O périplo de Astérix pela Europa é já uma tradição. O que não é tão normal, porém, é a viagem pelo centro do Império a que os irredutíveis sempre resistiram. No novo Astérix e a Transitálica, Astérix e Obélix competem com Etruscos, Lígures e Normandos pelo prémio de melhor auriga do mundo. Com uma novidade: os grandes protagonistas da corrida são, sem dúvida, os Lusitanos. Depois de os retratarem, os autores do novo álbum vieram conhecê-los. Aproveitámos para falar com eles.
Astérix é universalmente considerado uma das melhores bandas desenhadas do mundo. Porque é que acham que é tão importante?
Jean-Yves Ferri: É verdade que é um clássico em França, sobretudo na época Goscinny/Uderzo, e por isso a grande dificuldade está em recuperar a densidade dos velhos álbuns. O fraseado de Goscinny, o ritmo, o seu recorte estilístico à maneira dele, é muito difícil. Tentámos segui-lo nisso. É um trabalho muito exigente.
Didier Conrad: No desenho, Uderzo tem um traço muito pessoal, que só por si permite contar histórias e apanhar bem uma personalidade, e que é muito humorístico, muito vivo e emocional. Tem o interesse de ser difícil de fazer, porque a medida é muito complicada. É como a pronúncia numa língua, é difícil encontrar o sotaque certo, e é uma coisa que tem de ser treinada durante toda a vida.
O Goscinny tem um género de histórias muito característico, semelhante ao que vocês recriaram: o modelo de competição; aparece no Astérix Legionário, na Volta à Gália; qual é a vantagem deste modelo?
JYF: O interesse da corrida, da ideia de corrida, é que dota a história de um ritmo, em que temos um pequeno número de páginas focadas em cada etapa, que é muito cerrado: para retratar a Itália em quarenta e quatro páginas tem de ser assim. O interesse da corrida é que permite introduzir inesperadamente a acção e novas personagens, o que torna a história muito viva. Uma aldeia é forçosamente mais parada.
DC: Sim, o ritmo, a história torna-se muito mais dinâmica.
Apesar do modelo, reconhecem uma marca vossa no Astérix?
JYF: É difícil sermos nós a saber. Tenho amigos que dizem que reconhecem o meu tipo de humor, algumas tiradas, ou assim, mas eu não sei… Para criar um estilo é preciso ter muitos álbuns. Goscinny criou um estilo com vinte e seis álbuns, Uderzo com mais dez, nós ainda não temos nada disso.
DC: E além disso, parte do nosso objectivo é estar muito próximos do modelo. Daí que o estilo também não seja uma coisa que venha naturalmente, a ideia não é procurar o que é mais característico de nós, como é costume na criação de um estilo. E isso no desenho é importante porque o desenho influencia a maneira de vermos a história. Se o desenho é mais estático, o argumento vai parecer mais estático. Basta ver as histórias de Goscinny ilustradas por outros desenhadores. Em Lucky Luke saiu muito bem, mas o estilo já é outro, porque o desenho muda.
Uderzo, aliás, tem uma série de piadas a partir do próprio desenho. Imitações de quadros, de poses conhecidas. Vocês, a páginas tantas, também põem a Mona Lisa à janela. Também querem que o desenho funcione por si?
DC: Sim, sempre admirámos muito o que Uderzo conseguiu fazer. É tradição no Astérix, haver sempre referências, para mais em Itália, onde as referências artísticas são mais que muitas.
Isso cria uma espécie de degraus de leitura no Astérix…
JYF: Há umas mais marcadas, caricaturas de celebridades, que as pessoas reconhecem, outras mais escondidas, como é costume nos álbuns de Astérix.
Há uma caricatura impossível de passar aqui em Portugal: a dos Lusitanos. Porquê tanta importância neste livro?
JYF: Bom, não é para estigmatizar ninguém…
DC: Nós nem estávamos a pensar vir a Portugal…
JYF: Mas se virmos bem o papel dos portugueses na história, eles no fim de contas são vencedores. É uma ode ao ritmo, à escolha de viver sem ceder ao frenesim desta correria louca dos nossos dias. Eles andam à sua velocidade e, no fim, eles ganham. E é a primeira vez que o Astérix dá um papel tão importante aos portugueses. Já tinha aparecido uma vez ou outra, se calhar…
Aparece no domínio dos deuses.
JYF: Mas nós fizemos do português a vedeta.
Também é uma característica de Astérix, esta de representar povos, países, porquê?
DC: Acho que o Goscinny fez isso para renovar a série, se ficasse sempre na Gália, isso limitaria muito as histórias. Assim, há um manancial de novas piadas disponível: são sempre países conhecidos, de quem podemos extrair um tipo facilmente reconhecível. Se falássemos de um país como a Bulgária, que pouca gente conhece, seria mais difícil.
Vocês recorrem muito a uma fórmula típica do Astérix: os pregões, as frases em latim…
JYF: Também já é uma tradição do Astérix, e que é sempre difícil: pegar em Cícero, nos torneios, requer um certo conhecimento, para não vir a despropósito.
DC: Além disso há a própria dificuldade de compreensão. Quando Goscinny usava as referências latinas, as crianças aprendiam latim e tinham muito mais conhecimento do latim do que agora. Hoje em dia temos de ter o cuidado de não pôr coisas incompreensíveis, de não usar muito este recurso.
O Astérix tem um lado pedagógico que parece cada vez mais presente.
JYF: Sim, no fim de contas vê-se que os gauleses não são uns brigões, não têm interesse em ser campeões pela glória, não é isso que lhes interessa. Obélix tem as suas próprias motivações e, quando as cumpre, já tem o que precisa. No fundo, a amizade acaba por ser a mais forte no Astérix.
Isso até pode ser considerado um dos vossos traços mais marcados. A aldeia é muito mais amiga do que nos livros de Goscinny, em que há sempre grandes discussões
JYF: É capaz, realmente.
DC: Também temos poucas páginas na aldeia, não conseguimos desenvolver os conflitos.
JYF: E também não queremos repetir tudo!
Mas em todo caso a ideia de amizade…
JYF: Sim, é fundamental. Até se pode ver como a relação entre Astérix e Obélix evoluiu. Desta vez é Obélix o campeão e Astérix aceita-o.
Já não é Astérix, mas Astérix e Obélix.
JYF: E o Astérix tem um papel que permite mostrar melhor ainda a sua inteligência.
Vão continuar a fazer o Astérix por quantos álbuns?
JYF: Para já, ainda não combinámos com o editor. Depende, vamos vendo álbum a álbum. Sempre que tivermos ideias para um novo álbum, vamos ver. Temos algumas pistas para um próximo.
Qual é o vosso processo de trabalho? Goscinny escrevia os guiões vinheta por vinheta…
JYF: Sim, o Goscinny descrevia tudo. E ia caso a caso. Caso um, caso dois, caso três, e depois cada diálogo. Eu acho mais fácil, mais natural, fazer um quadro com a história. Ele não fazia isso.
DC: Nós funcionamos de uma maneira diferente. Eles tinham um modo de trabalhar muito separado. Goscinny escrevia tudo, depois entregava a Uderzo, que desenhava tudo. Lembro-me do Uderzo dizer que era impensável mudar um texto do Goscinny. E que ele também não deixava que mexessem nos desenhos dele. Connosco, intervém o editor, nós próprios discutimos e mudamos coisas em conjunto. Eu não desenho logo tudo, prefiro fazer um desenho que permita perceber o ritmo e afiná-lo a partir daí, Estamos numa discussão constante, sempre a rever tudo. A verdade é que ninguém sabe fazer o Astérix, pelo que é mais fácil se tivermos a ajuda de um editor, de alguém que dá a sua opinião…
JYF: Ao princípio é aflitivo. Mas à medida que nos vamos apropriando da personagem e conhecendo a história, tudo se vai tornando mais pessoal e, por isso mesmo, mais natural.