As portagens nas antigas SCUT (auto-estradas sem custos para os utilizadores) do interior e Algarve vão ser eliminadas a partir de 2025, mas contra a vontade da AD e do Governo. O projeto do PS foi o único que passou — com o Chega a juntar-se à esquerda para o viabilizar — e a somar mais um capítulo à novela de projetos que passam com esta mesma geometria. Aconteceu há uma semana com a redução do IRS e volta agora com as portagens que o Governo já se apressou a dizer que vão pesar aos cofres públicos mais do que o PS diz. E há mais medidas do programa socialista na calha. A próxima poderá ser a descida do IVA da eletricidade para 6% em escalões mais baixos do consumo — que ainda não entrou — e que pode custar 90 milhões de euros.
Aliança entre PS e Chega impõe primeira derrota ao Governo no IRS. Ainda falta metade do jogo
No caso das portagens, as contas dos socialistas apontam para 157 milhões de euros por ano, mas o Governo atira para 180 milhões de euros todos os anos e o ministro dos Assuntos Parlamentar diz que são 1,5 mil milhões de euros até ao final das concessões. Pedro Duarte apontou à falta de responsabilidade dos socialistas, assinalando que será preciso negociar com as concessionárias.
O pós debate foi intenso, com Pedro Nuno Santos a saltar logo para os Passos Perdidos para cantar vitória ao mesmo tempo que garantia não existir qualquer bloqueio. Afinal tinha sido isso mesmo que o líder parlamentar do PSD, Hugo Soares, tinha acusado PS e Chega de estarem a fazer.
Já depois de ter dado conta da inevitável aprovação da proposta do PS e de ter desconforto dentro da sua própria bancada sobre este tema, Hugo Soares fez um apelo in extremis para que os partidos aceitassem que os projetos passassem à comissão da especialidade sem esta primeira votação no plenário e lá se acertaria a decisão final. “É a prova dos nove para saber se há um bloqueio ou uma oposição que quer construir soluções de futuro para todos”, desafiou Hugo Soares.
Mas os socialistas ignoraram o pedido e a votação aconteceu mesmo: PS, Chega, BE, PCP, Livre e PAN a favor, PSD e CDS contra e IL absteve-se. O projeto de resolução do PSD, que prometia (sem datas ou método) uma redução gradual das portagens, ficou pelo caminho, bem como os restantes (do Chega, IL e PAN) e os projetos-lei do Bloco e PCP. No fim, as portagens acabam na A4 – Transmontana e Túnel do Marão,A13 e A13-1 Pinhal Interior; na A22 do Algarve; na A23 da Beira Interior, na A24 – Interior Norte, na A25 – Beiras Litoral e Alta; e ainda nos troços entre Esposende e Antas e Neiva e Darque, da A 28.
O líder do PS já tinha marcado hora nos Passos Perdidos para reclamar, perante as televisões, aquela vitória, mas também para garantir que o PS “não está a bloquear nada”. “Não é aceitável que se apelide de bloqueio o trabalho natural de um grupo parlamentar”, respondeu ainda quando confrontado com as acusações do PSD durante o debate sobre as portagens.
Também deixou logo ali a garantia de respeito orçamental da proposta apresentada, já adivinhando o contra-ataque social-democrata. O socialista garantiu que “o custo estava enquadrado no cenário macroeconómico que o PS apresentou na campanha, são cerca de 150 milhões de euros.” Uma posição que o Governo veio contrariar, depois do debate e depois do líder do PS falar, com o ministro dos Assuntos Parlamentares a apresentar outras contas.
“Alguém tem de pagar” e será preciso compensar IP e concessionária da A23
Pedro Duarte assinalou a “profunda irresponsabilidade orçamental” da medida que “custa 180 milhões de euros para 2025. Mas não tem impacto num ano. Até final do prazo das concessões, custa 1,5 mil milhões de euros. Ou seja, até 2040”, contabilizou em declarações aos jornalistas.
“Ninguém gosta de pagar portagens, mas o problema é que vai ter de ser pago e se calhar o custo vai ser maior porque agora a negociação será muito mais difícil do que ontem”, afirmou o ministro aos jornalistas após o resultado da votação. Ainda assim, prometeu que o Governo “ia começar a trabalhar” para implementar a medida aprovada no Parlamento e que permite eliminar, ao fim de 14 anos, as portagens nas ex-SCUT do interior e ainda nas subconcessões do Túnel do Marão, Transmontana e Pinhal Interior.
Os socialistas acreditam que não será necessária uma negociação porque as portagens das antigas SCUT são uma receita da Infraestruturas de Portugal, empresa que é do Estado. Mas admitem a necessidade de compensar a IP que é a empresa responsável pelos grandes projetos de infraestruturas, sobretudo na ferrovia.
Fonte oficial da IP diz em resposta ao Observador que, “eventuais medidas que induzem perdas de receita com natureza permanente, afetam o modelo económico-financeiro do Contrato de Concessão da IP, celebrado em 2007 e por um período de 75 anos. Haverá que articular com o Estado um mecanismo suscetível de assegurar a compensação da empresa pela perda de receita em causa, ou o ajustamento em conformidade do modelo económico da concessão.”
A isenção proposta no PS pode implicar ainda o reequilíbrio financeiro da concessão da A23, porque a apenas o troço entre Torres Novas e Abrantes origina receita que para a Infraestruturas de Portugal. “O restante traçado, entre Abrantes e a Guarda, integra-se na Concessão da Beira Interior (contrato sob gestão do IMT), sendo a receita de portagens da concessionária”, indicou ainda a IP ao Observador.
Infraestruturas de Portugal espera compensação pelo fim das portagens nas ex-SCUT
Uma perda de 157 milhões de euros representa cerca de metade de todas as receitas que a IP recebeu no ano passado com as portagens, de 320 milhões de euros. Este valor representa apenas um terço dos encargos com as Parcerias Público Privadas na rodovia que tem de continuar a ser pagas, mesmo que estas vias não tenham portagens. Isto porque os contratos determinam que as concessionárias são pagas pela disponibilidade da infraestrutura e o risco de tráfego e as receitas das portagens ficam do lado do Estado.
Quase todos concordam, mas acusam-se uns aos outros
Durante o debate, a direita atacou sobretudo o PS pelos anos de governação em que nada fez sobre este assunto, nomeadamente nos últimos oito onde chegou a governar com apoio à esquerda. Os deputados do PSD não pouparam os socialistas a quem acusaram de hipocrisia, demagogia e cambalhota.
Os socialistas puxaram da cabeça de lista pela Guarda e ex-ministra da Segurança Social, Ana Mendes Godinho, para dar resposta a este argumento e dizer no plenário que neste momento “o país tem condições para cumprir”. A deputada socialista também sublinhou a “coerência” do PS, uma expressão que irritou o PSD do início ao fim do debate. Hugo Soares vociferava, na primeira fila, sempre que alguém do PS a usava nas intervenções.
Desde a manhã que os social-democratas vinham a ensaiar o argumento de incapacidade do PS durante anos de avançar com a eliminação de portagens e de aproveitar agora que está na oposição para o fazer. Cristóvão Norte recordou mesmo a “estranha aritmética” que vigorou durante a governação à esquerda, em que a “abolição do BE, mais a do PCP, mais a redução de 50% do PS degenerou, ao fim de uma legislatura com maioria de esquerda, numa redução de 15%, menos que o valor absoluto de redução do Governo anterior”.
O debate decorreu sempre num ambiente tenso e as acusações ao PS não se cingiram às bancadas do PSD e CDS. Na IL, Carlos Guimarães Pinto elencou as muitas propostas feitas nos últimos oito anos pela oposição para reduzir ou eliminar portagens nas antigas SCUT e contra as quais o PS votou “contra, contra, contra”. A lista era tão grande que o presidente da Assembleia da República, Aguiar Branco, chegou a dizer ao deputado da Iniciativa Liberal que já tinha esgotado todas as autoestradas.
E mesmo o PCP, pela voz da líder parlamentar Paula Santos que questionou a pressa socialista: “Então tiveram oito anos (no Governo) e não resolveram o problema”. No Chega, o líder parlamentar Pedro Pinto fez o mesmo, apontando a “falta de vergonha” do PS. Ainda assim, no final de tudo, o Chega ficou ao lado dos socialistas. “O projeto do PS é bem vindo. Acompanhamos porque não temos uma coligação negativa. A única coligação que temos é com os portugueses”, afirmou para justificar a fotografia final de toda a sua bancada de pé ao lado de Pedro Nuno Santos e companhia.
Isabel Pires do Bloco de Esquerda acusou o Chega de ter mudado o projeto de resolução à última hora, substituindo o prazo de seis anos para dois anos porque “ficava mesmo muito mal junto da população.” “Passam a vida a enganar e a mentir às populações. E esse é o problema do Chega. Porque não tiveram coragem de propor a abolição das portagens?”
Um resumo possível foi feito por Rui Tavares. “A maioria deste Parlamento concorda que as portagens são injustas” e, no entanto, “os partidos acusam-se uns aos outros”. O Livre não apresentou propostas, mas votou a favor da do PS.
As cinco propostas do PS prioritárias
A abolição das portagens era uma das cinco propostas que o PS disse que iria avançar já. Pedro Nuno Santos apresentou o seu caderno de encargos no debate do programa do Governo, garantindo o avanço no “imediato” da proposta para abolir as portagens, mas também para reduzir o IVA da eletricidade a mais de três milhões de portugueses. Outras três medidas iria avançar logo: alterar as condições de acesso ao Complemento Solidário para Idosos (CSI) para excluir os rendimentos dos filhos, aumentar a despesa dedutível no IRS com arrendamento até os 800 euros e alargar o apoio ao alojamento estudantil para os bolseiros da classe média.
O IRS acabou por vir por arrasto da iniciativa do Governo de baixar as taxas médias até ao oitavo escalão. Face a esta proposta do Governo, o PS apresentou o seu projeto para baixar os primeiros escalões e conseguiu passar, sendo agora debatida na especialidade. Passou a iniciativa socialista com a abstenção do Chega.
Aliança entre PS e Chega impõe primeira derrota ao Governo no IRS. Ainda falta metade do jogo
Paulo Núncio disse, aliás, no debate desta quinta-feira que o das 26 propostas da esquerda, o Chega permitiu viabilizar 75% nesta legislatura. O Chega, concluiu, “vota maioritariamente ao lado do PS e da extrema esquerda”.