São muitos os artistas para quem os anos a pisar palcos não resolvem um problema fundamental: a angústia que antecede os espectáculos. Há quem assuma as pilhas de nervos (de Camané a Adele, de Carlão a tantos mais), há quem só as comente informalmente. O que também existe é o exato contrário: músicos para quem faltar poucos minutos para enfrentar o público é coisa encarada com leveza, sem impacto na descontração reinante. É o caso de Mallu Magalhães.
São 21h15, faltam quinze minutos para a hora a que estava agendado um concerto na Casa da Cultura de Ílhavo (distrito de Aveiro), no dia 19 de novembro, e Mallu Magalhães será talvez a pessoa mais descontraída no seu camarim.
Perto da cantora e compositora brasileira estão duas pessoas que a acompanharam durante toda a tarde, à exceção da hora de jantar: Diego Fernandes, assistente, e Wellington Oliveira, responsável pela maquilhagem e cabelos. Ambos denunciam o português do Brasil no sotaque, tal como Mallu, mas um e outro vivem em Portugal até há mais tempo do que a cantora, que este ano lançou o álbum Esperança — cinco anos depois de Vem (2017) — e que já mora em Lisboa desde 2013.
Sem stressar, descontraída e enquanto Wellington Oliveira a prepara para o concerto, Mallu Magalhães pergunta: “É às nove e meia certinhas?”. Avisam-na então que não, que vai atrasar pelo menos dez minutos. “Eita”.
Volta a descontração, com portugueses e brasileiros — poucos, só a equipa indispensável à logística — a comentarem telenovelas da TV Globo e velhos programas de televisão. Lembra-se O Clone, novela do início dos anos 2000 que acabaria curiosamente substituída por uma outra chamada Esperança, e a armada brasileira (Mallu incluída) ensaia a letra do genérico. Entram na conversa as Chiquititas e Mallu confessa: “Meu sonho era tornar-me uma das chiquititas”. Lembra-se uma viagem com uma velha carrinha na Costa da Caparica e há um ataque de riso generalizado. De stress é que nem sinal.
Tinham sido assim também os minutos anteriores. Praticamente toda a comitiva tinha ido jantar a um hotel próximo, ficando Mallu Magalhães no seu camarim, na sala em que já tocara em 2015 com o grupo Banda do Mar — de que também fazia parte o músico, seu marido e antigo integrante dos Los Hermanos, Marcelo Camelo.
Diego Fernandes e Wellington Oliveira tinham sido os primeiros a regressar do hotel à Casa da Cultura de Ílhavo, antes mesmo da banda, porque era preciso preparar o visual da cantora — entretanto já jantada. “Sempre peço uma comidinha no camarim”, contava. Ali via-se por exemplo uma salada e um ingrediente fundamental: queijo brie.
“O queijo brie é o clássico. Tem uma simbologia especial para mim”, brincava Mallu Magalhães, prosseguindo: “Parece que se você tem um queijo brie está bem na vida. Acho que é um pedido OK. No Brasil hoje em dia já tem mais, antes tinha menos e não pedia porque não acho legal pedir uma coisa difícil de achar. Imagina alguém dizer: ai, desculpa, não achei esse monte de acácias douradas que você pediu [risos]. Não faço isso. Bom, todo o mundo já teve uma fase de pedidos estranhos no camarim, não é? Depois passa [risos]”.
A descontração era o tom reinante. Não se falava de detalhes técnicos nem de música, embora se ouvissem algumas canções de Mallu Magalhães via telemóvel. Antes das novelas, falava-se por exemplo de contas de humor no Instagram: Mallu lembrava “Miga, Sua Louca” ou “Nazaré Amarga”. Recordava-se o último concerto da Banda do Mar, há seis anos, já com a cantora numa fase adiantada da gravidez — e a dificuldade que já é, com a filha mais crescida (faz seis anos este mês), convencer Luísa a ir aos concertos: “Se for um festival ela ainda anima, dá para ver outras coisas, tem cores, comida… num teatro já é mais difícil, prefere ficar em casa”.
Um ensaio-concerto e uma artista a quem não escapa nada
A atuação em Ílhavo era, de certa forma, o regresso de Mallu Magalhães ao ritmo das digressões e dos concertos regulares. Por um lado era já o terceiro espectáculo de apresentação do novo disco Esperança, editado à porta do verão (a 15 de junho). Por outro lado, há dois meses que a cantora e compositora brasileira não se deslocava para tão longe para um concerto.
A 11 de setembro, Mallu Magalhães atuara no Festival Manta, em Guimarães, mas desde aí só tinha tido um concerto e bem mais perto de casa, a 8 de outubro no Fórum Municipal Luísa Todi, em Setúbal. Agora tinha esta atuação em Ílhavo a 19 de novembro, atuava em Castelo Branco logo no dia seguinte e duas semanas depois — esta sexta-feira, 3 de dezembro — estará em Lisboa, no Campo Pequeno.
A saída rumo a Ílhavo, a partir de Lisboa, fizera-se às 14h20 e a viagem fora feita com o tempo contado, sem paragens. Na carrinha seguiam, além de um motorista, de Mallu Magalhães, de Diego Fernandes e de Wellington Oliveira, dois elementos da agência que representa a cantora em Portugal, a Arruada — que trabalha com outros artistas como Márcia, Branko, Dino D’Santiago, Pedro Mafama e Rita Vian.
De Lisboa saíra também, perto de 20 minutos antes, uma outra carrinha, que transportou até Ílhavo os músicos que se juntam a Mallu Magalhães nos concertos e que formam a sua banda fixa em palco: na bateria e nos samples Fred Ferreira (que além do seu projeto musical a solo, integra também os Orelha Negra e a Banda do Mar), no teclado e sintetizadores João Gomes (Orelha Negra, Fogo Fogo, entre outros), na guitarra e viola Zé Vito (Carapaus Orkestra) e no baixo Vasco Moura (Stone Breaker).
O desfasamento entre horários não se explica apenas pela insuficiência de lugares por carrinha. Percebe-se logo à chegada: a ideia era que quando Mallu Magalhães chegasse à Casa da Cultura de Ílhavo, e cumprimentasse a banda com abraços e diminutivos (“Fredinho”, “Vasquinho” e por aí adiante), o grupo estivesse já em palco com os instrumentos preparados, pronto a arrancar o ensaio de som, com as equipas técnicas — quer a de Mallu, quer a do teatro — também a postos.
Escrevemos “ensaio de som”, mas na verdade poderíamos escrever concerto privado. Há artistas que despacham o chamado soundcheck muito mais rapidamente. Aqui é diferente: o concerto é corrido e ensaiado do início ao fim e ninguém mostra surpresa quando Mallu pergunta “vamos fazer desde o início?”. A resposta sai rápida: “‘Bora”.
Não fosse a ausência de público, as palavras trocadas entre as canções e a indumentária da cantora — ainda de sweatshirt e cabelo apanhado — e o ensaio não se distinguiria muito de um concerto. Até porque é testado tudo, do som ao ritmo da banda, da iluminação ao cenário, passando até pela entrada em cena.
Pelo chão do palco estão espalhadas luzes e atrás da banda, em grande plano, está uma imagem da capa do novo disco que vai mudando de cor. Qual maestrina disto tudo, Mallu Magalhães vai fazendo pedindos, dando sugestões, orientando as coisas.
Quando não canta um excerto de “Fases da Lua”, com a qual arrancará o concerto, diz “não cantei” e ri-se mas elogia a banda, “está certinho isso mesmo”. Olha para trás e congratula-se pela capa do disco iluminada em grande plano: “Deu super certo, que bom”. A dado momento pede “mais fumaça no começo” e que no arranque se diminua o foco de luz. Depois apela a que se apague a iluminação strobe: “Fico com dor de cabeça, se a gente sentir falta põe, estou com um pouco de medo do strobe“.
Da plateia vazia em que assistimos ao soundcheck, as canções soam irrepreensíveis. Parece já um espectáculo a decorrer e Mallu Magalhães está feliz, entre canções diz aos músicos: “‘tá ótimo”, “me sinto ótima”, “beleza”, “maravilha”, “aqui para mim está soando lindamente”. Ensaia-se até o momento em que a protagonista da noite apresenta os comparsas de palco.
Na nova “Quero Quero” — o alinhamento está recheado de canções recentes, como não poderia deixar de ser — o ritmo foge ligeiramente ao previsto e atrás da bateria Fred (que é também padrinho da filha de Mallu e que faz parte da “família”) explica que teve de corrigir uma coisa durante a canção. A cantora comenta: “Nossa, que ninja”.
Testa-se “América Latina” e Mallu faz um comentário: “Você incluiu essa guitarrinha, ficou ótimo. A gente está arrasando”. Estamos perto da ponta final do ensaio e Mallu diz à banda e à equipa técnica que a acompanha, com algum humor: “Aí a gente sai. Tinha pensado deixar tudo aceso, assim as pessoas pedem bis porque sabem que não acabou”.
Era hora de ensaiar a única canção em que a protagonista toca teclado, algo que até aqui não fazia ao vivo. Seria assim, só com voz e piano, que Mallu cantaria um tema novo em castelhano durante o concerto: “Regreso”. A cantora pede o teclado emprestado a João Gomes, “você me empresta João?” — e requer ao técnico de som: “Nessa hora pode aumentar bastante o piano para mim, por favor?”
O que mais impressiona em tudo isto é mesmo a forma como Mallu Magalhães intervém em tudo o que diz respeito ao soundcheck: do som à iluminação, passando pela disposição cénica, é ela quem tem a palavra. O que também se explica por isto: quer o novo disco Esperança quer os concertos de apresentação tiveram a cantora e compositora a assumir as tarefas de direção artística, direção visual e direção musical.
Desta feita, Mallu tomou o comando das operações. Uma mudança que se explica também por uma nova fase profissional na carreira da artista, que deixou a anterior editora, a Sony Music Brasil. Fê-lo, diz, para “ser atuante da maneira mais ampla possível”, para “ter as rédeas do meu trabalho”, de modo a “ter maior controlo desse trabalho nas redes sociais e nos novos serviços de streaming” e com o intuito de “tentar falar diretamente para o meu público”.
Embora vinque que a parceria com a anterior editora foi boa e a fez crescer até aqui, a cantora sentiu que precisava agora de “ter tudo nas mãos para que pudesse ter uma visão mais clara, verídica, apurada e detalhada” da sua “situação como artista”. Desde a mudança, aponta, começou “a entender melhor o caminho da remuneração” artística e a perceber “a quantidade de público que tenho, onde está e onde não está quem me ouve”.
Por um lado, Mallu conseguiu um maior acesso a dados e uma perceção mais clara sobre quem a ouve. Por outro, já não tem as burocracias de uma grande empresa como obstáculo. As decisões sobre o que comunica e como comunica estão mais centradas em si e acabam agora por passar por menos pessoas — o que acelera o tempo que vai de uma decisão à execução. É, enfim, Mallu no comando.
Um concerto novo, que diz muito sobre o novo disco
A experiência de ver um concerto de Mallu Magalhães há-de ser muito diferente para quem não viu antes um concerto inteiro ensaiado. Foi essa perspetiva, diferente da nossa, que tiveram as perto de 500 pessoas que esgotaram os bilhetes da atuação na Casa da Cultura de Ílhavo. E se há sinal encorajador e desejado era este: no final, não se via ninguém sentado a aplaudir a banda e a cantora na ovação de despedida.
Herdeira de uma tradição clássica da MPB, Mallu Magalhães vai viajando no repertório entre canções antigas e novas, acústicas e elétricas, melancólicas-calmas e enérgicas-animadas. A constância é uma certa doçura, trazida por uma voz suave e delicada a que os arranjos — ora mais expansivos, festivos e dançáveis ora mais íntimos e folk — se ajustam.
Flui tudo de forma natural, mas é claro que há momentos altos. Percebe-se por exemplo que a nova bossa “Barcelona” faz gingar, que “Deixa Menina” (tema igualmente novo, em disco um dueto com Preta Gil, inspirado numa frase que a filha Luísa usa para reclamar independência) acelera a dança doce, que a batida de “América Latina” foi aposta certa e que este é um single na mouche, que “As Coisas” (com Mallu de guitarra elétrica nos braços) se agiganta no refrão e que “Cena de Cinema”, “I’m Ok”, “Quero Quero” e “Enjoy The Ride” são boas introduções recentes ao repertório de Mallu Magalhães.
É certo que há canções mais antigas que conseguem uma relação emocional imediata. Também pela longevidade, “Me Sinto Ótima” e “Mais Ninguém” (Banda do Mar) mas sobretudo a velhinha “Velha e Louca” (editada há dez anos e que imaginamos quase como uma espécie de prequela da também feminista e mais recente “Louca”, de Gisela João) têm um efeito mola, estão há mais tempo no ouvido. Mas é ilustrativa de Esperança, o novo disco, a impressão de que Mallu Magalhães poderia fazer um concerto inteiro só com temas novos que não se saía nada mal.
O feminismo de "Velha e Louca", uma canção com "energia de libertação"
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Pareceu a canção em que Mallu Magalhães mais se soltou, o tema antigo que melhor ilustra a sua atual fase de independência e controlo de carreira. Ao Observador, apontou: “Me sinto poderosa quando a canto. Me sinto feliz, me sinto permitida. Sinto que é uma canção que abre as portas. Acho que é uma canção que ativa um mecanismo de libertação e uma energia de libertação”. Mallu visa também a atribuição às mulheres de uma emotividade descontrolada: “A ideia de que você tem ‘um chilique’, que é temperamental… todos temos limites, todos temos picos emocionais. É preciso desprendermo-nos desse estereótipo. O ser humano é vivo, sensível e sentimental”.
Percalços de relevo no concerto, só um: aquele que dominaria as conversas à saída do palco. Quase na ponta final do concerto, há uma pausa — um problema com o som que chegava via phones baralhou as contas e foi preciso improvisar ligeiramente. Nada que retirasse o bom humor à comitiva: enquanto descia as escadas do palco, já após as despedidas, Mallu Magalhães ria-se com as suas sugestões para resolver o problema numa atuação futuro. Por exemplo, “passar as novidades da Netflix: esta semana temos…” ou “distribuir dominó ou sudoku pela plateia”.
A banda fica, Mallu vai. E uma (longa) conversa na carrinha
Quando o concerto na Casa da Cultura acabou, Mallu Magalhães e a banda voltaram a separar-se. No dia seguinte, o concerto era em Castelo Branco — e embora a viagem de Lisboa a Castelo Branco não demore muito mais do que de Ílhavo até àquele destino, ficar por ali ou nas redondezas evitava ter de fazer mais duas horas de viagem ao final da noite e início de madrugada.
Foi esse o raciocínio da maior parte dos membros da banda (à exceção de Fred Ferreira, que foi dormir ao Porto por ter lá a família naquela noite) e de alguns outros elementos da pequena equipa técnica e logística que acompanha Mallu Magalhães na estrada. A cantora, porém, preferiu fazer a viagem de regresso à capital para dormir em casa.
Já na carrinha, durante a viagem de regresso, Mallu Magalhães explicava ao Observador que o motivo do regresso a Lisboa passava também por “poder estar com a Luísa, porque amanhã não sei se ela vem“. Voltando, acrescentava Mallu, podia passar “a manhã com ela” antes de partir para Castelo Branco a seguir ao almoço. “Compensa. E imagina, se amanhã ela anima de vir… se calhar preciso arrumar crianças [ri-se], porque quando tem crianças ela já quer vir”.
A viagem noite fora permitia, também, uma conversa mais longa com Mallu Magalhães, que contava que desde que se mudou para Portugal em 2013 tem descoberto cidades e regiões do país que desconhecia. A primeira que lhe vinha à memória naquele momento era a “ilha da Madeira, muito impressionante”, a que quando foi “não esperava que fosse tão bonita e tão tropical”.
Assumindo que tem “saudades do Brasil o tempo inteiro”, ainda que vinque que gosta “muito de morar aqui”, Mallu notava que sem pandemia viaja para o Brasil “de três em três meses”, pelo que não deixa “a saudade crescer tanto”.
Em Portugal, porém, diz ter “um dia-a-dia muito pacífico” num “país calmo e seguro” onde pode “andar na rua e viajar tranquilamente”. Até as distâncias das viagens são “menores do que estava acostumada, pelo que consigo fazer o que fiz hoje: ir no próprio dia ao concerto e voltar de madrugada a casa, sem precisar de apanhar um avião e ficar dois ou três dias fora”. Nesta fase, Mallu diz até já saber quais são “as bombas de gasolina que têm os melhores restaurantes e os melhores banheiros [casas de banho]”.
A vida de Mallu Magalhães em Portugal
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Os amigos com quem tem mais contacto no dia-a-dia, em Lisboa, são “as pessoas com quem trabalho, acho que é natural, a gente está todo o dia junto”, diz Mallu Magalhães entre risos. Mas “depois tem os amigos dos amigos”, o “pessoal que trabalha no meu bairro com quem acabo fazendo amizade” e, é claro, “as mães das amigas da Luísa”, a filha de seis anos. Em casa, Mallu Magalhães e Marcelo Camelo têm um trunfo imbatível que atrai as amigas da filha: uma máquina de algodão doce.
A experiência de viajar e sair da cidade em que mora para dar um concerto mudou muito, reconhecia também Mallu, desde a maternidade: “Por um lado custa mais você sair de casa e deixar uma criança, mas ao mesmo tempo fico muito feliz de poder dedicar-me à carreira. Sinto que isso é produtivo também para ela, porque uma mãe feliz é uma boa mãe. Até pelo exemplo: estou a ir trabalhar, a realizar um sonho”.
Com a filha de seis anos, Mallu Magalhães já conversa sobre o que significa esta vida itinerante de cidade em cidade: “Eu falo para a Luísa que o nosso trabalho tem de ter uma motivação maior, tem de se fazer por gosto. A parte financeira é também uma questão de se administrar bem as coisas, de jogar com o que se tem. É claro, tive de diminuir muito as datas de concertos, não faço tantas. Também tento concentrar as atuações nas férias [de escola] para ela poder acompanhar, mas conforme cresce já tem a vida dela e às vezes não quer vir. Portanto, vou ponderando consoante a fase”.
Vendo um concerto da cantora — que diz sentir alguma falta “do jeito da gente” no Brasil, de “um calor, uma doçura, um modo de ser assim mais próximo, do nosso jeito de falar, daquela coisa do ‘oi quirido‘ —, há uma impressão notória com que se fica e que extravasa a música. Mallu Magalhães parece estar feliz, serenamente feliz. A timidez não desaparece: “Quando estou a cantar, beleza. Aí sou totalmente segura. Mas o resto para mim é mais difícil, acho mais difícil falar”. Só que essa timidez coexiste com uma serenidade e uma leveza de quem vive uma boa fase.
A relação entre a timidez e cantar em português
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Embora continue a cantar noutros idiomas, as canções em português têm-se tornado cada vez mais predominantes no repertório de Mallu Magalhães. Ao Observador, a cantora explica: “Lembro-me que quando comecei a compor em português senti-me muito exposta. A sensação de falar e saber que a pessoa está entendendo, para mim era muito… aliás, continua sendo. O que falo na minha língua nativa tem outro peso. Quando falo em inglês é como se aquele personagem não fosse eu, fosse outra pessoa, uma ficção. É como se existisse outra pessoa que fala inglês e que está contando aquela história”.
Quando conversávamos com Mallu Magalhães, notávamos como parece hoje estar a divertir-se muito mais nos concertos — e como hoje a sua serenidade musical soa alegre, como parece ter-se especializado gradualmente em fazer canções felizes. Não é coisa pouca, atendendo a que parece haver uma certa atração dos melómanos da música e dos próprios singer-songwriters pelas canções tristes, pelo desamor e pelos artistas “malditos” e sofredores, a quem se atribuiu a aura de génios.
Contando que quando começou a ouvir música procurava canções “quase como um refúgio, uma cura para os sentimentos e momentos difíceis — era aquele amigo que nunca abandona”, e reconhecendo que “a tristeza, a angústia e os sentimentos que nos fazem sofrer são muito intensos e talvez despertem uma criatividade mais intensa”, Mallu Magalhães acrescentava: “O que sinto é que a felicidade é uma conquista. É claro que ninguém é uma fonte de felicidade inesgotável, todos temos dias ruins, mas sinto que existe um tipo de felicidade que é complexa e consciente da tristeza. Não se trata de alienação. É uma felicidade que é tão consciente da fragilidade da vida, do descontrolo da vida, das dores e das tristezas, que por isso mesmo existe e destaca-se. Diria que dadas as circunstâncias, a felicidade é o que há“.
Neste momento mãe há seis anos, casada, com um novo disco, com concertos regulares e feliz com o dia-a-dia em Portugal, Mallu Magalhães é também um exemplo raro de artista precoce: com 29 anos, lançou um novo álbum, mas o primeiro disco editou-o aos 16 e foi ainda adolescente que começou a carreira.
Quando é desafiada a rever o que a profissão artística não lhe permitiu fazer, aponta: “Vejo coisas que não tive. Não consegui por exemplo cultivar e desfrutar de relações que tinha com amigos e família por muitos anos. Qualquer profissão cobra um preço. Esta cobra um preço de não conseguir permanecer. É muito desafiador ter uma profissão itinerante. E além dessa questão, que gera ausências — tanto para as pessoas que você ama quanto para você mesmo — a exposição da vida pública custa-me muito. Não era uma coisa a que almejasse quando quis seguir a carreira musical. Nunca quis ser uma pessoa famosa. Não era mesmo a minha intenção”.