Estávamos a meio da tarde de 15 de maio quando os ecrãs de televisão começaram a passar ininterruptamente as imagens de 20 a 30 homens encapuzados a invadirem a Academia do Sporting, em Alcochete, para agredirem jogadores e os elementos da equipa técnica liderada por Jorge Jesus. O choque e espanto do país boquiaberto pela violência gratuita foi imediato — assim como a reação da GNR do Montijo, que deteve os primeiros 23 suspeitos nas imediações da Academia Alcochete.
A investigação anunciava-se musculada, mas seis meses e 45 arguidos depois, 38 deles em prisão preventiva, o Ministério Público (MP) sofre a primeira derrota — uma grande derrota. Os alegados autores morais do ataque a Alcochete — o ex-presidente Bruno de Carvalho e Nuno Mendes ‘Mustafá’, líder da Juve Leo — saíram em liberdade por falta de indícios suficientemente fortes que convencessem o juiz Carlos Delca a ordenar a sua prisão preventiva.
Porque é que foram detidos sem que houvesse provas suficientes para aplicar a medida de coação máxima? E porque é que o MP demorou tanto tempo a pedir o prolongamento do prazo para investigar? Eis as perguntas e as respostas essenciais para perceber o que se passou.
Se há indícios, porque é que não são fortes?
A decisão do juiz de instrução criminal do Tribunal do Barreiro de libertar Bruno de Carvalho e ‘Mustafá’ aparenta, numa primeira análise, ser contraditória com outras semelhantes — ao fim e ao cabo, o magistrado judicial tinha decretado a prisão preventiva de quase todos os arguidos anteriormente detidos. Mas, na realidade, a decisão desta terça-feira do juiz Carlos Delca explica-se pela diferença muito significativa entre a forte prova recolhida contra os mais de 38 arguidos que estão em prisão preventiva e os indícios recolhidos imputados a Bruno de Carvalho e a ‘Mustafá’.
O juiz Delca entende que o Ministério Público e a GNR conseguiram reunir indícios fortes quer contra os primeiros 23 arguidos suspeitos, quer em relação à esmagadora maioria dos restantes detidos posteriormente (nomeadamente, Fernando Mendes, ex-líder da Juve Leo). Não só os primeiros 23 detidos foram apanhados em fuga pela GNR ainda em Alcochete, como a esmagadora maioria dos restantes foram identificados pelas câmaras de vigilância da Academia de Alcochete.
Por outro lado, existem ainda provas indiciárias que foram apanhadas nos telemóveis que retratam grupos de conversação abertos nos WhatsApp, que ajudam a identificar os suspeitos e a sua adesão ao plano que foi estabelecido para agredir os jogadores e treinadores do Sporting.
Os testemunhos que incriminavam Bruno de Carvalho e uma peça central: o ex-OLA, Bruno Jacinto
No caso de Bruno de Carvalho e ‘Mustafá’, o principal trunfo que o Ministério Público levou ao Tribunal do Barreiro foram as declarações de outros quatro arguidos: Bruno Jacinto, ex-oficial de ligação com as claques do Sporting, Nuno Torres, o condutor do misterioso BMW que conseguiu entrar nas instalações da Academia para ir buscar Fernando Mendes e outros elementos suspeitos após a concretização das agressões, e mais dois alegados ‘arrependidos’ da Juve Leo: Filipe Correia Alegria e Guilherme Gata de Sousa.
Todos apontaram o dedo ao ex-presidente do Sporting e envolveram-no diretamente no ataque, colocando-o na posição de mandante das agressões. Visto de fora, pode parecer que, por si só, essas declarações seriam mais que suficientes para dar força a essa convicção da procuradora Cândida Vilar — mas não chegaram para convencer o juiz de instrução. Pelo contrário, Carlos Delca não encontrou nesses elementos “indícios fortes” do envolvimento do ex-dirigente, não podendo, assim, decretar a prisão preventiva.
A dúvida é imediata: porque é que um juiz que decretou 38 prisões preventivas no mesmo processo — encontrando sempre provas suficientes, em quantidade e em força, para o fazer —, decide agora libertar os alegados mandantes? Porque, neste caso, a prova apresentada pelo MP tem dois problemas: segundo o magistrado, é pouca e é fraca.
No despacho que determina as medidas de coação, o juiz explica isso mesmo: há, de facto, elementos que sustentam os crimes pelos quais Bruno de Carvalho e Nuno Mendes estão indiciados, mas nenhum está “fortemente indiciado” — com excepção do tráfico de droga, imputado apenas a ‘Mustafá’ —, condição essencial, pela lei, para aplicar medidas privativas da liberdade, como a prisão preventiva ou a prisão domiciliária. No documento, Carlos Delca sublinha “a exiguidade” da prova — o facto de ser pouca e, quase exclusivamente, baseada nas declarações dos outros arguidos — e “a carência de nível” — o baixo grau de probabilidade de servir para provar os factos apresentados pela acusação. Ou seja, aquilo que disseram os outros arguidos pode significar muitas coisas e não necessariamente o envolvimento do ex-líder dos leões.
Sabe o Observador que alguns deles terão confirmado, por exemplo, que a 6 de abril, numa reunião na sede da Juve Leo, Bruno de Carvalho disse “Façam o que quiserem”, perante o descontentamento dos adeptos com a prestação da equipa, como revelou o Sol em maio, já depois do ataque à Academia. O problema é que essa declaração, assim, isolada, pode ter múltiplos significados — e foi apresentada sem outras provas que demonstrem, de forma convincente, que o ex-presidente estava a ordenar as agressões. Fonte do processo diz ao Observador que foi por questões como esta que o magistrado considerou os indícios “poucos e fracos”.
Onde estão os dados dos telemóveis?
O Ministério Público acredita que as tais outras provas para sustentar as declarações dos arguidos estão nos telemóveis que foram sendo apreendidos. O problema é que as perícias aos aparelhos não só estão “atrasadíssimas” — como a própria Cândida Vilar admitiu, a 7 de novembro, quando pediu que fosse declarada a especial complexidade do processo (dando-lhe mais seis meses para investigar) —, como há algumas que só poderão ser feitas no estrangeiro, em países que têm tecnologia que faz o que a das polícias portuguesas ainda não consegue, na recuperação, por exemplo, de mensagens escritas.
Fonte do processo diz ao Observador que, até agora, só foram analisados “três ou quatro telemóveis”, apesar de o próprio Comando Geral da GNR ter ordenado que fosse dada prioridade àquelas perícias.
São dados considerados “fundamentais” pela própria Cândida Vilar, no mesmo requerimento em que pedia mais seis meses para investigar, mas não foram recolhidos a tempo de sustentar o pedido de prisão preventiva para Bruno de Carvalho e ‘Mustafá’.
Se faltavam provas fundamentais, porque é que o MP precipitou as detenções?
O inquérito 257/18.0 foi aberto a 15 de maio, data do ataque à Academia. Seis dias depois, a 21 de junho, começou a correr o primeiro prazo obrigatório para o Ministério Público: o da prisão preventiva dos primeiros 23 detidos. Segundo a lei, num processo normal os suspeitos podem ficar sujeitos à medida de coação máxima durante seis meses, até ser deduzida uma acusação. Se, nesse prazo, o MP não concluir a investigação, então têm de ser libertados.
O aproximar da data de 21 de novembro — último dia para concluir a acusação sem que os detidos tivessem de ser libertados — será uma das razões para que a procuradora Cândida Vilar tenha avançado para as detenções, sem esperar pelas tais perícias ou por ter uma prova mais sólida. Esperar significaria libertar os primeiros 23 detidos e a magistrada considera que é muito forte a probabilidade de alguns deles — senão todos — decidirem fugir ou poderem, de alguma forma, perturbar o inquérito (um risco também assumido pelo juiz de instrução, que sempre apresentou esses perigos para aplicar a medida de coação mais pesada).
Além disso, tal como o Observador avançou, Cândida Vilar queria reunir prova sobre a ligação entre a venda de bilhetes para os jogos do Sporting e o alegado tráfico de droga que é imputado a ‘Mustafá’. Para tal, necessitava de realizar buscas judiciais à sede da Juve Leo no dia de um jogo (optou pelo Sporting-Chaves do dia 11 de novembro). Aqui havia uma questão prévia: ‘Mustafá’ e Bruno de Carvalho tinham de ser detidos em simultâneo. E assim foi.
Tudo isto, porém, não seria necessário, caso o processo já estivesse abrangido pela excepção legal que dá mais tempo aos investigadores: se o caso for de especial complexidade, o limite duplica e os arguidos podem ficar em preventiva durante um ano. Cândida Vilar pediu-o a 7 de novembro, mas foi tarde demais.
Porque é que não pediu a especial complexidade mais cedo?
A pressão do tempo, nomeadamente no que diz respeito à extinção da prisão preventiva do primeiro grupo de 23 arguidos, não existiria se a procuradora Cândida Vilar tivesse avançado mais cedo para um requerimento dirigido ao juiz de instrução a solicitar a especial complexidade do inquérito. Ganharia mais tempo para investigar e duplicava o tempo máximo de prisão preventiva para todos os arguidos: um ano em vez de 6 meses.
Cândida Vilar podia tê-lo feito no verão. Logo em junho, quando deteve Fernando Mendes, o ex-líder da Juve Leo, o seu amigo ‘Aleluia’ e mais dois arguidos suspeitos de envolvimento no ataque a Alcochete. Ou a 10 julho, quando foram presos mais nove arguidos. Nesta altura, a procuradora já tinha 36 arguidos em prisão preventiva por sua promoção e por ordens do juiz Carlos Delca.
Ao que o Observador apurou, a procuradora Fernanda Pêgo, diretora do DIAP de Lisboa, terá dado instruções no sentido de ser requerida a declaração de especial complexidade.
O que é certo é que Cândida Vilar não o fez. Só a 7 de novembro, quando já sabia que ia avançar para a detenção de Bruno de Carvalho e de ‘Mustafá’, é que a procuradora do DIAP de Lisboa preencheu o requerimento e o enviou para o Tribunal Judicial do Barreiro dirigido ao juiz de instrução Carlos Delca.
É um mistério por que razão não o fez mais cedo. Fonte do processo diz ao Observador que a procuradora estaria convencida de que as perícias aos telemóveis, por exemplo, estivessem mais avançadas e que, tal como ela própria escreveu no pedido de prolongamento do prazo, só na véspera, 6 de novembro, ficou a saber que estavam “atrasadíssimas” e que a GNR não tinha sequer uma data previsível para as concluir.
Além disso, o Ministério Público esperaria também poder contar com os dados retirados da perícia feita ao telemóvel de André Geraldes, antigo braço direito de Bruno Carvalho (feitas a propósito do processo Cashball), mas, garante a mesma fonte, essas informações não chegaram, vindas da PJ do Porto, que investigou o caso.
[artigo corrigido às 23h51, retirando a informação, errada, de que os depoimentos dos arguidos feitos apenas perante o DIAP não têm validade em julgamento — o Código de Processo Penal impõe que, para isso acontecer, as declarações tenham sido prestadas na presença de um advogado, que o arguido tenha sido informado sobre a validade das mesmas em julgamento e que o interrogatório tenha sido feito perante um magistrado, que pode ser juiz ou procurador do Ministério Público]