A substituição de Pedro Nuno Santos por João Galamba e a autonomização da Habitação num Ministério. Duas alterações apenas que parecem ter sabido a pouco ao Presidente da República — resumiu-as a “não mexer no que existia” e ao uso de prata da casa” –, que esta terça-feira avisou que se nada disto resultar, então “retirará conclusões”. No PS desdramatiza-se o eventual futuro recurso à bomba atómica da política nacional, a dissolução da Assembleia da República, com uma leitura (ainda assim) mais benévola para a sua maioria: “Marcelo quer manter o capital de pressão que perdeu com a maioria.”
A expectativa de uma mudança no elenco governativo mais alargada e até atingindo mesmo a orgânica do Governo era desejada por parte do partido e, a julgar pelas palavras à chegado do Brasil, também do Presidente da República. No PS não há quem o negue, mas coloca-se água na fervura da relação Belém/São Bento. Alguns dos socialistas ouvidos pelo Observador a propósito da avaliação de Marcelo sobre as alterações de Costa acreditam (e desejam) que se trate apenas de estratégia presidencial.
“Volta a colocar nas mãos dele um poder decisório que não tinha há muito tempo, a sair de um buraco em que se tinha metido”, comenta um deputado. E um dirigente mais antigo acrescenta semelhante leitura, ao dizer que Marcelo “quer é manter o capital de pressão que tinha perdido com a maioria absoluta”. E isto porque “na anterior configuração tinha maior influência, agora está a tentar recuperar… é o que lhe resta para um segundo mandato”, atira.
Mas o mesmo socialista lembra ao mesmo tempo que “mesmo com o PS penalizado [por mais uma crise interna no Governo] continuava a ter uma percentagem significativa” e questiona: “Se agora houvesse dissolução não se saberia o que viria: um bloco central? Ou uma direita coligada com o Chega?”. Se a primeira é vista como improvável, a segunda é colocada no colo do Presidente da República, com um aviso: “Não acredito que quisesse ser protagonista disso. Não gostaria de ficar com essa marca”.
“O que Marcelo fez hoje parece melhor para o PS, pois ao exagerar na dose assusta as pessoas e torna-se ele próprio mais um perigo para a estabilidade do que um garante da mesma”, atalha um outro dirigente.
A “perigosa” subjetividade dos critérios de Marcelo
Ainda assim, os socialistas concordam que a relação desceu aqui um degrau. “Esta subjetividade é perigosa, legitimou-se a dissolução de uma maioria absoluta. Passou do ridículo ao plausível”, descreve um deputado da maioria em conversa com o Observador.
Aliás, logo na sua mensagem de Ano Novo, o Presidente já tinha definido uma série de balizas para a atuação do Governo em 2023, apontando-lhe a “responsabilidade absoluta” por garantir a sua própria estabilidade. Os erros que só o Governo poderia cometer, autoinflingindo-se golpes graves a si próprio, passariam, segundo Marcelo, por “erros de orgânica, descoordenação, fragmentação interna, inação, falta da transparência e descolagem da realidade”.
Ora esta é uma lista que inclui “premissas de enorme subjetividade”, aponta um dirigente – e essa subjetividade pode representar um risco. Ou seja, apontando algumas balizas dificilmente quantificáveis, e muito dependentes da perceção de cada um, Marcelo pode abrir caminho à direita para que daqui a algum tempo – 2024, quando passar o ano em que Marcelo quer ver o Governo cumprir estes desafios, já com o PSD de Luís Montenegro mais forte e preparado para ir à eleições…? – possa alegar que o Executivo está a cometer os pecados capitais definidos pelo Presidente da República.
Mesmo entre os membros do partido mais convencidos de que esta declaração mais recente é apenas “à Marcelo” e que “se muda novamente a orgânica caso não funcionar”, admite-se que a interpretação do Presidente constitucionalista possa ser mesmo a de avançar com a avaliação-maior de um Executivo, dissolvendo a maioria.
Costa vs Santana, as diferenças
Por via das dúvidas, na última semana, os socialistas já tinham vincado as diferenças face ao Governo PSD/CDS de 2004 que foi dissolvido depois de uma série de peripécias, era o primeiro-ministro Pedro Santana Lopes. O social-democrata não tinha ido a votos, mas sim Durão Barroso, que foi entretanto para Bruxelas entregando-lhe o Governo, com o respaldo do mesmo Presidente da República que quatro meses depois dissolveu o Parlamento.
Um dos socialistas que o recordaram foi mesmo o presidente do partido, que escreveu no Facebook, no dia seguinte à demissão de Pedro Nuno Santos, que “no que toca ao ocorrido com Santana Lopes é bom lembrar que era um primeiro-ministro por procuração de Durão Barroso. António Costa é um líder do governo por eleição; acresce, como Marcelo Rebelo de Sousa fez questão de salientar na posse do governo, que António Costa se trata de alguém com excecional legitimidade e votação.”
Neste último ponto, Carlos César voltou, aliás, contra Marcelo a frase da posse que o próprio disse na posse deste Governo, quando colocou nos ombros de Costa o peso das “vitórias pessoais”: “Agora que ganhou por quatro anos e meio, tenho a certeza que sabe que esse rosto que venceu dificilmente pode ser substituído por outra pessoa.” O que na altura foi lido como um aviso, para evitar uma saída do líder socialista a meio do mandato, César aproveita agora para dizer que se esse peso previne essa saída, também previne uma dissolução.
PS agita trunfos — contas certas à cabeça
E se a mensagem de Ano Novo foi lida por muitos como um primeiro aviso — seja uma espécie de bluff de Marcelo para recuperar influência ou uma ameaça com eventuais efeitos no futuro — o próprio António Costa tratou de lhe tentar tirar peso e garantir que não sente por isso “responsabilidade acrescida”, considerando que Marcelo apenas sublinhou fatores de dificuldade de que “todos têm consciência”.
E, na linha de César, foi mais longe, frisando que o Presidente também destacou na mesma intervenção a “confiança” que os portugueses ainda há menos de um ano depositaram no PS e em Costa. Importante, sublinhou, é a estabilidade dos políticas — e essa é garantida pela “trajetória de contas certas” assegurada pelo Executivo, com a redução do défice e da dívida.
No topo do PS, dá-se especial ênfase a este ponto. “A considerar a mensagem do Presidente, a oposição tem de voltar a escrever o guião“, garante um dirigente, preferindo concentrar-se nas partes que Marcelo reconhece que “correram bem” — “o reconhecimento de que Portugal esteve melhor do que outros no crescimento, no défice, no Investimento Direto Estrangeiro, na crise energética”.
“Veio ao encontro do que temos dito e que a oposição tentou e tenta desmentir a todo o momento”, assegura o mesmo dirigente. No fundo, garantem várias fontes no PS, a ideia é apenas uma: o bolso e as finanças das famílias continuam a ser os fatores que mais tocam o eleitorado — e Marcelo saberá que esse é um ponto crucial entre as missões que o Governo tem pela frente, e das que mais contribuirão para a perceção pública sobre os mandatos de Costa.
Dissolução? Para já, uma “ameaça” para “isto mudar”
Certo é que em boa parte do PS a ideia é que Marcelo quis recuperar o poder perdido e servir de contrapeso ao Governo – numa altura em que o Executivo se encontra mais fragilizado do que nunca –, embora também não existam certezas sobre o que poderá fazer com esse poder. Há quem acredite que a pressão pode continuar a aumentar e até que pode estar em causa uma “ameaça muito clara”: “Ou isto muda ou ele dissolve a Assembleia da República por altura das eleições europeias”, antecipa uma fonte socialista.
Nesta tese encaixa não só a vontade de Marcelo, mas a ideia que alguns dentro do partido continuam a alimentar, apesar das garantias de António Costa de que não abandonará o leme do Governo: o próprio primeiro-ministro poderia estar interessado em que houvesse eleições em 2024, rumando para o tão discutido cargo europeu, um desejo que lhe é apontado há anos.
Ainda assim, até ver, a maior parte dos socialistas prefere pôr água na fervura: para já, Marcelo agiu estrategicamente e tomou posição num assunto que poderia mexer com a opinião pública (avaliando, por exemplo, pela sondagem que saiu já com a crise política em marcha, em que a maior parte dos inquiridos elogiava a saída de Pedro Nuno Santos e outra boa fatia aconselhava Fernando Medina a seguir o mesmo caminho). Só com os próximos passos de Marcelo se perceberá exatamente quão longe o Presidente quererá levar os desafios ao Governo.