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“Havia médicos [como Cristiano Figueiredo], havia serviço social, havia recursos na comunidade”, diz a assistente social Andreia Coelho, da USF da Baixa. “Nós criámos uma articulação entre todos”
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“Havia médicos [como Cristiano Figueiredo], havia serviço social, havia recursos na comunidade”, diz a assistente social Andreia Coelho, da USF da Baixa. “Nós criámos uma articulação entre todos”

“Havia médicos [como Cristiano Figueiredo], havia serviço social, havia recursos na comunidade”, diz a assistente social Andreia Coelho, da USF da Baixa. “Nós criámos uma articulação entre todos”

Prescrição social. Quando a receita para uma boa saúde mental não passa por comprimidos, mas por ajudar as pessoas

Porque nem tudo se resolve só com comprimidos ou tratamentos, cada vez mais centros de saúde fazem a ponte com a comunidade na resposta aos problemas dos utentes — como a solidão ou a doença mental.

“Solidão.” “Desemprego.” “Conflitos com a entidade patronal.” “Divórcios.” “Aumento das prestações por causa da taxa Euribor.” Parecem preocupações pouco típicas de um médico de família com os seus utentes, mas Cristiano Figueiredo, clínico da Unidade de Saúde Familiar (USF) da Baixa, em Lisboa, menciona-as a todas durante a conversa. Porque sabe que a saúde e a doença são muito mais do que ter ou não ter hipertensão, diabetes ou gripe: estas e outras questões sociais, económicas ou de contexto de vida afetam — e muito — a saúde física e mental dos seus utentes.

Foi por isso que, em 2018, trouxe para Portugal e implementou naquela unidade de saúde uma forma de diagnosticar e de dar resposta a questões destas: a Prescrição Social. Trata-se de uma intervenção que permite ligar os utentes dos cuidados de saúde primários com os recursos de apoio existentes na comunidade, de forma dar resposta às necessidades sociais, emocionais e práticas, melhorando assim a sua saúde e bem-estar.

O médico cruzou-se com este conceito em 2015, quando ainda estava a completar a formação e fez um estágio Erasmus + em Londres. Ficou, desde logo, com vontade de implementar um projeto semelhante em Portugal. “Em cuidados de saúde primários, damos um grande valor à comunidade e àquilo a que chamamos de determinantes sociais da saúde [as condições económicas, sociais, culturais, entre outras, que influenciam a saúde de cada um], mas eu sentia, enquanto jovem médico, que, na prática, não havia ferramentas ou protocolos estruturados para concretizar isto”, recorda.

“Em cuidados de saúde primários, damos um grande valor à comunidade e aos determinantes sociais da saúde [condições económicas, sociais, culturais, entre outras, que influenciam a saúde de cada um]. Mas, na prática, não havia ferramentas ou protocolos para concretizar isto.”
Cristiano Figueiredo, médico da Unidade de Saúde Familiar da Baixa, Lisboa

Não havia, mas criou-os. Com a ajuda de Andreia Coelho. “Primeiro só foi uma conversa de corredor”, diz a assistente social da USF da Baixa. “Depois começámos a reunir para perceber como poderíamos operacionalizar isto: havia médicos, havia um serviço social a funcionar, havia recursos sociais na comunidade. No fundo, o que fizemos foi criar uma articulação entre todos estes recursos, que já estavam disponíveis, que permitisse ativar estas respostas quando as pessoas beneficiam delas.”

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Em termos práticos, o que acontece é isto: cada vez que os médicos detetam em consulta que há questões que precisam de uma resposta não-médica, encaminham o utente para uma consulta com a assistente social, que, por sua vez, faz um diagnóstico social completo e procura recursos na comunidade que lhe possam dar resposta.

“Era, no fundo, sobre psicologia e aprendi muito”, diz Lucília Rosa acerca da disciplina de Saúde e Bem-estar, que frequenta na Universidade Sénior. “Nós, idosos, não devemos ficar parados”

Este encaminhamento para uma Prescrição Social pode estar relacionado com muitas questões: sedentarismo, necessidade de mudar os hábitos alimentares, melhor integração de utentes das comunidades migrantes, ajuda na procura de emprego. Mas entre os motivos principais estão a solidão e os problemas de saúde mental. “Há pessoas que estão muito isoladas ou com quadros de ansiedade e depressão que beneficiam de outra intervenção além dos medicamentos — ou mesmo, em algumas situações, em vez de medicamentos”, diz Cristiano Figueiredo.

Nestes casos, tipicamente, as pessoas são encaminhadas para uma universidade sénior, para um voluntariado no Jardim Botânico ou no Museu de História Natural, para um centro de dia com um bom programa de atividades ou para aulas ou workshops de exercício física ou expressão artística. O importante, na altura de sugerir uma atividade, explica Andreia Coelho, “é fazer uma boa correspondência entre as necessidades identificadas por nós e os interesses e gostos da pessoa. Caso contrário não resulta e ela acaba por desistir.”

Desde o início do projeto, em 2018, até ao final de 2022, os médicos da USF da Baixa encaminharam 791 utentes para a prescrição social.

Na saúde e na doença

Lucília Rosa sabe que a conversa vai ser sobre a Prescrição Social, por isso, não fica à espera que lhe façam nenhuma pergunta para dizer o que lhe parece essencial. “Foi a melhor coisa que me podia ter acontecido”, diz assim que se senta na cadeira.

Aos 65 anos, esta utente da USF da Baixa já tem na bagagem momentos muito difíceis. “Perdi um filho há dez anos e, logo aí, fiquei com uma depressão.” Mais recentemente, depois da pandemia, foi despedida da empresa onde trabalhou durante 16 anos e onde tinha uma atividade profissional intensa a organizar eventos. “Fiquei sem nada para fazer, sempre enfiada em casa e passei um mau bocado: um vazio enorme, muita ansiedade, os dias eram todos iguais e passava o tempo a pensar nas mesmas coisas. No que não devia.”

“Há pessoas isoladas ou com quadros de ansiedade e depressão que beneficiam de outra intervenção além dos medicamentos”, diz o médico Cristiano Figueiredo, da USF da Baixa

Antidepressivos e ansiolíticos, já os tomava desde a morte do filho, pelo que o passo seguinte do médico de família foi encaminhá-la para as consultas de psicologia que fez durante algum tempo. Mas há pouco mais de um ano, numa consulta com o assistente social, este atirou a pergunta que haveria de ir dar à tal coisa que de melhor lhe podia ter acontecido: “Já ouviu falar na Universidade Sénior, Dona Lucília? Gostava de experimentar?” Foi remédio santo.

Se não é fácil perceber como é que ter aulas de pintura, frequentar uma universidade sénior ou fazer parte de grupo de teatro, pode ter um papel na saúde mental é, em primeiro lugar porque a saúde mental continua, na verdade, a ser associada apenas à doença mental. Mas a saúde mental vai muito além disso. “Inclui também a prevenção da doença e a promoção da saúde, e isso não se faz só com médicos e psicólogos”, diz a psiquiatra Ana Matos Pires, diretora da Unidade Local de Saúde Mental do Baixo Alentejo e membro da Coordenação Nacional das Políticas de Saúde Mental.

“Foi a melhor coisa que me podia ter acontecido. (...) A solidão é uma coisa terrível que não se resolve nem com dez antidepressivos. É preciso ter atividade, sair, aprender, falar, conviver. É isso que me tem mesmo ajudado.”
Lucília Rosa, utente da USF da Baixa

Os determinantes da saúde e doença mental não são apenas biológicos. São multifatoriais. E, como a saúde e a doença não se resumem à biologia, os médicos também não podem ficar fechados numa abordagem meramente biológica. “Como dizia o [médico] Abel Salazar, ‘o médico que só sabe medicina, nem medicina sabe’”, diz a psiquiatra. “Somos um indivíduo que adoece porque a sua parte somática cede à doença e há uma parte física — o cérebro — que determina isso, mas nem tudo se resume aos neurotransmissores.”  É preciso olhar para o que está à volta da pessoa e dar resposta a problemas que, não sendo clínicos, interferem na saúde. “É por isso que sou acérrima defensora de olhar a prevenção da doença e promoção da saúde através de estratégias sociais, culturais e educativas, nomeadamente, a prescrição social e cultural, que potenciam o que temos de mais saudável.”

Projeto-piloto no Alentejo

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Chama-se Transforma — Programa para uma Cultura Inclusiva do Alentejo Central, foi implementado pela Comunidade Intermunicipal do Alentejo Central (CIMAC), como forma de diminuir as desigualdades e assimetrias sociais na região e inclui também uma iniciativa de prescrição não-médica.

O projeto-piloto de Prescrição Cultural nos centros de saúde de oito municípios (Alandroal, Arraiolos, Borba, Estremoz, Évora, Montemor-o-Novo, Portel e Redondo) está em fase de arranque desde agosto deste ano,

“Pretendemos testar e a avaliar como é que a fruição de atividades culturais ou criativas pode contribuir para a recuperação e para o processo terapêutico dos utentes”, explica Ana Isa Coelho, responsável pelo programa na CIMAC. “Não se trata de trocar medicamentos por peças de teatros e não estamos a prescrever cultura em vez de medicamentos. É uma coisa complementar.”

Aqui a forma de funcionamento é um pouco diferente: o médico do centro de saúde prescreve, a informação vai para a assistente social e, depois, a ligação com o utente passa a ser feita com um técnico da área social ou cultural dos municípios — a quem chamam interlocutor —, que faz um questionário de motivação e  acompanha a pessoa na primeira atividade com o agente cultural. O objetivo do programa é proporcionar estas atividades às pessoas, mas também paralelamente, fazer crescer a oferta cultural — que em muitos municípios é pouca.

Um dos grandes grupos-alvo do programa é precisamente a população envelhecida e isolada. Com base num diagnóstico social do Alentejo Central, feito em 2017, foram identificados três grandes grupos situação de exclusão social ou vulnerabilidade: migrantes, jovens até aos 21 anos em risco de abandono escolar e idosos com problemas de isolamento. “Um isolamento que é geográfico, mas que acaba por ser também social, o que contribui para o agravamento de questões de saúde mental.”

 

Sabe-se hoje que tanto na doença física como na mental, a pobreza e as condições sociais precárias são grandes desencadeantes de doença. O isolamento é um desses fatores circunstanciais que tem influência na saúde. Não o isolamento por opção, mas por falta dela, que conduz a sentimentos de profunda solidão. “A literatura científica é muito clara e mostra que a solidão funciona como fator desencadeante da doença ou do seu agravamento. O ser humano saudável é um ser social e as relações sociais são sempre protetoras.”

De resto, mesmo no campo do tratamento da doença mental grave, o atual paradigma da psiquiatria tem-se virado para um conceito conhecido por recovery (recuperação), que defende que a reabilitação psicossocial das pessoas, apesar das suas limitações, deve ser feita, sempre que possível, no seu ambiente, com autonomia e suporte da comunidade, não em internamento. “E também aqui, tudo o que são expressões artísticas — teatro, pintura, escultura, música — são instrumentos importantes de desenvolvimento da criatividade, por um lado, mas também daquilo que são as capacidades que as pessoas têm apesar da sua doença mental”, reforça Ana Matos Pires.

A solidão não se resolve com comprimidos

Lucília experimentou a Universidade Sénior há mais de um ano e, desde aí, não quer outra coisa. Frequenta a Saber Maior, na rua da Prata, em Lisboa, e começou por se inscrever na disciplina de Saúde e Bem-estar. “Era, no fundo, uma disciplina sobre psicologia e aprendi muito. Desde logo, a recordar que nós, idosos, não devemos ficar parados, que ainda temos muito para fazer e para dar à sociedade.” Depois ganhou-lhe o gosto e matriculou-se também em Francês, “para me recordar um bocadinho daquilo que tinha aprendido na escola”.

Este ano letivo manteve o Francês e inscreveu-se também em Património e Lendas de Portugal e em Sociedade Atual,  assim vai três dias por semanas: às segundas, terças e quintas-feiras. “As aulas começaram a 14 de setembro e eu baldei-me, mas foi por uma boa causa: fiquei a tomar conta da minha neta, que tem seis anos. Mas estou ansiosa que chegue segunda-feira, para começar a ir”, diz a rir.

“Temos evidência que sugere que, na infância, as crianças que ouvem ou tocam um instrumento musical ou têm hobbies criativos têm uma autoestima mais elevada. E os adolescentes que se envolvem em atividades artísticas e culturais relatam maior autocontrolo, sugerindo que isso os pode ajudar a regular emoções e comportamentos.”
Alexandra Burton, Departamento de Investigação em Ciências Comportamentais e Saúde da University College London

E o que é que esta atividade dá de tão importante? Lucília não hesita na resposta: “Ganhei um objetivo de vida. Tenho outros, claro, como ver a minha neta crescer, mas isto é uma coisa que me faz mesmo bem à alma: continuar a aprender, conviver com as colegas, sentir-me capaz.”

Continua a tomar todos os dias o antidepressivo e o ansiolítico, como faz há dez anos, e acredita que “talvez ajude um bocado.” Mas garante que “a solidão é uma coisa terrível que não se resolve nem com dez antidepressivos.” É preciso combatê-la com ações: “ter atividade, sair, aprender, falar, conviver. Acho que é isso que me tem mesmo ajudado.”

“A Prescrição Social procura atuar sobre a causa do problema e não apenas sobre os sintomas”, frisa Sónia Dias, diretora da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP-NOVA), da Universidade Nova de Lisboa, que tem coordenado o desenho e  implementação de iniciativas de Prescrição Social em Portugal.

Hipertensão, diabetes, gripe. A saúde e a doença faz-se disto. E de questões sociais, económicas ou de contexto de vida. De 2018 a 2022, a USF da Baixa encaminhou 791 utentes para prescrição social

A investigadora refere que esta ferramenta tem sido apontada com uma importante forma de apoio psicossocial a pessoas de todas as idades, origens e necessidades, incluindo “pessoas com depressão e ansiedade ligeiras a moderadas, que sofrem de isolamento social, com problemas de saúde mental de longa duração e vulneráveis e/ou em risco — como mães solteiras com baixos rendimentos, pessoas recentemente enlutadas, idosos, pessoas com doenças físicas crónicas, em situação de desemprego ou exclusão social”.

Alguns dos resultados preliminares da monitorização e avaliação de projetos de Prescrição Social, feitos pela ENSP-NOVA demonstram que “os indivíduos [referenciados] percebem melhorias ao nível do bem-estar, qualidade de vida, melhor disposição para desempenhar as atividades diárias, maior sentido de pertença à comunidade e maior interação social”. Além disso, ao nível clínico, “algumas pessoas referem sentir menos dor, consumir menos medicamentos e adotar hábitos de vida mais saudáveis.”

Em Lisboa, a prescrição social que começou na USF da Baixa, já se estendeu a cinco outras unidades de saúde familiar: as USF Almirante, Sétima Colina, Penha de França, Mónicas e Ribeira Nova. Há iniciativas semelhantes por todo o país, mas é difícil contabilizá-las, já que têm sido desenvolvidas e implementadas de formas diferentes, explica Sónia Dias. “Algumas partem da iniciativa dos profissionais das unidades de saúde, outros das autarquias, outros ainda de organizações do terceiro setor e também os há sob a tutela das instituições do ensino superior.”

Uma intervenção com evidência sólida

Alexandra Burton, investigadora do Departamento de Investigação em Ciências Comportamentais e Saúde da University College London, tem acumulado provas sobre a eficácia destas intervenções. A cientista tem estado envolvida no desenvolvimento e avaliação de intervenções psicossociais e artísticas para melhorar o bem-estar de pessoas com problemas de saúde mental e as evidências dos benefícios têm-se acumulado: as artes, por exemplo, são uma boa estratégia de enfrentar o stress, de gerir a doença mental e de aumentar a satisfação com a vida.

“Temos evidência que sugere que, na infância, as crianças que ouvem ou tocam um instrumento musical ou têm hobbies criativos — como pintura — têm uma autoestima mais elevada. E os adolescentes que se envolvem em atividades artísticas e culturais relatam maior autocontrolo, sugerindo que isso os pode ajudar a regular emoções e comportamentos.”

“[A saúde mental] inclui também a prevenção da doença e a promoção da saúde, e isso não se faz só com médicos e psicólogos. (...) “Tudo o que são expressões artísticas — teatro, pintura, escultura, música — são instrumentos importantes de desenvolvimento da criatividade e daquilo que são as capacidades que as pessoas têm apesar da sua doença mental.”
Ana Matos Pires, diretora da Unidade Local de Saúde Mental do Baixo Alentejo

A investigadora também tem conduzido alguns estudos que mostram a eficácia de intervenções específicas para alguns problemas em particular: cantar em grupo pode aliviar os sintomas em recém-mães diagnosticadas com depressão pós-parto moderada a grave e cantar num coro, escrever criativamente e fazer sessões de grupo de percussão podem reduzir a depressão e a ansiedade.

O como ou porquê destes resultados, explica, pode dever-se a fatores sociais, psicológicos, comportamentais ou biológicos. Além das evidências especialmente fortes dos benefícios sociais — incluindo a redução da solidão e do isolamento, que são fatores de risco para uma saúde física e mental mais precária —, há uma relação estabelecida “com o aumento da criatividade, regulação emocional, a autoestima e o autocontrolo.” Além disso, há impactos do ponto de vista biológico: “percebemos, por exemplo, que cantar em grupo reduz o cortisol em mulheres que sofrem de depressão pós-parto, assim como em pessoas com cancro.”

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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