Afinal, Mariana Mortágua está em falta, ou não, por ter sido paga por ser comentadora na SIC ao mesmo tempo que era deputada em exclusividade no Parlamento? Graças a um inquérito aberto pelo Ministério Público, o assunto voltou às mãos da Comissão da Transparência, através de uma nova proposta de parecer que está a gerar polémica entre os deputados e que já motivou queixas do Bloco de Esquerda, convencido de que tudo se resume a um “ataque pessoal” da direita contra Mariana Mortágua. E, depois de uma longa reunião (cerca de três horas), os deputados decidiram mesmo adiar a votação do novo parecer, que estava prevista para esta quarta-feira.
O novo projeto de parecer, que seria votado esta tarde na Comissão da Transparência, começou por ser noticiado, na terça-feira, pela CNN, apanhando de surpresa alguns deputados, segundo apurou o Observador. Porquê? Porque desta vez, e em contradição com um parecer anterior aprovado na mesma comissão em março, a conclusão é que Mortágua recebeu indevidamente os montantes pagos pela SIC entre 2015 e 2019, um período em que a Transparência ainda não se tinha pronunciado sobre se esta colaboração podia, ou não, ser remunerada a um deputado em exclusividade para clarificar a interpretação do Parlamento sobre a lei — que já era a mesma e que já tinha feito com que vários deputados de outras bancadas optassem por não estar em exclusividade, por entenderem que esse estatuto, pelo qual recebem um montante à parte, não era compatível com as funções de comentador.
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O novo projeto de parecer, feito pela deputada social-democrata Márcia Passos, conclui agora que, se é verdade que enquanto era cronista no Jornal de Notícias a deputada não incumpriu qualquer lei ou norma parlamentar — uma vez que os artigos escritos têm um regime diferente e podem ser remunerados — o mesmo não aconteceu com a SIC. E, se Mortágua chegou a devolver o montante indevido que recebeu da SIC nos cinco meses (de outubro de 2021 a fevereiro de 2022) em que a Transparência já tinha defendido que não o poderia fazer, o mesmo não aconteceu para o montante que recebeu na legislatura anterior, também enquanto comentadora televisiva.
Apesar de nessa altura o secretário-geral do Parlamento, Albino Azevedo, ter considerado que o assunto estava resolvido com a devolução desses cinco meses, o novo projeto de parecer, apurou o Observador, alega assim que Mortágua não efetuou a “reposição total do valor recebido” entre 2015 e 2019, frisando que mesmo que a Transparência não tivesse nessa altura estabelecido que o deveria fazer, a lei (o Estatuto Remuneratório dos Titulares de Cargos Políticos) é a mesma “nos dois períodos de tempo” — e podia, por isso, ser aplicada da mesma forma.
E se o parecer anterior, de março, “nada referia” em relação a situações anteriores, a relatora do PSD fala agora num possível “efeito retroativo” deste entendimento, que obrigaria Mortágua a devolver o que recebeu nos quatro anos anteriores — embora o projeto de parecer assuma que definir se os retroativos têm mesmo de ser pagos “extravasa” o objeto do documento, pelo que competirá à própria Comissão opinar sobre o assunto.
Ora é esta parte do novo projeto que está a irritar várias bancadas, a do Bloco de Esquerda à cabeça, uma vez que, conforme o Observador apurou, não seria esse o sentido da discussão que estava a ser feita até agora dentro da Comissão de Transparência e que seria até agora, segundo várias fontes presentes nesses debates, “consensual” e muito semelhante à que estava vertida no parecer de março. Quando o novo projeto de parecer foi noticiado pela CNN, na terça-feira à noite, vários deputados não estavam a par do conteúdo do texto, que teria sido dado a conhecer à presidente da comissão, a socialista Alexandra Leitão, mas não aos restantes parlamentares.
A novidade motivou, aliás, desde logo uma queixa do Bloco de Esquerda. Ao que o Observador apurou, os deputados receberam um e-mail do líder parlamentar e coordenador na comissão, Pedro Filipe Soares, dizendo estranhar que o novo projeto desrespeitasse as conclusões da discussão que já tinha acontecido na comissão e trouxesse novos pontos, incluindo o que diz respeito à possibilidade de Mortágua ser obrigada a pagar retroativos — uma conclusão que, a ser aprovada, virá reabrir o debate sobre todos os deputados que estiveram nessa situação no passado.
O Bloco terá mesmo argumentado que é um “mistério” como esta nova conclusão passou a fazer parte do texto do parecer, com elementos da bancada, mas também de outros partidos presentes na discussão, a considerarem o texto do PSD uma prova de “má fé” ou até “um ataque pessoal” à deputada.
O outro aspeto que incomodou os deputados foi o facto de o projeto de parecer ter circulado nos jornais antes de ser conhecido e votado pelas outras bancadas — sobretudo num processo que está relacionado com o inquérito aberto no Ministério Público, no qual o Parlamento foi, assim, chamado a pronunciar-se.
Os coordenadores da Transparência encontraram-se assim numa reunião à porta fechada, ainda esta quarta-feira, antes do encontro para o qual estava prevista a votação do documento. O Bloco mantém a esperança de que os outros partidos ajudem a travar o novo texto, bem mais problemático para a deputada do que o parecer inicial que tinha sido aprovado em março.