Reportagem na Alemanha
Assim que abre a porta de casa e vê Christian Gammelm, de 27 anos, e Eva-Lotta Bvahemeir, de 41, com as caras de Martin Schulz e da candidata local impressas em panfletos com o selo do SPD (Partido Social-Democrata, da família política do PS português), a mulher fica apavorada: “Oh, meu Deus”, grita, apressando-se a recolher contrariada o material de propaganda e a fechar bruscamente a porta, como se tivesse sido acordada por Testemunhas de Jeová num domingo de manhã. Mas é fim de tarde de quinta-feira. E a campanha local do SPD está a tocar às campainhas.
Os membros do partido no bairro berlinense de Mitte estão desiludidos. Mas não desistem. Apesar de saberem que a vitória é praticamente impossível – na última sondagem o SPD surge com 22% das intenções de voto, 14 pontos atrás da CDU de Angela Merkel – continuam porta após porta a tentar convencer os eleitores. “Já fomos recebidos por pessoas em cuecas, já gritaram connosco e correram atrás de nós pelo prédio, fecharam-nos a porta na cara”, diz Eva-Lotta, professora de psicologia, e herdeira de um legado político deixado pelo avô e pelo pai, ambos presidentes de pequenas freguesias pelas cores socialistas. “Mas isso faz parte deste tipo de campanha de proximidade. Também já fomos convidados para entrar e beber chá.”
Em Março, Eva-Lotte estava entre os milhares de socialistas que aplaudiram a tomada de posse de Martin Schulz e o seu anúncio de candidatura às eleições na Willy-Brandt-Haus, em Berlim. Subitamente, os níveis de popularidade do SPD agigantaram-se: de 21% no início do ano, os socialistas saltaram a fasquia dos 30% e no arranque de abril conseguiram mesmo ultrapassar ligeiramente a CDU nas intenções de voto. Schulz estava em alta. “Estávamos todos tão felizes, porque víamos nele uma hipótese de mudança e de finalmente conseguirmos derrotar Angela Markel.” Não passou de fogo de vista. A partir de maio, a linha vermelha do SPD nos gráficos entrou em queda livre. No espaço de um mês, o fosso voltou aos níveis anteriores. Com as eleições a aproximarem-se, Schulz cai mais um bocadinho, sondagem após sondagem.
Questionados sobre as razões da derrocada, os membros do partido têm invariavelmente a mesma reação: sorriso perplexo e encolher de ombros. “Mesmo nós ainda estamos a tentar entender o que se passou”, diz Christian.
Na rua, tudo parece motivo para deixar de acreditar em Schulz. Anna, funcionária de uma seguradora, diz que desistiu do socialista quando conheceu o seu passado de alcoolismo. Klaus, oftalmologista, foi demovido por um vídeo no Youtube em que o ex-Presidente do Parlamento Europeu aparece a proferir posições contraditórias. “Frágil”, “brando”, “sem perfil para liderar a Alemanha e lidar com Trump, Putin ou Erdogan” — são explicações usualmente aplicadas para explicar a desconfiança no social-democrata. Para a maioria dos alemães, Martin Schulz parece ter sido um pretendente interessante que lhes aguçou o desejo, mas que perdeu a oportunidade de suscitar paixão. Gostam dele, parece-lhes um homem bom, mas só como amigo. Foi-se o entusiasmo, ficou a simpatia. Apenas.
Há outras explicações para o fenómeno. “Antes de mais, ele foi apresentado como um político europeu, com ideias frescas, mas assim que se tornou líder do SPD perdeu essa aura e transformou-se em mais um político interno”, explica Christian. Depois, veio o marasmo. Na primavera em que podia ter aproveitado a popularidade, Schulz desapareceu do mapa e o programa do partido demorou quase três meses a ser apresentado. E, já se sabe, os alemães não gostam particularmente de esperar.
“Ele saiu de cena porque a candidata do SPD em Renânia do Norte-Vestfália, Hannelore Kraft, pediu-lhe para não participar na campanha para as eleições desse estado. Schulz aceitou. Consequentemente, apareceu muito pouco em comícios e na tv, na mesma altura em que Merkel surgia diariamente ao lado do seu candidato, a apertar a mão a grandes líderes mundiais e a intervir nos problemas do país”, diz Eva-Lotte. A 14 de maio, o SPD perdeu o governo da Vestfália, a região mais populosa do país, para a CDU. “Esse resultado foi uma espécie de prelúdio do enterro do SPD”, diz o consultor político Johannes Hillje. “Deviam ter aproveitado a chance para agarrar nos temas de justiça social e colocá-los no topo da agenda. Não conseguiram. A partir daí, passámos a ver Schulz a prometer uma coisa nova a cada semana para tentar roubar votos a Merkel. É muito triste ver o SPD assim”. Não é exemplar único. Nas eleições legislativas realizadas este ano em França e na Holanda, os partidos socialistas registaram mínimos históricos. Nesse contexto, Schulz até poderá conseguir um resultado digno.
O resultado é um mal menos. Pior é a destruição das expectativas. A revista Der Spiegel, que em março tinha retratado Schulz na capa como “Santo Martin” fez recentemente outra primeira página com o político socialista, desenhado em tamanho de anão, num ringue de boxe com os punhos em riste perante uma Merkel gigante, de costas voltadas, a dormir sobre as cordas.
Quanto ao programa, mais vale tarde que nunca. Christian e Eva agarram-se a ele para persuadir alguns dos residentes de Mitte a darem uma oportunidade ao SPD. Neste quarteirão do centro de Berlim, com apartamentos centenários e outros sofisticadamente remodelados, habitado pela classe média da capital, as principais preocupações são socio-económicas: “Em primeiro lugar, as rendas, que duplicaram aqui nos últimos anos. Antes, significavam um peso de 20% nos rendimentos das pessoas, agora chegam a custar 50% dos salários”, diz Christian. Eva completa: “E o outro problema é a falta de creches. Há cada vez mais gente a viver em Berlim e não há estabelecimentos de ensino suficientes. Atualmente, o município, que é SPD/Verdes/Linke, está a construir 50 escolas novas”. No vão de cada escadaria, carrinhos de bebé aglomerados sustentam o seu discurso.
Os analistas políticos defendem que o SPD falhou na demora da defesa dos interesses das classes mais desfavorecidas e no ataque às desigualdades sociais, que cresceram durante a governação de Merkel. Ao invés, Schulz procurou combater com Merkel em áreas em que a Chanceler já se tinha posicionado à esquerda, como no acolhimento de refugiados. E nesses debates deixou a sensação de que nada traria de novo em relação à líder dos conservadores “Um dos maiores erros dele foi o de ter visitado Itália para tentar recuperar o tema dos refugiados a seu favor”, diz Dara Hassanzadeh, editor e jornalista da estação televisiva ZDF. “Com isso, desenterrou o AfD, de extrema-direita, que estava em apuros desde que os refugiados tinham saído dos telejornais.”
A aldeia do SPD
São problemas distantes para os 264 habitantes de Kundert, uma aldeia imersa na floresta de Westerwald, entre Frankfurt e Colónia, onde nem o céu cinzento consegue esbater a pujança do verde das colinas. Vacas e cavalos rompem o nevoeiro com passeios preguiçosos pelos prados e mal se vê uma pessoa na rua. As casas são grandes e modernas, com quintais relvados, onde escorregas e baloiços aguardam que as crianças cheguem da escola. Vive-se bem, com paz e sossego.
É nesta Alemanha, bucólica e soporífera, que o SPD inverte as previsões nacionais e arrecada uma vitória bombástica. Há quatro anos, nas últimas eleições federais, os socialistas alcançaram 63% dos votos. Gabi Weber, a candidata direta do partido, chegou aos 71,5% — como termo de comparação, Angela Merkel, no seu círculo constituinte, obteve 56,2%. “A aldeia sempre foi do SPD”, diz Johannes Mockenhaupt, engenheiro de 33 anos, interrompendo o conserto do telheiro da casa. Porquê? “Esta era uma zona de agricultores e a tradição foi passando de pais para filhos, até hoje.” Além disso, diz, os habitantes são todos fiéis protestantes, que seguem o SPD (tradicionalmente os cristãos votavam CDU).
E que lições a direção nacional poderia tirar do êxito do SDP local? “Somos tão poucos que o contacto com a população é feito de uma forma muito direta”, diz Johannes. “Há um buraco na estrada? O nosso presidente da câmara liga logo para o Hendrik Hering [presidente do Parlamento da Renânia-Palatatinado, também do SPD] e uns dias depois vêm logo reparar.” Mas, desta vez, isso não chega para convencer Johannes. Vai votar nos Verdes, porque nos 70km que faz diariamente para a fábrica de automóveis onde trabalha se apercebe do grave problema de poluição no país. “Quero manter isto como está”, diz, apontando o quintal, onde as duas cabrinhas de estimação rondam os brinquedos da filha de dois anos, com a floresta cerrada como cenário.
Kundert pode ser pequeno demais para amostra: o representante local é escolhido através de uma votação com boletins de voto preenchidos à mão e o único pub da povoação abre de quinta a domingo em casa de Achim Müller, também ele membro do SPD. Mas Johannes começa a notar mudanças nas moderadas posições dos aldeões, que se ajustam à realidade para lá de Westerwald: “Tive uma discussão com um vizinho que me disse que ia mudar do SPD para o AfD, porque tinha medo de refugiados” diz Johannes. “Mas aqui não temos nenhum. Perguntei-lhe se alguma vez tinha visto um refugiado. Ele disse-me que não.”
O bancário Norbert Boll, de 56 anos, sabe que até em Kundert os resultados do SPD vão descer, apesar de dedicar o seu apoio a Schulz. “Ele tem boas ideias, mas pecou por ter demorado muito a apresentá-las”, diz. “Aqui na nossa região, não votamos em Merkel porque não nos conseguimos descolar da ideia de que ela é conservadora, pertence a um partido cristão e de direita. Mas ela soube posicionar-se à esquerda no seu partido e percebo porque muitos alemães continuam a gostar dela.” Felix, o seu filho de 19 anos, entra em casa com umas calças azuis de motociclista. Quando se apercebe de que estamos a falar de política, comenta: “Sabem o que o SPD quer fazer? Impôr o limite de velocidade nas autoestradas. Não concordo com isso”, diz. Ainda assim, Felix ainda pondera atribuir ao SPD o primeiro voto da sua vida. As outras opções são os Verdes e o Linke. Merkel é que não. “São 12 anos com ela. Quase não me lembro de quem lá estava antes. É preciso uma mudança.”
Mas em Kundert as coisas não mudam há décadas. À saída da aldeia, há um cartaz com Gabi Weber ao lado de Schulz. No próximo domingo, deverão ter destinos diferentes. A candidata pelo círculo de Hochburg deverá esmagar a concorrência. Ao que tudo indica, Schulz sairá esmagado. O partido terá depois de escolher entre voltar a fazer parte do governo coligado com a CDU e liderar a oposição. Em Berlim, Eva não tem dúvidas: “Mais quatro anos na coligação é a morte do SPD”.