Com a estreia de “Great Yarmouth: Provisional Figures”, Marco Martins fecha dois ciclos. Um, no cinema, com a atenção que deu aos efeitos da crise iniciada em 2008 – “foi um acontecimento muito importante para a minha geração”, diz ao Observador; e outro, na relação da própria vida com o projeto Great Yarmouth, que nasceu primeiro como peça de teatro (estreada em 2019) e que se desenvolveu naturalmente para um filme.
Great Yarmouth é uma cidade na costa leste da Inglaterra. Em tempos foi um local de férias, hoje assemelha-se a uma cidade fantasma, para onde muitos portugueses começaram a ir para trabalhar na indústria de transformação de carnes. É sobre isso que “Great Yarmouth: Provisional Figures” trata, é um retrato do ciclo de vida deste tipo de trabalhador, que foi – e continua a ir – em modo de sobrevivência, à procura daquilo que não encontra em Portugal: uma estabilidade mínima. Marco Martins não é meigo a mostrar como o trabalho é duro, impróprio e violento. É o que é, não poderia ser de outra forma.
A transfiguração de Beatriz Batarda no gelo e nas sombras de “Great Yarmouth: Provisional Figures”
No filme há atores e não-atores. No centro está Tânia (Beatriz Batarda), a mãe dos portugueses. Ou seja, é ela a cara do início da exploração, cuida e trata deles, retém os seus passaportes e tenta garantir que todos os dias vão para o trabalho. Já trabalhou nas fábricas, por isso conseguiu uma espécie de ascensão social, o reconhecimento possível dentro daquele grupo fechado. O que o filme diz é que não há muitas histórias como as da Tânia, a maior parte dos portugueses vai para lá sazonalmente, no Natal ou na Páscoa, e regressa a Portugal. Alguns ficam, poucos conseguem sair da indústria.
[o trailer de “Great Yarmouth: Provisional Figures”:]
Tânia não se quer ficar por aí. Sonha em gerir um hotel e ao longo do filme ouvimo-la a decorar palavras em inglês que farão parte desse sonho que, à medida que o tempo passa, parece cada vez mais distante. Não porque haja algo contra ela que a coloque noutra direção, mas porque a realidade à sua volta toma conta do espectador e este rapidamente encara aquilo tudo como uma ilusão. É o english dream desfeito, ou a desfazer-se, à frente dos nossos olhos. Por causa dessas frases de Batarda, “Great Yarmouth: Provisional Figures” parece por vezes um mantra de algo destinado a falhar. Crueldade real ou realidade ficcionada, é definitivamente a última solução para muitos.
Marco Martins não está parado. Paralelamente ao cinema, tem uma vida no teatro e, ao mesmo tempo, na publicidade. Cinema e teatro, ou teatro e cinema, viveram em paralelo em “Great Yarmouth” e, nesse processo, Marco Marins foi fazendo outras coisas, como a peça “Selvagem” ou o filme “Um Corpo que Dança — Ballet Gulbenkian 1965-2005”, que o salvou durante o confinamento (a pandemia obrigou-o a parar a rodagem de “Great Yarmouth”). Estivemos à conversa com o realizador, sobre o filme e sobre tudo o resto, depois de mais uns quantos voos.
Sei que esteve em viagem. Está tudo a correr bem na reta final antes da estreia de “Great Yarmouth — Provisional Figures”?
Sim, estou ótimo. Estou contente por ter o filme quase a estrear-se. Vim agora do Reino Unido com a Beatriz [Batarda]. Correu super bem.
Onde esteve a mostrar o filme?
Em Glasgow.
Os portugueses com quem filmou, já o viram?
Ainda não, estou à espera de mostrar o filme lá mais perto [de Great Yarmouth] e fazer essa mostra, que vai ser uma coisa épica, vai ser uma projeção importante. Embora muitos deles já não vivam lá. Aquilo é um sítio com trabalhadores sazonais. Há um lado de reconhecimento, outro de recusa. Tive isso com a peça, que já tinha muito material que explorei no filme. Há dois tipos de reações. A daqueles que veem o filme como um espelho, que revela aquela vida através do meu olhar, que é exterior. A ideia de alguém que olha para aquele universo, que se dedica a ele. Mas depois há reacções mais reservadas, que não querem muito falar do trabalho delas ali, até porque o que elas contavam às famílias, amigos, era bastante diferente. Havia uma mitificação do que faziam ali, como se estivessem a viver uma espécie de english dream. Olhamos sempre para Inglaterra como um país mais desenvolvido, com mais condições. Isso não é necessariamente verdade, é só mais rico. E mostrar isso a toda a gente pode implicar uma certa desilusão.
Existe a ideia das zonas balneares britânicas serem todas como Brighton, de corresponderem ao imaginário que se vê na ficção, nos programas ingleses. Mas quando as conhecemos de facto, percebemos que existe muita decadência.
E abandono. Great Yarmouth é um bocado uma cidade fantasma. Era uma ideia que tinha muito presente quando estava a trabalhar o filme, esta ideia dos zombies, da zombieficação das pessoas, que é brutal. Tem a ver com a natureza do trabalho, o cansaço, a forma como aquelas cidades foram símbolos de coisas que já não existem.
E continuam como outra coisa qualquer.
A maior parte delas desapareceram com a economia low cost, os voos, os hotéis, as férias low cost. A partir de finais dos anos 1980, inícios de 1990, com a explosão das viagens aéreas, estas cidades costeiras deixam de ter pessoas e começou a ir tudo para o Algarve, para Espanha, para a Turquia, com acontece no “Aftersun”. Nesse filme está exatamente a classe social de Great Yarmouth, isso é muito interessante de ver.
Em 2017 dizia que este era o seu grande projeto. Ainda é?
Acho que está terminado. De alguma forma, era a continuação do “São Jorge” [filme de 2016, protagonizado por Nuno Lopes], para mim foi muito evidente fazê-lo. Quando acabei o “São Jorge”, não tinha um guião para o próximo filme: não preparo filmes antes de uma estreia, é quase como se não conseguisse pensar nisso… Bom, talvez não seja bem verdade agora, já estou a trabalhar noutro filme, mas isso é porque o “Great Yarmouth” demorou tanto tempo a estrear-se. Mas acho que fechei um ciclo. Aquela crise de 2009-2014 foi um acontecimento muito importante para a minha geração. Revelou toda a hipocrisia deste sistema neoliberal, esta livre circulação de pessoas e a forma como os grandes poderes económicos gerem as nossas vidas. O meu cinema mudou nessa altura e este é um fechar de um ciclo. Com isto não quero dizer quer não esteja atento a estas questões, mas o meu próximo filme já não é sobre isso.
O que estamos a viver agora, não se assemelha a uma eventual uma “parte 2” dessa crise? E não o incentiva a continuar?
Incentiva e acho que o meu trabalho de teatro pode continuar a explorar esse tipo de áreas. O meu próximo espectáculo chama-se “Pêndulo”, vai estrear-se em junho no São Luiz e é sobre a migração para Portugal, sobre cuidadores. Há outras questões que me interessam. Por exemplo, esta ascensão da extrema direita. O meu próximo filme anda mais por aí do que sobre um foco em grupos sociais desprotegidos ou invisíveis, se quisermos entender assim.
Alguma vez se sentiu como um estranho no teatro, porque vinha de outras áreas?
Como trabalho em áreas tão distintas – cinema, teatro, mesmo publicidade, que faço menos agora, mas ainda faço, documentários, e há dois anos tive uma exposição no CCB com a Fernanda Fragateiro —, durante algum tempo sentia-me um estrangeiro naquele meio. Hoje em dia já não é verdade, essa posição está estabelecida. Por me mover em tantas áreas, já não sinto uma rejeição no teatro. O teatro que eu faço é particular, não é de texto, e cada vez convoca mais não-atores. Nesse sentido, sinto-me algo independente da maior parte das linguagens.
Tem por hábito ir buscar talento inesperado, até de o potenciar. Assim de cabeça, estou a lembrar-me do Miguel Abras para trabalhar no som de uma das suas peças.
Queria fazer um trabalho a partir de alguns sons tradicionais, quer de Portugal quer da Sardenha. Não só ligados ao Carnaval, mas à música tradicional, mais antropológica desses lugares. E estava à procura de alguém. Sou muito amigo do André Cepeda [fotógrafo] e ele falou-me do Miguel, que tinha gravado um disco com ele e com a Maria Reis [Live Performance, 2018]. Gostei do som, tinha uma profundidade e fisicalidade, um som gutural como uma tempestade e gostei de como a música esta produzida e construída. E convidei o Miguel, trabalhámos juntos e demo-nos muito bem. Ele nunca tinha trabalhado em teatro e estes são projetos muito longos e partilhados. Fomos capturando muitos sons juntos, desde ir a uma aldeia gravar uma senhora, ou o som de uma igreja, ou da água de uma gruta específica. Foram sons que fomos captando e que fizeram parte do universo do “Selvagem”. Gostei de trabalhar com o Miguel nesse sentido, foi tudo partilhado, criaram-se muitas cumplicidades. Só descobrimos se conseguirmos trabalhar com uma pessoas quando de facto o fazemos. É como os casamentos, os namoros, podemos falar, mas só quando começamos a desenvolver a relação é que percebemos se vai funcionar ou não.
Falou há pouco de “não-atores”. Porquê essa escolha?
O meu trabalho é muito específico. É de construção de uma peça ou de um filme em torno das vidas de pessoas. Como na literatura existe a Annie Ernaux, a autoficção: o meu trabalho é mais nesse sentido, não penso nestas pessoas propriamente como não-atores. Esta próxima peça que vai estrear-se no São Luiz tem uma série de mulheres imigrantes, tem cuidadores. E vai sendo construido à medida que vou fazendo as entrevistas que faço com o José Pires, com quem tenho trabalhado e que é próximo de tudo isto. Não estou a escolher um ator, estou a escolher uma pessoa com quem me interessa desenvolver um trabalho, cuja vida me interessa. Tudo o que possa fazer em palco, já me interessa, não tanto numa ideia de direção de atores, mas de construção dramatúrgica, a partir de uma pessoa e de um corpo.
O corpo é muito importante em “Great Yarmouth”?
Está muito presente no filme, é o corpo económico. O nosso corpo é o reflexo da economia que nos rodeia. Agora existem estes estudos, pessoas como nós passamos mais tempo sentados do que a dormir. Mas depois há aquelas pessoas que não param, como a Tânia [personagem do filme, interpretada por Beatriz Batarda], pessoas que se alimentam mal, que dormem mal, que tomam muitos comprimidos para dormir porque não conseguem de outra maneira. Esses corpos interessam-me cada vez mais, mais do que um corpo treinado de um ator, que vai ter um processo de apropriação em relação a uma determinada personagem. Além disso, os atores, dada as condicionantes da economia do mundo em que se movimentam, têm cada vez menos disponibilidade para isso: estão sempre ocupados, ou a fazer outro filme, ou uma série, ou teatro. Por isso, também começa a ser difícil encontrar atores a quem este tipo de trabalho interesse, trabalho de profundidade, de transformação, de violência. Têm que se sujeitar a muito. Um papel como o da Beatriz ou do Romeu [Runa] demora muito tempo a recuperar. Eles trabalharam todos nas fábricas, a Beatriz trabalhou em bares de Great Yarmouth. É um trabalho muito exigente, de grande risco e não há assim tantos atores para trabalhar nestas condições. Cada vez gosto mais de trabalhar com não atores. É gratificante, há uma troca grande, recebemos muito enquanto encenadores, enquanto realizadores. E quero continuar a desenvolver isso.
Também os obrigou a dormir naquele hotel?
Por vezes eu dormia. O hotel é o Royal Hotel, onde o Charles Dickens escreveu o David Copperfield. Fiquei no mesmo quarto, era o meu atelier, onde estava a trabalhar e a escrever o filme.
Escolheu por causa do Dickens?
Não, foi um acaso. Ou se calhar não foi um acaso assim tão grande. Os acasos têm que se lhe diga. Mas ficar naquele quarto, isso foi de propósito.
Voltando a 2017, o que o levou a Great Yarmouth?
Não conhecia de todo, foi um amigo meu, produtor, Renzo Barsotti, que tinha sido convidado por uma associação [Arts Council and the Sea Change]. Foi isso que me levou lá pela primeira vez, um convite do Renzo. Esta associação tem um cariz social e artístico, operava no interior da sociedade para fazer a transformação através da arte. Eles começaram a sentir que havia vários portugueses na zona, na altura eram cerca de sete, oito mil, com os quais não tinham qualquer contacto, não conheciam nada. Foi daí que nasceu esta ideia, eles convidaram, eu comecei a fazer uma série de entrevistas a trabalhadores portugueses e depois nasceu a ideia do filme.
Antes houve a peça.
Sim, em 2016 e 2017. A ideia era desenvolver um trabalho com a comunidade portuguesa. É isso que eu faço para a construção da peça. Era toda com não-atores, ingleses e portugueses. Fiz isso durante dois anos. Durante esse processo, começou a ser evidente de que havia um filme. E começo a trazer atores para Great Yarmouth, o Romeu Runa e o Nuno Lopes, para terem contacto com as pessoas, com o lugar, e para desenvolver trabalho para o filme. A peça estreou-se em 2019 em Norwich, viajou e, nessa altura, já estava com o guião do filme muito adiantado.
Qual foi a reação à peça em Inglaterra?
Bom, além da peça já tenho a reação do filme também. O filme é distante do realismo social inglês, é uma inevitabilidade e, por um lado, é propositado, e tem a ver com a minha linguagem. Há um lado negro sobre aquela realidade, tem muito pouca esperança e há uma grande deformação das pessoas que se têm de sujeitar àqueles trabalhos. A minha expectativa era de que a reação viesse com a ideia de que é alguém de fora a falar do seu país. Isso também acontece com Portugal, por exemplo, quando o Wim Wenders ou o Alain Tanner vieram cá filmar: ele não conhece, não viu, não está a falar de dentro. E acha-se sempre que há uma folclorização da realidade de cada sítio. Contudo, foi muito boa, foi diferente, porque é esse o lugar das artes e não do ativismo, de fazer perguntas e mostrar uma realidade às pessoas que desconhecem por completo. Em Glasgow, por exemplo, havia pessoas que tinham passado férias em Great Yarmouth, ou pessoas que deram aulas em Norwich, que desconheciam por completo esta realidade. Havia uma senhora emocionada no fim, que viveu a 200 metros da fábrica [Bernard Matthews Foods Limited] e que desconhecia por completo esta realidade. E atenção: era uma realidade que se passava à porta de casa dela. A reação tem sido bastante forte e emocional.
Como português que passa o Natal em Inglaterra, o próximo peru não me irá saber tão bem.
E aquela fábrica é uma fábrica icónica das famílias inglesas, o dono aparecia nos programas de televisão durante o Natal, era protagonista dos anúncios.
Aquele movimento durante a campanha de Natal é real?
Sim, é o mês que a cidade tem mais portugueses. Há pessoas que só vão para a campanha de Natal ou da Páscoa. Há muitas encomendas dos supermercados. Há dias em que trabalham só para uma companhia de supermercados. E há a possibilidade de fazer dois turnos, trabalhar muitas horas. E é aí onde há mais portugueses, porque fazem mais dinheiro.
Há pouco falava de alguns não se sentirem à vontade por causa do imaginado english dream. Os que ficam ainda vivem com alguma ilusão ou há coisas boas que se concretizam?
Há pessoas que foram para lá trabalhar nas fábricas de transformação animal e que acabaram por ficar e sair desse trabalho. Há uma rua chamada King Street que, neste momento, é quase só cafés, supermercados e cabeleireiros portugueses. Há uma grande comunidade. Outro lugar onde os portugueses são muito requisitados é como cuidadores de idosos, na assistência social. Essas pessoas acho que gostam de viver ali. Não sei se é o english dream, mas acreditam que aquele país lhes deu mais oportunidades do que Portugal e que o trabalho deles é mais relevante do que em Portugal. É uma minoria grande. Contudo, a grande maioria deles regressa, com mazelas grandes, psicológicas e físicas. É um trabalho duro. Uma ou duas das pessoas que trabalharam na minha peça ainda continuam por lá, todas as outras já regressaram. É uma emigração distinta da portuguesa para França ou para a Alemanha nos anos 1960 e 1970. Esta é de sobrevivência, fazem-no para sobreviver, não para depois abrir um restaurante na aldeia, construir uma casa. Não é de todo isso.
O início do filme é muito visual, gráfico, visceral…
Há mais sangue neste filme do que em muitos filmes de terror.
Choca ver o sangue a ser limpo assim.
É verdadeiro, não é artificial. Aliás, não tinha coragem para imaginar cenas com tanto sangue.
De onde vem a maioria dos portugueses que encontrou por lá?
De todo o país, Norte, Sul, Lisboa, arredores de Lisboa, Algarve. E são pessoas com backgrounds diferentes, professores, pessoas que nunca trabalharam numa fábrica, que tinham outro géneros de trabalhos e qualificações. Ou que fizeram o ensino universitário e que não encontravam em Portugal trabalho, estabilidade. Também muitas vezes a vida delas estava destruída, por uma razão ou outra. A emigração traz a hipótese de recomeçar a vida noutro sítio, quase do zero, de procurar uma reinvenção. Há muitas pessoas que se reinventam, mudam o visual, fazem tatuagens, piercings, por isso é que a Tânia tem tantas tatuagens. Libertam-se da família, dos círculos onde se movimentam.
No filme também vemos máfias a operar. Existem mesmo?
Sim, têm um nome, são “gang masters”. Através do Google é fácil encontrar departamentos do governo inglês que tentam travá-las. Existe mesmo muito. E tem este nome de filme de ação, são grupos organizados que trabalham no recrutamento de pessoas de forma ilegal e que criam estas redes de exploração. Por lá, a mãe dos portugueses era inglesa, não era portuguesa. Isso é uma criação ficcional minha, achei mais interessante a Tânia ter começado a trabalhar na fábrica e depois tornar-se uma exploradora, entrar no ciclo da exploração.
Ascendeu socialmente, por assim dizer.
Exato.
Foi obrigado a interromper o filme durante a pandemia. Que sensação teve?
Foi muito doloroso, fomos obrigados a regressar. E eu não queria regressar, embora tivesse a minha família em Portugal. Sabia que em Portugal já estavam em confinamento, por isso não vinha para Portugal fazer nada, porque em Inglaterra estava tudo aberto, a funcionar. Mas fomos obrigados, recebemos um telefonema a dizer que aquele era o último avião a sair de Inglaterra e se não viéssemos, teríamos de ficar lá por tempo indeterminado. O filme foi interrompido após duas semanas de rodagem e foi terrível. Profissionalmente, foi o pior momento da minha vida. Não queria voltar para Portugal. Sabia que seria difícil retomar o filme, garantir orçamento, décors, equipa… e não sabia, como ninguém sabia, quando iria recomeçar. Felizmente, nesse período houve uma coisa importante, a Gulbenkian convidou-me para fazer “Um Corpo que Dança — Ballet Gulbenkian 1965-2005”, que já tinha recusado várias vezes, ainda enquanto o Jorge Salavisa era vivo. Achei que poderia ser uma homenagem a ele e que me iria fazer bem à cabeça, para não ficar louco, à espera que tudo recomeçasse. Foi a minha terapia. Depois, o retorno foi mais ou menos natural, recebemos mais apoio, houve uma série de apoios para filmes que pararam durante a pandemia, sobretudo do BFI [British Film Institute].
Isso foi quando?
Setembro. Recomeçámos em outubro. Fomos uma espécie de cobaias, numa altura em que ainda era difícil filmar. Não podíamos sair dos quartos, só para filmar. Éramos testados todos os dias e era muito mais complicado trabalhar com os portugueses que operavam nas fábricas, porque eles tinham de testar, ficar um dia de quarentena no hotel. E era caríssimo, cada pessoas destas, ao invés de ficar um dia connosco, tinha de ficar três dias inteiros. Era uma loucura, foi violento. E, volta e meia, alguém ficava contaminado e isso colocava tudo em questão.
Na altura, como agora, não conseguia estar parado…
Vou tendo energia. Há um lado de mim… sou muito feliz a criar, a trabalhar. A natureza do meu trabalho faz com que ande de um lado para o outro. Essa energia é fundamental. É movida pela minha curiosidade, acho que é a maior virtude de um artista. E tento englobar o que me rodeia, sejam novos artistas, criadores, tento incluir nos meus trabalhos. Há pouco falávamos no Miguel Abras, por exemplo… É isso que me dá esta vontade de constante criação, esta energia.