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“Abraçar o Bibi de forma apertada”. Esta sempre foi a estratégia do Presidente Joe Biden relativamente ao primeiro-ministro israelita. Pelo menos foi assim que um membro da Casa Branca a definiu a um dos biógrafos do Presidente americano, Franklin Foer, dando como exemplo o que aconteceu em maio de 2021. À altura, o Hamas disparou rockets contra cidades israelitas e Benjamin Netanyahu decidiu retaliar com ataques aéreos sobre a Faixa de Gaza.
Durante esse período, Biden não confrontou Bibi, nem o pressionou. Fez uma série de telefonemas numa “espécie de diálogo socrático” em que colocava apenas perguntas ao chefe de governo israelita: “Como é que isto vai acabar?”; “Como é que vais saber em que altura restauraste uma política de dissuasão?” Foi assim durante algum tempo, com o Presidente dos Estados Unidos a segurar a mão do líder israelita e a limitar-se a fazê-lo pensar. Até que, ao fim de 11 dias, Joe Biden disse que era altura de parar: “Meu, estamos a ficar sem pista [para avançar].”
O biógrafo Foer, jornalista da The Atlantic e autor de The Last Politician: Inside Joe Biden’s White House and the Struggle for America’s Future (sem edição em português), acredita que algo de semelhante estará a acontecer agora. Depois de meses de bombardeamentos ininterruptos sobre a Faixa de Gaza, em retaliação pelos ataques do Hamas de 7 de outubro, e de uma invasão terrestre por parte das Forças de Defesa de Israel (IDF), Biden estará a dizer a Netanyahu que os seus países estão “a ficar sem pista”.
Em público, o Presidente norte-americano tem-se mostrado confiante de que as negociações para alcançar um cessar-fogo que estão a decorrer podem ser bem sucedidas. Em privado, tem pressionado repetidamente Telavive para começar a pensar numa solução para o fim do conflito e que resolva o futuro. O grande problema é que aquilo que os Estados Unidos defendem para “o dia seguinte” em Gaza, envolvendo diretamente a Autoridade Palestiniana de Mahmoud Abbas, é em muito diferente daquilo que Bibi tem defendido em público.
“O Dia Depois do Hamas” de Israel, com “administração civil” e “uma zona-tampão”
Israel continua a afirmar publicamente que só tenciona sair da Faixa de Gaza quando tiver atingido “a vitória total”. “Esmagar o vidro em pequenos pedaços e continuar a esmagar em pedaços cada vez mais pequenos”, ilustrou Netanyahu no início deste mês. O objetivo, repete Telavive, é “destruir o Hamas” — muito embora, na prática, não haja certezas sobre quantos militantes do grupo fazem parte dos cerca de 30 mil mortos já registados no enclave (segundo dados do Ministério da Saúde do Hamas), nem sobre quão dizimadas estarão as capacidades militares do grupo.
E, mesmo que o Hamas seja totalmente destruído, quem governará Gaza depois? É esta pergunta que Biden tem colocado repetidamente a Netanyahu em privado e que, pela primeira vez, o primeiro-ministro israelita tentou responder, ao divulgar recentemente um documento intitulado “O Dia Depois do Hamas” que elenca uma série de objetivos a curto, médio e longo-prazo para a região.
[Já saiu o primeiro episódio de “Operação Papagaio”, o novo podcast plus do Observador com o plano mais louco para derrubar Salazar e que esteve escondido nos arquivos da PIDE 64 anos. Pode ouvir também o trailer aqui.]
No texto, lê-se que os israelitas pretendem manter controlo militar sobre o território durante algum tempo — apesar de não ser explicitado quanto: “Israel irá manter liberdade de ação operacional em toda a Faixa de Gaza, sem um prazo-limite, com o propósito de prevenir a renovação do terrorismo e neutralizar ameaças vindas de Gaza”. Também se prevê a criação de uma “zona-tampão de segurança” numa parte da fronteira com o território israelita, “durante o tempo que for necessário em termos de segurança”. Por fim, o plano prevê que Israel mantenha o controlo da fronteira de Gaza com o Egipto, para monitorizar todas as entradas e saídas de material e ajuda humanitária.
Quanto à gestão do território, para Israel essa deverá vir a ser assegurada por uma “administração civil”, baseada “o mais possível em responsáveis locais”. Quem fará parte dessa administração civil local? Essa é a pergunta de um milhão de dólares a que Netanyahu ainda não respondeu. Para os Estados Unidos — cuja solução que defendem choca com alguns dos princípios deste plano, como a criação da “zona-tampão”, indesejada por Washington —, a resposta é apenas uma: a Autoridade Palestiniana (AP), governo palestiniano do partido Fatah, criada com os Acordos de Oslo, que administra atualmente a Cisjordânia e que deve agora ser “revitalizada”. Só dessa forma, acredita a administração Biden, poderá haver alguma esperança de uma aplicação futura da solução de dois Estados.
Para Israel, não é assim tão claro que esse seja um cenário desejado. O governo de Benjamin Netanyahu é apoiado por alguns partidos ortodoxos e de extrema-direita que defendem a criação de colonatos em Gaza, o que constituiria um retrocesso face aos Acordos de Oslo; Bibi não defende abertamente essa solução, mas também não apresenta uma alternativa à AP para governar Gaza. E o impasse mantém-se, enquanto as negociações para um cessar-fogo se arrastam, a distribuição de ajuda humanitária em Gaza diminui e os bombardeamentos continuam — o último, desta quinta-feira, atingiu mesmo palestinianos que esperavam por comida.
Sem o herói Barghouti, Autoridade Palestiniana cria governo tecnocrata — e hesita em como lidar com o Hamas
Washington, porém, continua a pressionar. Esta segunda-feira, o primeiro-ministro da AP, Mohammad Shtayyeh, apresentou a sua demissão, de olho na próxima fase: “A Autoridade necessita de novos acordos políticos e governamentais que tenham em conta a realidade emergente na Faixa de Gaza”, justificou. A pressão dos norte-americanos — que, como nota o Washington Post, têm visitado intensamente a residência oficial do Presidente Mahmoud Abbas nas últimas semanas — começa a dar os seus frutos do lado palestiniano.
O objetivo tem sido murmurado por fontes da Casa Branca aos jornais: é o de criar “um novo governo [palestiniano] e trazer sangue novo para servir com e sob Abbas”. Internacionalmente, os aliados apoiam: Josep Borrell, em nome da União Europeia, diz estar disponível para apoiar qualquer solução que permita caminhar para os dois Estados; o ministro dos Negócios Estrangeiros, David Cameron, diz também que é necessário criar “um horizonte político” para os palestinianos.
Do ponto de vista palestiniano, nem tudo é assim tão simples, porém. Abbas governa por decreto há anos (o Parlamento palestiniano foi dissolvido em 2018) e é altamente impopular no seu papel como líder político a partir da Cisjordânia — 87% dos palestinianos consideram haver corrupção nas instituições da AP, por exemplo, de acordo com uma sondagem de setembro de 2023. De acordo com o que responsáveis árabes transmitiram ao Wall Street Journal, Abbas estará a considerar a criação de um novo governo de caráter mais tecnocrata, escolhendo para primeiro-ministro Mohammad Mustafa, antigo quadro do Banco Mundial.
Nem Abbas nem Mustafa, contudo, são figuras populares entre os palestinianos e não seriam provavelmente bem aceites pela população em Gaza — onde, na sequência da ofensiva israelita, o Hamas tem reforçado a popularidade. A situação poderia ser diferente com a opção por outros nomes, como o eternamente mencionado Marwan Barghouti, figura destacada da Segunda Intifada. “Nenhum outro foi capaz de se apresentar como alternativa a Abbas a não ser Barghouti”, resumiu Khalil Shikaki, diretor do Centro de Pesquisa Palestiniano em Ramallah, ao Washington Post. “Ele é o único capaz de liderar os palestinianos até a um Estado a par do Estado de Israel”, reconhece até o antigo líder das secretas israelitas, Ami Ayalon, no mesmo artigo.
As sondagens mostram que Barghouti é sempre o candidato mais popular para a presidência da AP — 55% de apoio de acordo com o estudos mais recentes, que incluem dados da Cisjordânia e de Gaza. Só que Barghouti está atualmente preso, a cumprir pena em Israel há 20 anos e, portanto, qualquer solução que o inclua teria de ter não apenas o aval do próprio Abbas, como também do governo israelita, que teria de o libertar.
Para além da provável impopularidade do sucessor, há ainda que ter em conta o apoio popular ao Hamas que ainda existe dentro de Gaza. E, por essa mesma razão, ainda esta quinta-feira o governo da AP esteve reunido em Moscovo com representantes do grupo e da Jihad Palestiniana para perceber se haveria disponibilidade da parte deles para virem a ser integrados na Organização pela Libertação da Palestina (atualmente controlada pela Fatah).
“A demissão do governo de Shtayyeh só faz sentido se for no contexto de um consenso nacional sobre as soluções para a próxima fase”, alertou o responsável do Hamas Sami Abu Zuhri. O ex-responsável da diplomacia do Egipto, Amr Moussa, também deu sinais nesse sentido: “O Hamas certamente terá um papel no que surgir depois de as armas se terem calado”, disse à agência Bloomberg.
Posições que, como nota o analista Michael J. Koplow, se explicam por uma de duas razões: a primeira é que “os responsáveis da AP leem as mesmas sondagens que todos nós que mostram a popularidade que o Hamas tem na Cisjordânia face à Fatah e querem capitalizar alinhando-se com o sentimento popular”; a segunda hipótese é a de que “acreditam que os terroristas do Hamas estão em fuga de Gaza e já foram afastados da Cisjordânia e esta é uma oportunidade de outro para os subjugar aos termos da AP”.
O nó górdio assenta em como poderia uma solução destas vir a ser aceite por Israel, cuja guerra que conduz atualmente tem como principal propósito a destruição do Hamas. A solução que os Estados Unidos têm proposto é a de que Israel possa “vetar” cada membro da administração civil que venha a governar Gaza, para garantir que não têm laços diretos ao Hamas e que estes se manteriam apenas na estrutura mais lata da AP. Que tal venha a ter a concordância de Netanyahu é altamente improvável.
Talvez por isso, o ministro dos Negócios Estrangeiros da AP veio esta quarta-feira dizer que o melhor será, para já, que o Hamas fique de fora de qualquer solução para Gaza: “O momento agora não é o de ter um governo que inclua o Hamas, porque isso será boicotado por vários países”, notou Riyad al-Maliki. “Não queremos ficar numa situação dessas. Queremos ser aceites e colaborar totalmente com a comunidade internacional.”
Países árabes alinham-se com norte-americanos. Arábia Saudita pondera relações diplomáticas com Israel em troca de reconhecimento de Estado palestiniano
É importante notar que a pressão sobre a AP não vem apenas de Washington. Vários países árabes têm estado envolvidos em todo o processo, alinhando-se frequentemente com a diplomacia norte-americana, como comprovam as repetidas visitas do secretário de Estado Antony Blinken a países como a Jordânia, o Egipto, os Emirados Árabes Unidos e a Arábia Saudita.
Israel também tem mantido conversas discretas com estes países. Várias declarações de responsáveis políticos de Telavive têm até levantado a possibilidade de a gestão futura da Faixa de Gaza ser assegurada por forças de paz de países árabes. Os especialistas, contudo, consideram altamente improvável que as capitais árabes aceitassem tal cenário: “Não vejo ninguém burro o suficiente para se posicionar como braço de segurança dos israelitas em Gaza”, notou à NBC o antigo negociador israelita Daniel Levy.
O responsável pela diplomacia jordana avisou mesmo em novembro que o seu país e outros não tem qualquer apetite por essa solução: “Deixem-me ser claro: sei que estou a falar em nome da Jordânia, mas já discuti isto com quase todos os nossos irmãos árabes”, disse Ayman Safadi. “Não haverá tropas árabes em Gaza.”
Em vez disso, o mundo árabe estará a avançar com outra proposta, em parceria com os Estados Unidos, como noticiou o New York Times no final de janeiro: acenar a Israel com a possibilidade de formalizar laços diplomáticos oficiais com a Arábia Saudita (um processo que foi interrompido com o início do conflito em Gaza), em troca de garantias para um avanço na criação de um Estado palestiniano.
Até aqui, os Estados Unidos sempre se assumiram como o aliado inquebrável de Israel, votando repetidamente ao lado do país contra os votos de condenação internacionais nas Nações Unidas, por exemplo. Agora, Washington até prepara o rascunho de uma resolução na ONU, nos bastidores, a avisar Israel para que não avance militarmente para o sul da Faixa de Gaza, em Rafah.
“Há um contexto mais lato de condenação pela opinião pública internacional que é sem precedentes e que se está a espalhar aos Estados Unidos”, notou o antigo embaixador americano em Israel Martin S. Indyk, ao Times. “As alas progressistas, jovens e de ascendência árabe do Partido Democrata estão zangadas e começam a criticar duramente Biden pelo seu apoio a Israel.”
Netanyahu impopular tenta ganhar tempo, mas Biden está a perder a paciência
A postura da AP, EUA e países árabes choca, contudo, com as afirmações públicas de Benjamin Netanyahu. Ainda em dezembro, o primeiro-ministro publicou um vídeo nas redes sociais onde abordou a questão “do dia seguinte” em Gaza e disse que não iria “permitir que Israel repita os erros de Oslo”. “Gaza não será um Hamastão nem um Fatahstão”, prometeu, colocando o partido que governa a AP em pé de igualdade com o Hamas.
Um discurso que se explica, em parte, pelo facto de Netanyahu continuar a ser um líder impopular em Israel, com 19% de taxa de aprovação — um valor que, como relembra o Haaretz, “é inferior ao número de americanos que acham que Elvis Presley ainda está vivo”. Para manter o seu governo de pé, Bibi precisa de manter o apoio de todos os partidos que sustêm a sua coligação, incluindo os mais radicais — que se opõem totalmente a qualquer perspetiva de uma solução de dois Estados.
O documento para “O Dia Seguinte” divulgado pelo governo, nota o biógrafo de Netanyahu Anshel Pfeiffer na Spectator, “não menciona a Autoridade Palestiniana porque isso alienaria os membros de extrema-direita da coligação, que esperam eliminar qualquer perspetiva de soberania palestiniana”. Também não se compromete com o controlo total de Israel, nota o jornalista, “por receio de espantar os moderados”. “Acima de tudo, não é [um documento] feito para acabar com a guerra em Gaza. É para garantir a sobrevivência política de Netanyahu”, afirma.
A natureza vaga do documento é, por isso, uma tentativa de ganhar tempo, creem os analistas. “Deixa muitas opções em aberto e adia uma série de decisões”, notou Nadav Strauchler, antigo estratega de Netanyahu, ao New York Times. Os Estados Unidos, contudo, parecem estar a chegar à conclusão de que é altura de dizer a Bibi que a pista está a acabar. “Biden e Bibi estão em calendários políticos diferentes no que diz respeito à guerra de Gaza”, avisou Frank Lowenstein, antigo enviado para o Médio Oriente da presidência de Barack Obama.
Os “diálogos socráticos” ao telefone e a estratégia de “abraçar” Bibi parecem ter ficado no passado. Nos últimos tempos, os dois líderes têm falado cada vez menos e, num telefonema recente em dezembro, Biden terminou a chamada abruptamente, irritado, dizendo “esta conversa acabou”.
Num encontro recente com apoiantes políticos e financiadores, Joe Biden pareceu nem sequer estar investido em defender o primeiro-ministro israelita em público. “Senhor Presidente, não compreende que Netanyahu vai virar o jogo e culpá-lo de tudo? Ele quer uma confrontação, por necessidade política”, disseram-lhe, de acordo com o Haaretz. Biden sorriu e depois respondeu simplesmente: “Eu sei.”