A primeira palavra que nos ocorre para definir “Great Yarmouth: Provisional Figures”, o novo filme de Marco Martins (“São Jorge”) é “espectral”. Não que tenha um enredo de fantasmas ou de terror, longe disso, mas a atmosfera que o realizador cria e instala — e a maneira como filma e nela envolve as personagens — é de uma história sobrenatural. A segunda palavra é “álgido”. “Great Yarmouth: Provisional Figures” é um filme glacial, em que o frio de gelar está por toda a parte, desde o soturno inverno inglês na cidade costeira do título, até aos ossos e aos corações das pessoas que se movimentam nele.

A fita parte de um espectáculo da companhia Arena Ensemble (fundada por Marco Martins com Beatriz Batarda) e passa-se antes do Brexit, em Great Yarmouth, entre os migrantes portugueses que ali acorrem para trabalhar nas fábricas de processamento de aves, a matar, depenar e embalar perus (Martins fez um prévio e longo trabalho de pesquisa com aqueles). Batarda interpreta Tânia, casada com um inglês boçal, Richard (Kris Hitchen). Ela já trabalhou na indústria das aves e agora negoceia com as fábricas a contratação dos seus compatriotas (os “provisional figures” do título), orientando-os na burocracia e alojando-os nos hotéis decrépitos do marido. Os portugueses chamam-lhe “Mãe”, embora o que há de maternal nela seja mais superficial e oportunista do que outra coisa.

[Veja o “trailer” de “Great Yarmouth: Provisional Figures”:]

Tal como conseguiu deixar de passar horas a degolar, depenar e preparar perus, Tânia quer agora deixar de ser encaminhadora de trabalhadores migrantes e alcançar a segurança e a respeitabilidade, entrando no negócio do turismo para idosos, reformando de alto a baixo os hotéis miseráveis onde os portugueses dormem ao monte, e pondo-os acolhedores para os hóspedes da terceira idade. Por isso, ela passa o tempo a ouvir lições de “inglês turístico” no telemóvel. E a fazer poupanças secretamente, porque o marido joga, e perde, nos galgos, e deve muito dinheiro a gente nada recomendável. A chegada de Carlos (Nuno Lopes), que procura o irmão desaparecido (e de cujo desaparecimento Tânia foi cúmplice), vai complicar tudo.

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“Great Yarmouth: Provisional Figures” tem o cenho carregado e o sol mal se manifesta neste filme feito de negrume, de sombras e de um frio omnipresente, por onde as personagens circulam como espectros. E a face macerada de Tânia faz parecer que ela todos os dias se levanta não da cama, mas do túmulo. Tal como o filme foi drenado de luz e de calor, também dela foram sugadas aos poucos a beleza, a alegria e a compaixão. Só lhe sobra a esperança de um dia deixar para trás este mundo sujo, feio e escuro e as massas de trabalhadores passivos e tristonhos que pastoreia e esmifra, por outro mais limpo, honesto, bonito e feliz, cheio de gente simpática, contente e agradecida, que pratica “line dancing”.

Não há que confundir o naturalismo fantasmagórico de “Great Yarmouth: Provisional Figures” (a fotografia plúmbea é de João Ribeiro) com miserabilismo exibicionista. Marco Martins (também autor do argumento, com Ricardo Adolfo) não rodou um filme de “denúncia” militante, mas sim de descrição do desespero resignado daqueles portugueses desterrados numa terra desconhecida e agreste, que passam horas a degolar, depenar e embalar aves, e a mangueirar-lhes o sangue, as fezes e as tripas, metidos em hotéis esquálidos, de onde são desaconselhados de sair à noite. E dos quais se aproveita alguém que fala a mesma língua que eles e que tratam por “Mãe”.

[Veja uma cena do filme:]

Beatriz Batarda tem uma admirável transfiguração no papel de uma Tânia duríssima e determinada, mas sugerindo que há nela uma capacidade de compaixão e um desejo sincero de ajudar, reprimidos em nome da inflexível vontade de abandonar para sempre aquele mundo de sombras, sordidez e gelo no ar e nas almas (tal como os protagonistas de “Alice” e de “São Jorge”, ela não é uma desistente, e entra assim para a “família” de personagens veementemente tenazes de Marco Martins) Nuno Lopes passa quase de raspão pelo filme, por força das características da sua personagem, e Romeu Runa é Raúl, ex-namorado de Tânia e agora seu braço-direito, protagonista de uma sinistra cena de humilhação por parte do marido daquela, que sublinha a sua condição de destroço ambulante, sem pinga de dignidade nem suspeita de esperança.

A fita peca só por sublinhar com traço muito grosso o paralelo entre o tratamento dos migrantes portugueses e o das aves que estes manipulam; e por não ter eliminado o discurso final do irmão de Richard, o ornitólogo amador que vive quase como eremita nos sapais fora da cidade, sobre os homens e os pássaros, desnecessariamente redundante. Mas nem um nem outro comprometem de forma alguma a expressividade cinematográfica, o realismo soturno e o poder dramático da desoladora verdade humana encenada por Marco Martins em “Great Yarmouth: Provisional Figures”.