Os próximos anos vão trazer uma inversão naquilo que é o valor que a sociedade atribui a cada profissão (uma valorização que se reflete em estatuto social mas, também, em remuneração). Muitos trabalhos técnicos, como eletricista ou canalizador, serão cada vez mais valorizados, porque esses não serão substituídos por máquinas no futuro que “inevitavelmente” se avizinha. Já as profissões de “colarinho branco, em muitos casos, serão as primeiras a ir, a desaparecer”, alerta Martin Ford, autor de Rise of the Robots, o livro do ano de 2015 para o Financial Times (traduzido em Portugal pela Bertrand, com o título Robôs: a ameaça de um futuro sem emprego).
Martin Ford veio a Lisboa para participar no segundo evento do ciclo de conferências Fidelidade-Culturgest sobre inteligência artificial (que terá a terceira e última conferência no dia 5 de junho, com Stuart Russell). Numa entrevista com cerca de uma hora ao Observador, o autor de um dos livros mais influentes da década sobre o tema das novas tecnologias fala sobre como preparar as nossas carreiras (e como educar os nossos filhos) tendo em mente um futuro em que a tecnologia vai ter uma importância exponencialmente maior nas nossas vidas, com tudo o que de bom e mau isso irá implicar.
Não é a primeira vez que previsões destas são feitas, incluindo vaticínios catastróficos de perda massiva de postos de trabalho. No passado, muitas dessas previsões revelaram-se precipitadas, à imagem do que acontece na história do Pedro e do Lobo. “Mas repare que, nessa história, no final o lobo chega mesmo — e ninguém está preparado para ele”, afirma Martin Ford, que critica Elon Musk por estar a “contribuir para a inação” das pessoas e dos responsáveis políticos com as metas ultra-ambiciosas que o patrão da Tesla estabelece publicamente (e que, depois, não se cumprem).
Martin Ford, que revela com um sorriso tímido que sempre que vem a Lisboa não resiste a uma boa travessa de sardinhas assadas, explica porque é que é absolutamente essencial e urgente que as sociedades preparem a introdução de um rendimento básico incondicional (RBI) a distribuir por todos os cidadãos. Parece-lhe uma ideia idiota? Leia os argumentos de Martin Ford sobre esta ideia, que está a ganhar força em todo o mundo e já vai entrar na próxima campanha presidencial nos EUA.
Saiu um estudo feito pela McKinsey, há alguns meses, que estimou que a automação e a robótica poderiam eliminar mais de um milhão de postos de trabalho até 2030. E isto apenas com tecnologias que já existem ou que rapidamente se estão a vulgarizar. Como é que nos podemos preparar para este cenário?
Têm-se feito vários estudos, pela McKinsey e por outras consultoras, e todos são razoavelmente assustadores no que toca ao impacto sobre os postos de trabalho existentes. Mas há que ter presente que, na metodologia desses estudos, o enfoque não está em postos de trabalho mas, sim, em tarefas. Isto é, partes integrantes, porções, do posto de trabalho — como dizer, metade do trabalho que faço podia ser feito por uma máquina ou por software (mas a outra metade não). É certo que, num caso como este, tendencialmente, a prazo, dois funcionários vão transformar-se em apenas um, mas o efeito não é assim tão direto e imediato como parece.
O que se pode concluir a partir desses estudos, então?
O que é claro é que os tipos de tarefas ou postos de trabalho que são mais rotineiros, repetitivos e previsíveis são mais suscetíveis de serem substituídos. Por isso, o conselho a dar a toda a gente é que, na medida do possível, se devem afastar, em termos de carreira, dessas tarefas e desses empregos.
E apostar mais em que áreas?
Naquelas que envolvam mais criatividade e que envolvam interação direta com outras pessoas. E, também, trabalhos técnicos, que implicam alguma qualificação mas não necessariamente universidade, como eletricista e canalizador. Estes são trabalhos que tão cedo não irão ser substituídos por máquinas, porque envolvem muita destreza de mãos, perceção visual em ambientes imprevisíveis. Criar um robô que seja capaz de fazer este trabalho envolveria algo como o C3PO de Star Wars. Isso ainda está muito distante, não temos nada que se assemelhe minimamente a isso.
“Robôs” eliminam 1,1 milhões de empregos em Portugal até 2030, avisa estudo da CIP
Vai haver uma inversão da separação tradicional entre empregos de colarinho branco e colarinho azul?
Todos os empregos onde a pessoa chega, todos os dias, e faz as mesmas coisas, estão em perigo. Isso inclui muitos chamados empregos de colarinho branco. Na Alemanha, por exemplo, já vemos que existem programas de aprendizagem técnica, para profissões mais técnicas, e a sociedade atribui bastante valor e estatuto a estas pessoas. Além de serem bem pagas. Já nos EUA, em contraste, toda a gente acha que tem de ir para a universidade. Há um problema de perceção social e cultural, porque estes empregos [eletricista, canalizador, e outros] são, na realidade, algumas das melhores profissões que se pode ter no futuro.
E, em contraste, as profissões de colarinho branco…
Vão ser as primeiras a ir, a desaparecer, em muitos casos. Se o seu trabalho é estar à frente de um computador a fazer uma coisa previsível isso é muito fácil de automatizar — é apenas software. Muitas dessas profissões para as quais as pessoas vão para as universidades, anos a fio, vão sentir dificuldades. O exemplo mais clássico é o radiologista, que estuda e acumula anos de experiência para olhar para raio-x e fazer diagnósticos — já existe tecnologia que consegue superar a exatidão dos diagnósticos de radiologistas com grande experiência.
E outras, como advogados?
Também. Uma grande parte do trabalho dos advogados já pode ser feita por algoritmos, análise de processos, contratos, pesquisa legal… Em resumo, não há uma correlação direta entre a quantidade de educação e formação que alguém tem de receber para conseguir fazer bem um trabalho e, por outro lado, a susceptibilidade à disrupção causada pela automação.
Tenho um filho com quase três anos. Que capacidades é que é mais importante ele adquirir, à medida que cresce, para o futuro?
Como será o mundo daqui a 20 ou 30 anos…? Sabemos que se atingirmos aquele conceito da singularidade — de ter máquinas com uma inteligência a um nível realmente humano — iremos entrar num período de crescimento exponencial da tecnologia. Isto torna impossível prever exatamente o que vai acontecer, mas eu tenho uma filha com 11 anos e decidimos colocá-la numa escola artística, que estimule a criatividade. É crucial que as escolas estimulem as capacidades interpessoais, de construir relações com as outras pessoas — isso vai ser mais importante quando as máquinas forem capazes de fazer todo o trabalho.
E do ponto de vista de quem faz as políticas públicas, qual deve ser a preparação?
Obviamente devemos dedicar todos os recursos possíveis a requalificar pessoas, mas também temos de ter em conta que provavelmente nem toda a gente vai ser capaz de se adaptar. Nem toda a gente pode ser um cientista aeroespacial. É por isso que sou um defensor de medidas como o rendimento básico incondicional (RBI). A certa altura vamos precisar de uma política radical para responder a estes desafios.
Já lá iremos, ao RBI. Antes, recuemos um pouco, há vários séculos que se fazem estas previsões de eliminação massiva de postos de trabalho — desde a peça de teatro de Karel Čapek que, em 1920, criou o termo “robô” até à previsão de Keynes de que em 2030 todos nós estaríamos a trabalhar apenas 15 horas por semana. Porque é que desta vez é diferente?
É verdade que algumas previsões sobre o alcance da tecnologia que foram feitas se revelaram… demasiado otimistas, ou demasiado agressivas, se preferirmos. Já na década de 60 houve um relatório sobre a Tripla Revolução, entregue ao Presidente Lyndon Johnson, que também fazia soar os alarmes de uma forma que se revelou demasiado agressiva. E, por isso, penso que algumas pessoas têm alguma resistência a adotar estas ideias.
É como a história do Pedro e do Lobo?
Sim, exatamente. Mas a realidade, nessa história, é que, no final, o lobo, de facto, aparece (e ninguém está preparado).
Aqui é um pouco mais complexo do que a história porque este não é um lobo que chega de repente, e causa o caos. É um “lobo” que chega um pouco mais devagar, em ritmos diferentes conforme os vários setores…
Diz-se muitas vezes que é da nossa natureza sobrestimar as coisas no curto prazo e subestimá-las no longo prazo. Estamos a ver isso, por exemplo, nos carros autónomos. As pessoas falam de carros totalmente autónomos a andarem nas estradas em poucos anos — se calhar vai demorar um pouco mais do que isso, mas sem dúvida que será incrivelmente disruptivo.
Elon Musk diz que em 2020 já vai existir um milhão de robotáxis, para competir com a Uber…
O problema é exatamente declarações como essas, porque daqui a um ano e meio, quando obviamente nada remotamente parecido com isso terá acontecido, as pessoas vão olhar para uma previsão como essa e dizer: “veem como estas previsões são só tudo tretas?”. É uma mensagem errada, que alimenta a inação. Porque os carros autónomos não são treta — podem demorar mais algum tempo do que pessoas como Elon Musk anunciam, mas serão incrivelmente disruptivas quando realmente se implantarem.
Mas, voltando à história do Pedro e do Lobo, a realidade é que o “lobo” já chegou a muitos setores…
Claro, em muitos setores industriais já tem havido um grande impacto da automação, desde logo em países como os EUA. O número de empregos industriais caiu de forma dramática…
Escrever, viajar e (ajudar a) investir no futuro
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Martin Ford ainda está envolvido com algumas empresas em Silicon Valley mas, neste momento, além de correr mundo a participar em conferências e de escrever livros, está a trabalhar, como consultor, com o banco francês Société Générale. Ajuda a compor a carteira de ações de empresas que compõem o novo ETF [um fundo de gestão passiva, que replica índices bolsistas] focado na robótica e na inteligência artificial. Este produto da Lyxor (SocGen) não inclui apenas empresas puramente envolvidas na exploração destas tecnologias mas, também, empresas noutros setores mas que podem apoiar-se nestas novas tecnologias para expandir os seus negócios de forma significativa.
O Martin cresceu no Michigan, certo?
Estudei lá. Sim, na zona do Midwest há muitas fábricas abandonadas e diz-se que é por causa da China — e é, em parte, mas, na verdade, a automação tem tido um papel maior. Se a globalização não tivesse tido o efeito que teve, mesmo que as fábricas tivessem permanecido nos EUA teríamos, na mesma, muito menos trabalhadores. E prova disso é que há muitas fábricas que estão a voltar — o chamado reshoring — e não estão a contratar tantos operários como dantes. Mas claro que [Donald] Trump não fala sobre isto… É muito mais fácil apontar o dedo à China e aos imigrantes… Não são os imigrantes mexicanos que estão a fazer estagnar os salários médios dos licenciados…
Preocupa-o que nesta economia digital haja uma tendência redobrada para o que se chama de “winner take all“. Ou seja, por muita concentração que exista, há muitas marcas de carros bem sucedidas — mas empresas de redes sociais ou motores de busca são, normalmente, o dominante (como Facebook e Google) e, depois, um pelotão pouco significativo?
Isso é uma realidade e é uma tendência que vai alastrar-se às próprias profissões, que também vão tornar-se “winner take all” [o vencedor fica com tudo]. O advogado famoso, bem sucedido, ultra-talentoso (ou ultra-sortudo) que toda a gente quer contratar para os grandes casos — esse vai ganhar cada vez mais. Mas para o advogado comum, que faz pesquisa legal, esse vai ter o ganha-pão em perigo. Isso vai acontecer em todas as áreas, não só no direito mas também na contabilidade, por exemplo.
E no ensino? Os professores?
No ensino o que pode desestabilizar o sistema que temos é a educação online. Já temos professores de Harvard que estão habituados a dar uma aula a 100 mil pessoas ao mesmo tempo… Aplica-se o mesmo raciocínio.
Há pouco tocámos no tema que, no fundo, é a conclusão do seu livro — que é a necessidade de introduzirmos um RBI, para todas as pessoas. Mas há vários modelos propostos, qual é para si o modelo mais equilibrado?
Há vários modelos mas, na sua base, o RBI é a ideia de que toda a gente recebe um valor, mensalmente, tanto a pessoa mais desfavorecida como qualquer magnata. E não há qualquer condicionalidade associada. Isto é uma medida que sairia cara, embora existam algumas variantes mais baratas como o rendimento garantido — em que se define um valor e quem recebe menos do que aquele valor, o Estado acrescenta-lhe uma quantia para chegar ao mínimo. Há várias ideias, mas a grande vantagem da ideias de um RBI é que se evita criar uma armadilha de pobreza.
Como?
Mesmo num contexto de RBI, há a garantia de que qualquer um pode ter uma vida melhor se tentar fazer alguma coisa, abrir um pequeno negócio, por exemplo. Há sempre um incentivo para fazer mais. Em contraste, o que temos hoje é que só recebemos os subsídios se não fizermos nada. E só recebemos se formos para uma fila de pessoas para provar que não estamos a fazer nada. Isto cria a armadilha de pobreza, porque se tenho um subsídio mas penso em criar algo que, numa primeira fase não me vai trazer muito rendimento, então acabo por não fazer nada porque se fizer perco o subsídio.
Qual é, então, a sua proposta, em concreto?
O que tenho escrito é que devemos pegar na ideia do RBI e modificá-la um pouco, tentando incorporar o máximo de incentivos possível. Um exemplo: alguém continua na escola, recebe um pouco mais, alguém está a fazer algo útil para a comunidade, ajudar os outros, recebe um pouco mais…
É curioso que a ideia do RBI é amada e odiada, inclusivamente amada e odiada dentro da chamada “esquerda” e, também, dentro da “direita”. Algumas pessoas na esquerda dizem que o RBI é uma forma de substituir os apoios sociais que existem, livrando as empresas das suas responsabilidades…
De facto, em teoria o RBI deveria substituir alguns dos subsídios que existem hoje, tornando todo o sistema mais eficiente. Mas seria sempre necessário haver programas adicionais para pessoas com muitos filhos, por exemplo, nunca poderia ser uma “política de tamanho único”, que serve igual para todos…
Por outro lado, mais à direita, o receio está ligado à questão dos incentivos…
A visão subjacente no RBI é que a tecnologia vai melhorar cada vez mais, os robôs tornam-se mais eficientes e conseguem fazer cada vez mais trabalho. Portanto, há menos trabalho para fazer e há menos postos de trabalho para as pessoas. É preciso haver uma solução para isto. Vamos chegar a um ponto em que muita gente, por muita boa vontade (ou incentivos) que tenha, simplesmente não vai encontrar nada que possa fazer para dar um contributo para a economia. A questão dos incentivos é uma falsa questão — e ter o RBI pode, na verdade, ser o incentivo que alguém precisa para fazer algo, seja formação, seja abrir um negócio, fazer alguma coisa produtiva.
Mas por onde é que se começaria?
Temos de perceber que falar num cenário em que alguém pode subsistir sem ter de trabalhar é algo relativamente longínquo. O RBI deve começar com valores pequenos.
Tendencialmente seria um país rico a instituir algo do género? Ou um país não tão rico?
O que temos tido são apenas pequenas experiências-piloto — que têm acontecido em países nas circunstâncias mais diversas, desde a Índia, a Finlândia, EUA, Canadá… De um modo global, todos os ensaios produziram resultados muito promissores.
O meu problema é o seguinte: uma coisa é fazer estes testes-piloto, outra coisa é imaginar como é que toda uma sociedade iria lidar com isto. Ou seja, o que quero dizer é que uma coisa é escolher algumas dezenas de pessoas na Finlândia para receber algum dinheiro para ir comprar pão à padaria. Outra coisa é toda a gente, incluindo o padeiro, receber esse dinheiro… É possível testar uma coisa destas?
Com os testes em pequena-escala é possível obter alguns dados, que permitem ter uma ideia de como é que isto poderia funcionar. Mas, em certa medida, tem razão — só saberemos realmente se é uma boa ideia quando se tentar de forma plena. E por essa razão acredito que teríamos de começar por um montante pequeno.
Rendimento universal falhou na Finlândia. Ou será que foi um sucesso?
Na Suíça chegou-se a fazer um referendo, que foi chumbado, para a introdução do RBI…
Sim, a proposta tinha um valor muito elevado — 2.500 francos suíços, penso eu, por mês. É muito, para começar.
É realista pensar que é uma medida que pode ser adotada, algures, no curto/médio prazo?
Não acredito que exista vontade política para fazer isto, para já, ainda é algo visto como uma ideia muito radical. Mas a ideia está a atrair cada vez mais atenção. Há um candidato à nomeação democrata para as próximas eleições, Andrew Yang, que não é um dos candidatos mais fortes mas está a concorrer sobretudo alicerçado nesta proposta de um RBI. Ele vai estar nos debates, vai usar o palco que tiver para falar sobre isto, vai obrigar os outros candidatos a falar sobre isto. Já é um começo….
Provavelmente, Yang leu o seu livro…
Sim, leu. Na minha opinião, ele está a ser muito ambicioso sobre o timing de implementação destas políticas. Mas está a ser ótimo porque havia gente que nunca tinha ouvido falar disto e agora está a procurar mais informação.
Outra ideia que tem surgido, proposta inclusivamente por Bill Gates, é a ideia de um “robot tax“, um imposto cobrado quando se recorre à automação em vez de postos de trabalho convencionais. Faz sentido?
Eu acho que isso seria muito complicado, não seria fácil perceber exatamente o que é que se estaria a taxar. Porque normalmente estamos a falar de software… Um esquema mais simples seria mais adequado. Basicamente o que estamos a falar é de taxar mais o capital e taxar menos o trabalho. Se a proporção do trabalho na criação de riqueza está a cair, então é preciso ir taxar o capital, porque é o capital que está a atrair mais capital (mais do que o trabalho). Isto é inevitável.
É inevitável? Mas será a solução para evitar que a tecnologia desestabilize as nossas sociedades?
Um RBI nunca seria uma panaceia, resolveria apenas parte do problema — podemos dar dinheiro às pessoas, mas isso não equivale a dar-lhes dignidade. E a forma como o mundo funciona, neste momento, é que muita gente deriva do trabalho a sua dignidade e o seu sentido de que estão a produzir algo de valor. Mas isso não tem, necessariamente, de ser um sentido que nos é dado pelo trabalho que fazemos e que nos paga as contas. Pode ser outra coisa, pode ser fazer voluntariado… As duas coisas não têm de estar ligadas…
Ficaria desatualizada a expressão que se usa, por vezes, quando se pergunta “então, estás a gostar do teu novo trabalho?” e alguém responde… “bem, paga as contas…”…
Pois. Se sinceramente pensarmos isso sobre o trabalho que estamos a fazer, então, em teoria, seria melhor optar por RBI e fazer outra coisa de que gostássemos mais, em que pudéssemos estar mais empenhados. Se calhar não sentimos entusiasmo pelo trabalho em causa porque é um trabalho repetitivo, e se é repetitivo… bem, já falámos sobre isso…
Como se garante que as pessoas seguem caminhos produtivos, nesse contexto?
É claro que algumas pessoas iriam tomar más opções, consumir drogas, mas também se consomem drogas hoje… Muitas… Temos é de conseguir estruturar a nossa sociedade de um modo em que a maioria das pessoas não vá tomar essas más opções. Temos esta imagem ligeiramente ilusória que é a ideia de que a economia é uma carroça e não pode haver menos pessoas (produtivas) a puxar a carroça do que as (preguiçosas) que andam a bordo da carroça. Alguns críticos do RBI é que as máquinas vão assegurar uma parte crescente dessa força que é preciso para puxar a carroça. Era sobre isso que falava Keynes e a sua previsão das 15 horas de trabalho por semana…
A propósito, porque é que ainda não estamos a trabalhar 15 horas por semana?
Seria possível fazer isso se se impusesse algum tipo de partilha de trabalhos. Mas não é fácil para as empresas, porque depois têm de lidar com três pessoas a fazer um trabalho… E é difícil fazer aplicar isso em carreiras baseadas no conhecimento, em que há uma pessoa ou uma rede de pessoas no centro de um dado processo produtivo. Aí a tendência, naturalmente, é para que esse tipo de funções seja desempenhada por pessoas que trabalham — e em muitos casos querem trabalhar — mais horas. Mas em trabalhos de colarinho azul, ou pagos à hora, devia ser mais vulgar as pessoas trabalharem poucas horas.
Keynes enganou-se?
Provavelmente errou ao imaginar que as pessoas atingiriam um estado de saciedade. Achou que as pessoas iriam atingir um patamar em que pensariam (e sentiriam) que “já chega”. Subestimou a predisposição das pessoas para lutar por mais e mais. E o que se passou nos EUA e em muitas cidades, também na Europa, é que as pessoas concentraram-se muito em locais muito específicos, fazendo disparar os preços das casas nesses locais e originando uma “corrida”. Ninguém pode dizer que “já chega” porque deixa-se de se ser capaz de ter uma casa minimamente bem localizada a menos que se corra mais e mais.
Foi um mau cálculo sobre os preços da habitação que ajudou a invalidar a previsão?
Keynes não antecipou esse efeito. E, já que falamos nisso, uma das grandes vantagens, potencialmente, do RBI seria fomentar a mobilidade das pessoas, aliviando a pressão sobre os grandes centros urbanos. Tenho a certeza de que existem locais em Portugal onde a habitação é muito mais barata do que em Lisboa.
Não tenha dúvidas.
Certo. Então alguém pode, presumivelmente, aproveitar um RBI e mudar-se para outro local, e aí abrir um negócio, por exemplo, ajudando a combater a desertificação e contribuindo para que muitas pessoas possam ter uma vida melhor, deixando de estar presas à cidade. E quem quisesse ficar nos centros urbanos teria menos concorrência pelo espaço, aí, aliviando a pressão sobre os preços na habitação.
A habitação é um setor que ainda não foi tão… alvo de disrupção pela tecnologia…
Há sempre o território a funcionar como fator limitativo. Isto é, um dia poderemos ter impressoras 3D a construir bairros inteiros em poucos dias, mas a disponibilidade de terrenos continuará a ser o principal constrangimento. Daí que seja importante contribuir para espalhar mais as pessoas pelo território — e o RBI será uma peça-chave para que esse desenvolvimento seja facilitado.