O jogo vai nos primeiros minutos e o depoimento de Bruno de Carvalho poderá ter posto Rui Pinto em vantagem — tal como os das testemunhas do Sporting têm vindo a fazer. À 13.ª sessão do julgamento do caso Football Leaks, o alegado hacker viu ser-lhe retirada uma queixa. O antigo presidente do leões decidiu desistir da denúncia que apresentou contra Rui Pinto por violação de correspondência, em relação ao seu email profissional do Sporting: “Vou desistir. Desisto”

O anúncio foi feito na manhã desta quinta-feira quase ao fim de duas horas de um depoimento em que Bruno de Carvalho foi deixando grandes elogios às ações do alegado hacker e grandes críticas ao fundo de investimento Doyen, um dos queixosos no processo. Chamado a depor pelo Ministério Público (MP) e também pela defesa, considerou que o Football Leaks, o site criado por Rui Pinto que permitiu a divulgação de documentos ligados a negócios do futebol, foi “super positivo” e “extremamente útil”.

“Temos de tirar o chapéu a Rui Pinto. É depois do Rui Pinto que os processos aparecem numa série de investigações. É uma pessoa de 30 anos e dá um impulso fundamental ao futebol”, concluiu, dando o exemplo do Luanda Leaks.

As críticas foram guardadas para a Doyen e outros fundos de investimento. Questionado pelo advogado de Rui Pinto, Francisco Teixeira da Mota, sobre qual era a sua opinião sobre o assunto, Bruno de Carvalho ajeitou-se na cadeira antes de começar a defender que os fundos são um “género de droga” para o futebol: “A Doyen chegava, dava o dinheiro, havia um alívio. E depois precisávamos de dinheiro outra vez”.

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Se quiser renovar o contrato de um jogador, a Doyen tem de autorizar. Se quiser aumentar um jogador, a Doyen tem de autorizar. Se quiser fazer um contrato de um jogador, a Doyen tem de autorizar”, explicou ainda.

Bruno de Carvalho acabou mesmo por afirmar que entre os contratos que o Sporting fazia com fundos de investimento “o mais grave e com contornos algo criminosos eram os da Doyen” — para a qual o Sporting perdeu um processo judicial relativo ao jogador Marcos Rojo. O ex-presidente dos leões disse ainda que Nélio Lucas, o administrador da Doyen, “era um gestor de modelos de Hollywood” e que o fundo “era um escritório onde de vez em quando havia uma senhora a atender em Malta”.

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As críticas foram tomando proporções que levaram mesmo a juíza presidente do tribunal a pedir a Bruno de Carvalho que voltasse “aqui para o caso em concreto”. Obedecendo às ordens, explicou que, se numa primeira fase achou que o objetivo do Football Leaks era visar o Sporting, numa segunda fase, passou a olhar para o site como uma “extensão de tudo aquilo” que defendeu. “Até me deu jeito que as pessoas pudessem ver aquela vergonha”, confessou, referindo-se aos contratos com a Doyen. “Foi super positivo e espero que daqui a uns anos possa dizer que foi altamente moralizador”, acrescentou ainda.

“O Rui Pinto entrou num email de um Bruno. Falhou foi no alvo“. Bruno de Carvalho diz que email investigado não era dele

Em tribunal, Bruno de Carvalho adiantou que o email investigado pela Polícia Judiciária (PJ) como sendo supostamente o que lhe pertencia a ele e ao qual o alegado hacker teria acedido estava errado. Bruno de Carvalho explicou que quando foi chamado à PJ apercebeu-se que o email “que foi investigado não era” o seu email.

Quando fui chamado, apercebi-me de que o email que a PJ investigou e que estava no processo não era o meu. Liguei para o meu colega de direção, ele deu-me o correto, a PJ alterou nos documentos e deu-me para assinar. O Rui Pinto entrou num email de um Bruno. Falhou foi no alvo“, explicou.

Seguiu-se o habitual rol de perguntas que a procuradora Marta Viegas costuma fazer a todas as testemunhas cujos emails Rui Pinto terá acedido — questões que servem para provar que não foram os visados a fazer aqueles acessos. “Tenho de fazer”, justifica a magistrada.

— Acedeu ao seu email a partir da Universidade do Porto? Tinha de estar à 1h00 da manhã na Universidade do Porto

— Não! Não conheço ninguém na Universidade do Porto — explicou Bruno de Carvalho.

— Deu permissão ao arguido Rui Pinto para aceder ao seu email a partir da Universidade do Porto?

— Não. Nem sei se ele está na sala porque ainda não reparei...

O ex-presidente dos leões revelou também que não tinha sido informado de que os alegados acessos de Rui Pinto a emails de várias pessoas ligadas ao clube tinham começado em julho. Bruno de Carvalho explicou que sabia que o sistema informático do Sporting tinha sido alvo de um ataque no dia 22 de setembro, mas desconhecia tudo o resto. “Nada me foi falado que tinha havido alguma entrada da Hungria antes de 22 de setembro. É uma completa novidade para mim. Nunca ninguém me tinha comunicado”, explicou ao tribunal.

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Rui Pinto não é um herói, mas “a informação que divulgou pode ser extraordinariamente relevante”

Discurso semelhante ao de Bruno de Carvalho teve o ex-advogado do Sporting, Pedro Almeida. Ouvido durante a tarde, defendeu que Rui Pinto é uma “figura incontornável” e que “pode ajudar a tornar transparente um mundo complicado” do futebol. “Ainda que para isso tenha de entrar na sua caixa de email?”, questionou a procuradora. A resposta veio a seguir:

Um ato bom anula um mau. Um mau não anula um bom. A informação que [Rui Pinto] divulgou pode ser extraordinariamente relevante”, disse

Questionado pelo advogado que representa a Ordem sobre se não sentiu que o sigilo profissional foi violado, Pedro Almeida considerou que não e justificou com o facto de não ter sido ele a violar esse dever de sigilo, mas sim a pessoa que acedeu ao seu email. Já no final do depoimento, o advogado clarificou que, apesar de considerar revelante a informação divulgada pelo Football Leaks, “de maneira nenhuma” considera Rui Pinto “um herói”.

O julgamento prossegue na próxima semana. Depois das dificuldades em contactar Jorge Jesus, o tribunal conseguiu finalmente notificá-lo na tarde desta quinta-feira: o treinador do Benfica vai assim ser ouvido na manhã da próxima terça-feira.

Rui Pinto, o principal arguido, responde por 90 crimes — todos relacionados com o facto de ter acedido aos sistemas informáticos e caixas de emails de pessoas ligadas ao Sporting, à Doyen, à sociedade de advogados PLMJ, à Federação Portuguesa de Futebol, à Ordem dos Advogados e à PGR. Entre os visados estão Jorge Jesus, Bruno de Carvalho, o então diretor do DCIAP Amadeu Guerra ou o advogado José Miguel Júdice. São, assim 68 de acesso indevido, 14 de violação de correspondência, seis de acesso ilegítimo e ainda por sabotagem informática à SAD do Sporting e por tentativa de extorsão ao fundo de investimento Doyen.

Aníbal Pinto, o seu advogado à data dos alegados crimes, responde pelo crime de tentativa de extorsão. Isto porque, segundo a investigação, Rui Pinto terá exigido à Doyen um pagamento entre 500 mil e um milhão de euros para que não publicasse documentos relacionados com a sociedade que celebra contratos com clubes de futebol a nível mundial. Aníbal Pinto, então advogado do hacker, terá servido de seu intermediário. E é por isso que se sentam os dois, lado a lado, em frente ao coletivo de juízes.

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O alegado pirata informático esteve em prisão preventiva desde 22 de março de 2019 e foi colocado em prisão domiciliária a 8 de abril deste ano, numa casa disponibilizada pela PJ. Na sequência de um requerimento apresentado pela defesa do arguido, a juíza Margarida Alves, presidente do coletivo de juízes — que está a julgar Rui Pinto e que tem como adjuntos os juízes Ana Paula Conceição e Pedro Lucas — decidiu colocá-lo em liberdade. O alegado pirata informático deixou as instalações da PJ no início de agosto e a sua morada atual é desconhecida.