontece com esta forma de ver é que a simples representação deixa de ser uma denúncia para passar a ser já uma legitimação.
Kurt Vonnegut, em Matadouro Cinco, já antecipa este tipo de olhar quando critica os romances de guerra, mesmo aqueles que a denunciam, como forma de elevar a guerra ao estatuto artístico – isto seria, sempre, mais do que ela merecia. O que se passa com este olhar contemporâneo é precisamente o mesmo. O estatuto ético da arte é reduzido ao louvor e a única forma de denúncia é o silêncio.
Não é preciso ser um defensor da arte pela arte, da subsistência do belo mesmo entre o horrendo, para se perceber os limites deste tipo de visão. Como em qualquer tipo de iconoclastia, este também sacraliza e reduz a obra de arte ao pensamento do iconoclasta. A arte vista sempre como um louvor, sem ponta de subtileza e com todas as limitações que este tipo de olhar provoca, não só coarcta toda a liberdade, como instrumentaliza de forma completamente abusiva toda a arte.
O que é perigoso, nesta forma de olhar, não é a tentativa de reescrever a História, com novos heróis e vilões. Isto, de uma forma ou de outra, mais ou menos consciente, sempre foi feito; o que é estranho é a completa irrelevância da História.
Todas as correntes artísticas têm a sua galeria de leprosos. Mesmo as correntes vanguardistas, na sua senda de originalidade a todo o custo, têm nos academismos canónicos os seus vilões artísticos. É ingénuo, também, pensar que há correntes livres de uma compreensão moral da arte; a forma de olhar para ela implica sempre um tipo qualquer de moral, seja a moral abjecta, do desinstalar, do figurino maldito, seja a moral mais clássica e vitoriana.
O que é raro acontecer, porém, é esta perda de subtileza, de tal forma que o escárnio, a crítica, a ironia, ou simplesmente a fiel representação de um tipo, já não são formas válidas de representação daquilo que nos repudia. Neste modo de ver, nem a Igreja poderia tolerar as Tentações de Santo Antão por representarem o Inferno, nem Eça poderia escrever sobre o conselheiro Acácio. Ficaria apenas um mundo estranho, em que não seriam toleradas as matizes e os labirintos que são, precisamente, o sal da arte.