Quando tinha 11 anos, Beatriz, a irmã e a mãe foram acolhidas pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) para pôr fim à violência de que eram vítimas na casa em que viviam. Foi nessa altura que a então adolescente começou a ser acompanhada no W+, a unidade de saúde mental da instituição. Até hoje.
“Fui passando por várias fases complicadas”, diz a jovem, hoje com 23 anos. “Depois aconteceram outras. A minha mãe abandonou-me quando eu tinha 15 anos e fui sentindo sempre a necessidade de vir aqui.”
Beatriz é uma dos 1150 utentes da W+, que em 2022 garantiu 12847 consultas de psicologia, 1.831 de enfermagem, 762 de psiquiatria e 339 de medicina geral e familiar. Todas gratuitas, num serviço que conta com 15 psicólogos, duas enfermeiras, duas médicas (uma psiquiatra e outra de medicina geral e familiar), uma assistente social e uma terapeuta ocupacional, além de quatro administrativas e um segurança, o senhor Alfredo, que é quem recebe todos os que entram no W+ e tem no seu posto de trabalho uma placa que não deixa margem para dúvidas: “big boss”.
No número 2 da Rua Duque de Palmela, perto do Marquês de Pombal, em Lisboa, onde ocupa três pisos, esta unidade de saúde da SCML acolhe um serviço criado para prestar acompanhamento psicológico e psicoterapêutico e cuidados de saúde primários à população vulnerável e em risco psicossocial a que a instituição dá apoio na cidade. A W+ aposta também na prevenção de comportamentos de risco e na promoção de estilos de vida saudáveis às pessoas a quem dá resposta.
Acolher é talvez o verbo que melhor define a W+, onde a informalidade do trato, a desburocratização do processo e a criação de respostas à medida de cada caso permite que Beatriz seja seguida pela mesma psicoterapeuta, semanalmente, há 12 anos. Ninguém larga a mão de ninguém aqui. É essa a ideia que passa em todos os testemunhos, a de apoio, de rede, de família. “Porto de abrigo”, dirá Ivo, 65 anos, utente do grupo terapêutico “Adultos em Progressão” com quem falaremos mais adiante.
“Admito que sou um pouco influenciada porque estou a seguir Psicologia e acho que toda a gente devia ter acompanhamento psicológico, mas faz-me bem vir aqui”, diz Beatriz. “Há coisas e sentimentos que ainda não sei processar e o trabalho que faço com a minha psicoterapeuta ajuda-me. Já tive períodos longos em que não vim, mas acabo por voltar sempre. Faz-me falta.”
A jovem, que vive num apartamento da SCML, não tem um diagnóstico, mas socorre-se dos conhecimentos adquiridos no curso que está a tirar para adiantar que sofre de ansiedade generalizada. Não é de admirar. A violência familiar, o abandono e uma adolescência que se adivinha ter sido difícil fizeram mossa. E poderiam ter feito muito mais, se não tivesse tido o respalde da W+ e do acolhimento na SCML.
Diferentes problemas, diferentes respostas
Sónia Santos, psicóloga clínica e psicoterapeuta, com especialização em psicodrama, é a diretora da W+ e defensora da abordagem interdisciplinar que esta unidade de saúde mental — distinguida em 2019 com o Prémio de Boas Práticas em Psicologia da Delegação Sul da Ordem dos Psicólogos Portugueses — adotou desde a sua origem.
“A população a que damos resposta tem determinadas especificidades e desde o princípio criámos uma série de projetos e programas que procuram não só potenciar a adesão, nem sempre fácil, destas pessoas aos cuidados de saúde mental e física, como adaptar a resposta a cada um de forma a torná-la mais eficaz”, diz.
Organizada em três núcleos (crianças, adolescentes e adultos), a W+, fundada em 2003, tem como filosofia transversal a adaptação contínua às diferentes etapas da vida da pessoa. Para aceder ao serviço, basta ter o cartão de saúde da SCML, que pode obter-se em qualquer junta de freguesia do concelho de Lisboa ou nos serviços de ação social da instituição, sendo a maioria dos utentes referenciado ou encaminhado por estes serviços, bem como pelas Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), pelo Tribunal de Família e Menores ou pelas várias entidades com as quais a W+ tem protocolos, nomeadamente escolas, o Hospital Dona Estefânia ou a escola de artes circenses Chapitô.
“O primeiro passo é a triagem, feita por uma psicóloga, um enfermeiro e uma assistente social, após a qual, em equipa, é elaborado um plano (psico)terapêutico individual, que responde às necessidades de cada, não o enquadrando em respostas previamente formatadas”, diz Sónia Santos. Ao longo destes vinte anos, foi-se tornando claro para a equipa que a terapia individual, que é fundamental, nem sempre é a melhor forma de chegar a muitos utentes da W+, “sobretudo os jovens e adolescentes, até porque a forma de comunicar não se faz só através da palavra e a palavra às vezes é difícil para a população que acompanhamos”.
Daí que, de acordo com uma lógica de “Porta de Entrada Giratória”, a W+ disponha de diversas respostas, pelas quais os utentes podem passar, sejam mais convencionais (consultas) ou mais inovadoras. No núcleo Crianças, por exemplo, há o projeto Controla-te+, o Yoga e Mindfulness para Crianças ou o ExperimentArte. No núcleo Adolescentes, há o Teatro Terapêutico, o Põe-te em Cena ou o Fotossíntese. E no de Adultos, há os Diálogos com a Depressão, os Diálogos no Feminino ou o Adultos em Progressão, entre outros. Diferentes idades, diferentes pessoas, diferentes desafios, diferentes respostas.
“Temos grupos terapêuticos, grupos psicoterapêuticos, grupos de suporte e outras atividades de promoção de estilos de vida saudáveis e prevenção de comportamentos de risco. Muitos têm por base a cultura e a arte, porque acreditamos que os mediadores artísticos expandem horizontes e abrem a porta para o interior de cada um” diz a diretora do W+, para quem a arte ajuda a diminuir barreiras e coloca as pessoas em plataformas de igualdade. “Se eu me sentir igual aos outros é meio caminho para me sentir bem em termos de saúde mental.”
O Teatro Terapêutico
Sónia Santos é também, desde que foi criado, em 2005, a dinamizadora do grupo de Teatro Terapêutico, um dos que têm maior adesão por parte de jovens e adolescentes. “Conseguimos de forma protetora trabalhar questões profundas de cada um”, diz a especialista em psicodrama, uma psicoterapia individual feita em grupo, neste caso. “Os jovens participam na criação da peça e na escrita dos textos e há uma série de projeções deles nas personagens, através das quais conseguimos trabalhar as suas dificuldades e fragilidades e empoderá-los.”
Dessa forma conseguem trabalhar questões individuais numa fase da vida em que o contexto social e de comunidade garante uma sensação de pertença. Em grupo, os jovens podem expressar as suas fragilidades e isso ajuda os outros a não se sentirem tão sozinhos e a perceber que não são os únicos a sentir-se assim.
A psicóloga recorda, a propósito disso, um grupo anterior do projeto de teatro terapêutico, que juntava miúdos agressores e miúdos vítimas de bullying. “Ao ouvirem os que tinham sido vítimas de bullying expressar o que sentiam, os agressores perceberam mais profundamente o impacto do seu comportamento, porventura muito mais duro do que imaginavam. A descentração e a empatia, a capacidade de se pôr no lugar do outro, são coisas que trabalhamos muito em grupo e isso é muito importante.”
No último ano e meio, o grupo de teatro terapêutico é constituído sobretudo por estudantes de teatro da escola Passos Manuel, com a qual a W+ tem um protocolo. Sónia Santos explica que estão aqui a pedido da escola, que considerou que havia questões de saúde mental em relação às quais seria importante intervir. Eles, 15, reunidos numa grande mesa oval, dizem que estão a fazer estágio. Não têm muita vontade de falar. Mas à medida que a conversa se desata, percebe-se que sim, que têm questões para resolver e o trabalho que fazem aqui ajuda-os a fazê-lo.
Calçar os sapatos do outro
Prova disso são as duas peças que prepararam para apresentar em duas edições do Festival Mental e a curta-metragem que montaram em dois dias para o Festival 48 Horas. A peça do ano passado foi a que mais exigiu deles. Tiveram de ir ao fundo de si para trazer cá acima os momentos da vida que mais sofrimento psicológico causaram. Zuzimo Mourato, 17 anos, do Barreiro, falou de violência familiar, assim como Elizandro Sebastião, 18 anos, de Loures. Beatriz, Sara, Alice, 17 anos, e Deibi, 16, de Lisboa, falaram de luto, da perda dos avós, de um irmão, de um familiar. E Leandra, 16 anos, da Amadora, embora não tenha participado nessa experiência, leva deste ano a ajuda que foi subir a um palco e encarnar uma personagem.
“Teria sido importante falar de depressão e ansiedade nesta última peça que criámos, porque afeta muitos jovens e, se calhar, as pessoas mais velhas não passaram por isso e não sabem a sensação de ficar sem ar, de não conseguir respirar, de sentir como se duas paredes estivessem a fechar-se e a esmagá-las, que é o que eu sinto de cada vez que tenho de falar com outras pessoas ou apresentar um trabalho”, diz a jovem, revelando como o teatro a tem ajudado. “É onde me refugio, porque não sou eu ali, é uma personagem.”
A Deibi não está a encarnar uma personagem, mas, claramente, trabalhou a sua fala e quer dizer que o W+ trouxe à tona aquilo que poucos conseguem ver dela, a expressão das emoções. “Sou uma pessoa fria e saí das duas peças a chorar. Esta última foi menos íntima, mas identifiquei-me completamente com o texto que disse. Parecia que era sobre mim. Era sobre inclusão – ou sobre exclusão, depende do ponto de vista –, alguém a tentar integrar-se, fazer coisas com que não se identifica só para agradar os outros, só para se sentir incluído. Isso acontece cada vez mais, as pessoas deixarem de ser quem são só para fazerem parte e é muito importante pensar sobre isto.”
Ajudar a fazer homenzinhos
Sentir como se duas paredes estivessem a fechar-se e a esmagá-los. A imagem é forte e é comum a qualquer dos participantes do grupo Adultos em Progressão, agora também noutro projeto, o ImaginArte, a par das consultas de psicoterapia e psiquiatria que têm na W+.
Ivo, 65 anos, Paulo, 60 anos, Eunice, 52 anos, Eduarda, 60 anos, Vítor, 69 anos, Edna, 39 anos e Bruno, 35 anos, enfrentam problemas de saúde mental graves, enxertados em percursos de vida duros, uns marcados pela solidão, depressão ou alcoolismo, outros pelas tentativas de suicídio.
Na W+, aqui personificada na terapeuta ocupacional Paula Pimentel e na assistente social Ana Luísa Carvalho, encontraram o tal “porto de abrigo” de que Ivo falava. São elas que dinamizam o grupo Adultos em Progressão, que existe há cinco anos, e o ImaginArte, que começou este ano, em parceria com a Dona Ajuda e a associação A Praça, que funcionam no Mercado do Rato.
“O Adultos em Progressão trabalha a inclusão, a literacia, o acesso à cultura, as relações de interajuda, mas é também um grupo de suporte que funciona como rede de apoio”, explica Paula Pimentel. “Trabalhamos as questões da inclusão e da socialização”, continua Ana Luísa. “O Adultos em Progressão tem uma vertente mais cultural, de ir a museus, exposições, teatro, concertos. No ImaginArte optámos por trabalhar na comunidade, através de parcerias. Começámos por trabalhar o livro O Principezinho, que permite trabalhar uma série de questões de uma forma mais descontraída, sem ser em terapia.”
Os grupos são terapêuticos, mas também de suporte e de promoção da saúde mental e bem estar, além de quebrarem o isolamento e a solidão. “As pessoas partilham os bons e os maus momentos, mas os problemas individuais ficam para trabalhar em psicoterapia”, diz Paula. “E aqui têm um apoio, que é fundamental. Uma rede, uma família.”
O Paulo é exemplo disso. “Fui cuidador da minha mãe durante sete anos, sete anos de prisão domiciliária, e a partir daí perdi o interesse todo pela vida. Estou bem é fechado em casa a sete chaves, não quero saber de nada”, diz.
Pinta de bom malandro, que não esconde que foi, a defender-se atrás de um sarcasmo muleta, Paulo teve vida dura, desde miúdo, filho de mãe negligente de quem acabou a mudar as fraldas e que lhe morreu nos braços, num feriado de 1 de maio. Ele, que teve um filho de quem não cuidou. “Não me aceita sequer e tem toda a razão. Não tomei conta dele, mas tomei da minha mãe. Ironias. Era minha obrigação. Tive de me fazer homenzinho uma vez na vida.”
A W+ apareceu como solução, a conselho dos enfermeiros que iam prestar cuidados de saúde à mãe. Já tinha passado pela psiquiatria do Centro Dr. José Domingos Barreiro, também da SCML, mas o “toma lá um comprimidozinho, que isso passa” não fazia passar a ansiedade e depressão que há anos afogava no álcool.
Adultos em Progressão
“O Paulo bebia muito, era alcoólico. Mas era funcional e meteu-se-lhe na cabeça que tinha de se tratar.” As palavras são do próprio. Mas não correu tudo bem na W+. Inicialmente, a receita da psiquiatria foi a mesma, “o comprimidozinho”. Porém, quando começou a fazer psicoterapia, começaram a operar-se mudanças. “Fez-me muita diferença. E depois aqui o grupo. Ao princípio fazia-me confusão porque é tudo gente muito diferente de mim e eu não tenho facilidade de me relacionar, mas fez-me bem porque aprendi a estar com eles. É um dos ganhos que tenho, além de conhecer aqui a camarada Paula e a camarada Ana Luísa, e até já ter feito desenhos, que era coisa que não fazia desde a escola. Com os problemas que tenho, que não estão resolvidos e estão todos cá dentro, a maior vitória foi conseguir estar com pessoas que são totalmente diferentes de mim.”
Realmente, não podiam ser mais diferentes, o Paulo e o Ivo, apesar do tanto em comum no percurso de vida, marcado pelo trabalho instável, o desemprego, a pobreza, o alcoolismo. Na W+ há cinco anos, encaminhado pela ação social da SCML, Ivo viveu sempre com os pais e quando a mãe morreu, há 22 anos, entrou em modo autodestruição e chegou “a estar internado no Júlio de Matos”. “Não queria saber de mais nada. Cheguei a pontos de querer dar cabo de mim próprio, por duas ou três vezes. Tenho é de ter a cabeça ocupada e aqui o grupo é muito bom para isso”.
O grupo também é bom para Eunice. Fala depressa, tem sorriso de menina perdida, mas está em processo de se reencontrar, agora que está a tirar a licenciatura em Sociologia e a aprender a lidar com a ansiedade e a sensação de rejeição que a marcaram ao longo de uma vida em que o álcool teve também um papel desorganizador. “Perdi a minha casa em 2013. Foi quando recorri à Santa Casa. Algum tempo depois passei a ter acompanhamento psicológico. Agora estou no grupo, que me faz muito bem, trabalhamos as nossas emoções e isso é tão importante.”
Também tem sido importante para Eduarda, quase escondida atrás de Eunice. Além das consultas de psiquiatria e psicoterapia, faz parte do grupo Adultos em Progressão desde 2018. Em voz baixa, vai confirmando a reserva que a caracteriza. “Sinto-me acolhida. Nunca me senti desprotegida ou abandonada e para mim, que tenho depressão, isso tem sido fundamental”, diz ela, lembrando que mesmo em pandemia o acompanhamento manteve-se. “Não fomos abandonados, antes pelo contrário, e isso não tem preço.”
Não tem preço também para Vítor, desenhador, a quem o divórcio, a perda da casa, a morte da mãe e as dificuldades financeiras graves deixaram em burnout. Após um ano de psicoterapia e acompanhamento através do grupo Adultos em Progressão, reorganizou-se. “Consegui voltar a mim, corrigir erros que tinha e recomeçar”, diz, anunciando, de sorriso aberto, que vai voltar a casar.
Ao lado, Bruno abre os olhos, quase sempre semicerrados. Apesar de ser o mais novo, é o mais antigo aqui na W+, onde é acompanhado há cerca de vinte anos, desde adolescente, pela mesma psicóloga. Não tem vontade de falar. “Sou muito reservado, muito fechado. Todos têm as suas dificuldades e eu tenho muitas, tenho dislexia, perco-me, preciso que me ajudem a orientar-me no espaço e outras coisas. A vida é sempre uma batalha e não é fácil, mas consegui ultrapassar alguns obstáculos aqui na W+”, diz, como se estivesse no palco que quando era adolescente pisou muitas vezes, com o grupo de Teatro Terapêutico, lembra Sónia Santos, lá do fundo.
Também Edna tem ultrapassado imensos obstáculos, que a fazem estar hoje aqui, maquilhada e vestida para arrasar. Não esteve no Teatro Terapêutico, já era adulta quando chegou à W+, em 2017, mas talvez fosse um projeto pelo qual gostasse de ter passado. Depois de várias tentativas de suicídio e de um internamento compulsivo, foi encaminhada para a W+ pela assistente social e agradece que isso tenha acontecido.
“Psiquiatria, psicoterapia, medicina familiar. E deu nisto”, diz, apontando para si própria a rir. “Antes do W+ não tinha vida, não tinha sorriso, não pensava em mim, não me cuidava. Desde que estou aqui, com acompanhamento, tenho isso tudo. Se tenho uma crise, agarro no telefone e está sempre alguém disponível para me apoiar. Toda a paciência e apoio que têm tido comigo faz-me vê-los como uma família.”
Do outro lado da mesa, Paulo sorri e canta: “E foi assim que comecei a ser feliz”.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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