Índice

    Índice

Numa altura em que se multiplicam as imagens de cidades arrasadas e as acusações de crimes de guerra e em que se debate, amiúde de forma acesa, a legitimidade da guerra, o que constitui uso proporcional de força, o que distingue alvos civis de alvos militares, o que são danos colaterais e até que ponto podem ser considerados aceitáveis e até se especula sobre o uso de armas nucleares, o aparecimento de A Máfia dos Bombardeiros, do reputado escritor/conferencista/podcaster Malcolm Gladwell, dir-se-ia oportuno. O livro não trata da guerra na Ucrânia, mas de eventos que tiveram lugar há mais de 70 anos, mas os assuntos que aborda são candentes – o livro cuja edição original, com o título The Bomber Mafia: A dream, a temptation and the longest night of the Second World War, surgiu em 2021, foi editado pela D. Quixote como A Máfia dos Bombardeiros: Um sonho, uma tentação e a noite mais longa da Segunda Guerra Mundial e tem tradução de Inês Vaz Pinto.

A capa de “A Máfia dos Bombardeiros”, de Malcolm Gladwell (Dom Quixote)

A “narrativa” de Gladwell

Um génio solitário chamada Carl L. Norden – que nasceu nas Índias Orientais Holandesas, cresceu na Holanda, estudou engenharia na Suíça e emigrou para os EUA em 1904 –, inventou, sozinho, uma mira de bombardeamento revolucionária, uma espécie de computador analógico que, uma vez fixado o alvo através de um telescópio, incorporava informação sobre a altitude e velocidade do avião, a velocidade e direcção do vento, a temperatura atmosférica (que condiciona a densidade do ar e, logo, a sua resistência à queda da bomba) e o tipo de bomba (a forma e o peso do objecto influem na sua trajectória), indicava a rota a seguir pelo avião e o momento em que as bombas deveriam ser lançadas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Na década de 1930, quando o United States Army Air Corps ainda era uma divisão do Exército (que seria reformulada como United States Army Air Forces e só em 1947 se autonomizaria como United States Air Force), um grupo de jovens aviadores do que davam aulas na Air Corps Tactical School, em Maxwell Field, no Alabama, e que ficou conhecido como “a Máfia dos Bombardeiros”, ficou fascinado com as possibilidades aberta pela mira Norden e, desafiando a “filosofia” então dominante nas Forças Armadas dos EUA, pugnou para que a abordagem à guerra e, em particular, aos bombardeamentos, fosse radicalmente alterada: “a mira Norden representava um sonho – um dos sonhos mais poderosos da história da guerra: se pudéssemos largar bombas com uma precisão extrema a 9000 metros [de altitude], os exércitos deixariam de ser necessários. Não seria preciso deixar jovens morrer nos campos de batalha ou arrasar cidades inteiras. Podíamos reinventar a guerra. Fazer tudo com maior precisão e de forma mais rápida, quase sem derramamento de sangue”.

Os EUA entraram na II Guerra Mundial a 7 de Dezembro de 1941 e, apesar da tenacidade e coragem com que a “Máfia dos Bombardeiros” defendeu a sua inovadora e humanitária concepção do bombardeamento de precisão, o pensamento ortodoxo acabou por prevalecer, “os impulsos assassinos dos generais nos campos de batalha” levaram a melhor e o United States Army Air Corps pôs de parte os ataques “cirúrgicos” diurnos contra alvos militares de elevado valor, preconizados pelo general Haywood Hansell, e apostou nos bombardeamentos nocturnos, maciços e indiscriminados contra populações civis, frequentemente com recurso a bombas incendiárias de napalm, para forçar a Alemanha e o Japão a renderem-se – uma estratégia que foi levada a cabo pelo general Curtis LeMay. Como corolário desta abordagem de bombardeamento em larga escala, a 6 e 9 de Agosto de 1945 os EUA lançaram sobre Hiroshima e Nagasaki duas bombas cujo raio de destruição era tão amplo que se tornava indiferente a precisão.

Haywood Hansell, frente a um mapa de Tokyo, Novembro de 1944

Assim, quem ganhou a guerra (e as condecorações e o reconhecimento público) foi Curtis LeMay, enquanto Haywood Hansell (que fora abruptamente demitido e substituído por LeMay) foi remetido para uma base de treino na retaguarda e se reformou antecipadamente em 1946. Todavia, Haywood Hansell, “romântico e idealista, que adorava Dom Quixote, que se identificava com o cavaleiro galante que lutava impotente contra moinhos de vento”, é “aquele por quem temos maior simpatia […], porque nos serve de modelo para o que significa ser moral no nosso mundo moderno”.

O general Curtis LeMay (ao centro), com o general Joseph W. Stilwell (à esquerda), Outubro de 1944

É uma bela história, ao estilo dos blockbusters (por sinal, uma palavra pedida emprestada à terminologia do bombardeamento aéreo) de Hollywood “baseados em factos históricos”, com personagens “bigger than life”, de personalidades antitéticas, e que, por não confiarem no discernimento do espectador, são rematados com a enunciação explícita da lição moral que deles deverá ser retirada.

Há na história de A Máfia dos Bombardeiros um fundo de verdade, mas as simplificações, omissões e distorções introduzidas por Gladwell desvirtuam-na seriamente. Comecemos pelas miras de bombardeamento.

Acertar com uma bomba num barril de pickles

Gladwell apresenta a mira Norden como um prodígio tecnológico que brotou, pronto a funcionar, da mente genial de Carl Norden, tal como Atena emergiu, plenamente formada, da testa de Zeus. Ora, a Norden esteve longe de ser a primeira mira de bombardeamento, já que a ideia de desenvolver um dispositivo que permitisse que as bombas lançadas por um avião acertassem no alvo começou a ser desenvolvida ainda antes do início da I Guerra Mundial. As miras que os principais beligerantes colocaram em uso em 1914-18 já entravam em conta com alguns dos parâmetros que Gladwell enumera para a mira Norden – altitude e velocidade do avião, velocidade e direcção do vento – mas tal requeria que o operador executasse manualmente uma sucessão de complexos cálculos. A mira CSBS (Course Setting Bombsight), inventada pelo britânico Harry Wimperis em 1917, libertou o operador da mira da tarefa de cálculo, confiando-a a um dispositivo mecânico.

Mira CSBS, 1917

Na viragem das décadas de 1920/1930, os progressos feitos no domínio da computação analógica permitiram aumentar a rapidez de cálculo e a precisão do bombardeamento: o operador seleccionava o alvo e a mira efectuava os cálculos e determinava a rota do avião e o momento do lançamento. Ao mesmo tempo, as inovações no domínio da pilotagem automática permitiram conectar a mira a um sistema de piloto automático, que mantinha o avião numa trajectória estabilizada em direcção ao alvo, sujeita a correcções em tempo real, em função de eventuais alterações nas condições atmosféricas, algo que mesmo o mais dotado piloto humano teria dificuldade em assegurar.

Painel de controlo do piloto automático Sperry A-5, de 1943, concebido para funcionar com a mira Sperry S-1

Gladwell escamoteia todo este contexto (nem sequer menciona o piloto automático) e foca-se numa “narrativa” simplista e personalista: havia um problema que ninguém sabia resolver – como acertar num alvo com uma bomba lançada por um avião – e de repente aparece Carl Norden: “Não tinha ajuda. Fazia tudo sozinho. Tinha tudo na cabeça. Não fazia anotações. Não tinha um bloco de notas”, escreve Gladwell, citando Stephen McFarland, “um dos poucos historiadores – talvez o único – que realmente pesquisou a história de Norden”.

Estamos muito longe da verdade: na época, cientistas em vários países afadigavam-se no desenvolvimento de miras de bombardeamento de precisão e nos EUA até se estabeleceu uma rivalidade entre a Marinha, que apostou na firma Norden, e o US Army Air Corps, que financiou a Sperry Corporation, pioneira no campo dos giroscópios e do piloto automático, duas componentes sem a qual a mira Norden seria impraticável. As miras Norden e Sperry, que foram passando por sucessivas versões, cada vez mais sofisticadas e (supostamente) precisas (em 1939, o marketing da Norden difundiu a ideia de que a mira permitia acertar num barril de pickles a partir de 6000 metros de altitude, 9000 segundo outras versões). As duas miras seguiam princípios similares e a primeira incorporava vários progressos tecnológicos desenvolvidos pelos engenheiros da Sperry. De acordo com Lloyd Searle, no elucidativo artigo “The bombsight war: Norden vs. Sperry” (publicado no número de Setembro de 1989 da revista IEEE Spectrum), a mira Sperry “superava a Norden em rapidez, simplicidade de operação e, em última análise, em relevância tecnológica”, e a mira Sperry até foi a primeira a ser utilizada em situação de combate, a 30 de Abril de 1941, seis meses antes da estreia da Norden.

Mira Norden Mk. XV, também conhecida como Norden M1

O US Army Air Corps ficou plenamente satisfeito com a mira Sperry S-1 e com o piloto automático Sperry A-5 que lhe estava associado e, em Junho de 1941, determinou que todos os seus bombardeiros fossem, doravante, dotados destes equipamentos, embora impondo a condição de o A-5 ser também compatível com a mira Norden. A mira Sperry começou a ser instalada em massa no Consolidated B-24 Liberator (o bombardeiro pesado mais produzido de sempre, com um total de 18.500 exemplares), mas a Norden não dissera ainda a última palavra: insinuou a ideia de que, por a Sperry ser uma multinacional com ramificações na Grã-Bretanha e, antes da guerra, também na Alemanha e Japão, poderia comprometer a exclusividade americana naquela tecnologia de ponta. Por outro lado, enquanto a Norden tinha já uma década de sólida cooperação com a marinha, o vínculo, mais recente e ténue, entre a Sperry e o Army Air Corps foi debilitado por dois acidentes aéreos separados por poucos meses, em 1942-43, que ceifaram a vida dos dois principais paladinos da Sperry no Army Air Corps. A conjugação destes factores e, quiçá, de algum lobbying da Norden em Washington, levou, em Novembro de 1943, a que o Army Air Corps cancelasse as encomendas de miras Sperry, por serem, alegadamente, menos precisas do que as Norden. A partir de então, todos os bombardeiros pesados americanos – Boeing B-17 Flying Fortress e Boeing B-29 Superfortress – foram equipados com miras Norden e pilotos automáticos Honeywell C-1, que, como destaca Lloyd Searle, “incorporavam ambos tecnologia desenvolvida pela Sperry”.

Tudo o que acima foi descrito está ausente do livro de Gladwell (a Sperry não é sequer mencionada), possivelmente por não encaixar no estereótipo da “invenção revolucionária criada pelo génio solitário” que convém à sua narrativa.

Mira Sperry S-1

Miras britânicas e alemãs

A Norden e a Sperry não foram as únicas miras de precisão largamente utilizadas na II Guerra Mundial. A Grã-Bretanha desenvolveu vários modelos, que a partir de 1942 foram quase todos suplantados pelo Mk. XIV, que também recorria a giroscópios Sperry e que era quase inteiramente automático, apenas requerendo que o operador inserisse, se necessário, dados relativos a mudanças de direcção e velocidade do vento. Embora a Mk. XIV fosse, em teoria, um pouco menos precisa do que a Norden, tinha, na prática, um desempenho equivalente e era mais fácil de operar. A Mk. XIV coexistiu na Royal Air Force com duas miras desenvolvidas para funções específicas: a Mk. III (ou Low Level Bomb Sight), uma modificação da Mk. XIV para bombardeamentos de baixa altitude, e a SABS (Stabilized Automatic Bomb Sight), que foi instalada nos Avro Lancaster modificados para transportar as super-bombas Tallboy e Grand Slam. A SABS era mais precisa do que a Norden, mas requeria mais horas de treino para ser operada e, uma vez que requeria a manutenção de uma rota estabilizada durante um período mais longo, deixava o avião mais exposto.

A prova das virtudes da Mk. XIV está no facto de ter continuado em serviço no pós-guerra, sendo, nomeadamente, instalada nos “V bombers”, a jacto, que equipavam a unidade de bombardeamento estratégico nuclear da Grã-Bretanha, só sendo substituída no início da década de 1960.

Mira britânica Mk. XIV, instalada num Avro Lancaster

As suspeitas suscitadas pela Norden em relação à possível “permeabilidade” da rival Sperry à espionagem alemã continham uma tremenda ironia: a principal mira de precisão da Luftwaffe durante a II Guerra Mundial foi a Lotfernrohr 7, que era fabricada pela firma Carl Zeiss e tinha sido desenvolvida com a ajuda de preciosa informação transmitida, de memória, em 1938, por Hermann Lang, um engenheiro da Norden, que possuía nacionalidade americana mas nascera na Alemanha e até militara no Partido Nazi. A Lotfernrohr 7 era mais simples de operar (a ponto de, nalguns aviões, a tarefa poder ser executada pelo piloto do avião, dispensando um operador dedicado) e mais fácil de manter do que a Norden e era suficientemente eficaz para que, no fim da guerra, um lote de 1000 miras encontradas nos armazéns da Carl Zeiss fosse remetido para a URSS, com o intuito de equipar os bombardeiros médios North American B-25 Mitchell ao serviço da força aérea soviética.

A Lotfernrohr 7 instalada num Heinkel He 111

Gladwell menciona um tremendo óbice da mira Norden (e as miras do mesmo tipo): uma vez que o alvo era fixado pelo operador através de um telescópio, era difícil de utilizar (ou era mesmo inútil) de noite ou se houvesse nuvens ou nevoeiro sobre o alvo, o que acontecia muito frequentemente na Europa Central e no Japão. Estas limitações das miras baseadas em telescópios levou os britânicos a desenvolver um método de orientação de bombardeiros através de triangulação que recorria a radar e feixes de rádio, emitidos a partir de estações terrestres, e permitia ataques de dia ou de noite, em quaisquer condições meteorológicas. Esta tecnologia de orientação e bombardeamento, baptizada como Oboe e que é considerada a mais precisa da II Guerra Mundial, foi usada pela primeira vez pela Royal Air Force em Março de 1943, num ataque às instalações fabris da Krupp em Essen, na Alemanha. Sobre ela – e sobre quaisquer tecnologias de bombardeamento que não a Norden – Gladwell não diz uma palavra.

Sala de controlo do sistema Oboe

O mito da mira miraculosa

Mesmo de dia e com tempo limpo, a mira Norden enfermava de outra limitação que Gladwell também omite: o seu telescópio era de fraca potência, o que significava que, a 6000 metros de altitude não teria resolução suficiente para identificar sequer o barril de pickles em que era suposto acertar. A conclusão a que os peritos em material bélico chegam é que, apesar de ser, entre as miras em uso na II Guerra Mundial, a mais sofisticada e aquela cujo desenvolvimento fora mais dispendioso, a mira Norden teve, na aplicação prática, um desempenho comparável ao das miras britânicas e alemãs. Maior sofisticação não implica necessariamente maior eficácia: a opção dos alemães por desenvolver uma versão simplificada da Norden talvez tenha resultado de terem concluído que os ganhos teóricos decorrentes da maior sofisticação eram suplantados pelas desvantagens práticas.

Quando a eficácia da mira Norden e do conceito de bombardeamento de precisão foram postos à prova os resultados foram quase sempre decepcionantes. Gladwell dá conta de um deles, o ataque concertado a unidades fabris vitais para o esforço de guerra alemão, em Schweinfurt (fábricas de rolamentos de esferas) e Regensburg (fábrica de aviões da Messerschmitt), a 17 de Agosto de 1943. O ataque, que envolveu 376 Boeing B-17, dos quais 60 foram abatidos e 60-90 sofreram danos graves, produziu estragos significativos em Regensburg, mas em Schweinfurt apenas 80 das 2000 bombas lançadas atingiram o alvo. Um segundo ataque a Schweinfurt, a 14 de Outubro, com 291 B-17, logrou fazer mais estragos do que o primeiro, mas a factura a pagar foi ainda mais pesada: 77 B-17 abatidos, 120 danificados.

B-17 sobre Schweinfurt, 17 de Agosto de 1943

Após relatar o duplo fiasco de Schweinfurt, o enredo de A Máfia dos Bombardeiros desloca-se para o Pacífico e, inexplicavelmente, olvida o resto do programa de bombardeamentos de precisão na frente europeia. Teria sido instrutivo, para aquilatar da eficácia desta estratégia, dar conta, por exemplo, dos sucessivos ataques ao complexo industrial Leunawerke, perto de Mersenburg, que albergava, entre outras indústrias, a maior das sete fábricas de combustíveis sintéticos em território alemão, operada pela IG Farben. Os 22 ataques aos Leunawerke decorreram entre 12 de Maio de 1944 e 4 de Abril de 1945 e envolveram um total acumulado de 6550 bombardeiros pesados americanos e britânicos, que lançaram 83.000 bombas, com um peso total de 18.000 toneladas. É certo que os raids acabaram por conseguir comprometer seriamente o funcionamento do complexo industrial – a produção de combustível sintético em 1944 foi metade da do ano anterior – e acabou por torná-lo inoperacional em Abril de 1945 (num altura em que a máquina militar alemã estava já exangue). Porém, embora o alvo fosse bem maior do que um barril de pickles – o núcleo fabril ocupava 300 hectares, numa área total de 780 hectares, que também albergava réplicas destinadas a iludir os bombardeiros – apenas 10% das bombas acertaram nele e, das que acertaram, nem todas explodiram. Houve três raids americanos em que nem uma única bomba acertou no perímetro e que custaram a perda de 119 bombardeiros.

Num dos raids de 1944 aos Leunawerke, bombardeiros B-17 enfrentam fogo anti-aéreo sobre Mersenburg

Os ataques aos Leunawerke fizeram parte de uma campanha aliada mais vasta contra a produção alemã de petróleo, combustíveis e lubrificantes, recorrendo a “bombardeamentos de precisão”. A avaliação dos resultados globais da campanha permitiu concluir que apenas 13% das bombas lançadas pelos aliados caíram dentro do perímetro das instalações industriais e que, destas, 12 a 19% não chegaram a explodir.

1 de Agosto de 1943: B-24 Liberator sobre refinaria em Ploiești, na Roménia, um dos principais alvos da campanha aliada “do petróleo”

A 2.ª parte de A Máfia dos Bombardeiros tem por assunto os bombardeamentos americanos sobre o Japão, empregando Boeing B-29 Superfortress, mais rápidos, com maior raio de alcance, mais bem armados e capazes de voar a maior altitude do que os B-17.

Os primeiros ataques, iniciados em Junho de 1944, usaram bases na China, mas a conquista americana das Ilhas Marianas, oferecendo uma rota mais directa e pondo menos problemas logísticos, tornou aquelas na base preferencial para os B-29 a partir de Novembro de 1944. O general Haywood Hansell começou por apostar no bombardeamento “de precisão”, diurno e a grande altitude, mas este não produziu melhores resultados do que o bombardeamento de precisão na Europa, o que levou ao afastamento de Hansell e à sua substituição por Curtis LeMay. Os primeiros bombardeamentos “de precisão” sob a direcção de LeMay, em Janeiro de 1945, voltaram a produzir resultados decepcionantes.

Gladwell reconhece o desfasamento entre as promessas de precisão associadas à mira Norden e a realidade no campo de batalha, mas omite informação que revele a extensão esse desfasamento – compreende-se que o faça, pois , de outro modo, Gladwell demoliria um dos sustentáculos do seu livro: a (suposta) oposição entre os bombardeamentos “cirúrgicos” com mira Norden e a destruição indiscriminada dos outros métodos de bombardeamento.

O “sonho” da guerra “quase sem derramamento de sangue”

A oposição acima mencionada enferma de outra falácia: desde a I Guerra Mundial que os aviadores tinham vindo a empregar um método para tornear a baixa precisão do bombardeamento em voo horizontal, que era lançar as bombas em voo picado – abordagem que Gladwell nem sequer menciona. O voo picado dispensava o desenvolvimento de miras super-complexas mas requeria coragem e perícia ao piloto e impunha tremendos esforços aos aviões e aos tripulantes (que chegavam a perder momentaneamente a consciência ou a visão devido às forças gravitacionais geradas pela abrupta saída do mergulho). Os alemães deram-lhe primazia e desenvolveram um bombardeiro ligeiro especializado nessa abordagem, o célebre Junkers Ju 87 Stuka, cujo desempenho foi tão satisfatório (incluindo contra alvos tão pequenos e móveis quanto tanques) que dele foram produzidos 6000 exemplares;  também dotaram da capacidade de voo picado bombardeiros mais pesados, como o Junkers Ju 88 e o Heinkel He 177, mas com menor sucesso.

Também americanos e japoneses apostaram nos bombardeiros em voo picado, que se tornaram na arma principal da guerra aeronaval, em que os alvos não só eram mais pequenos do que fábricas como estavam em movimento e descreviam trajectórias imprevisíveis, situação em que o bombardeamento em altitude com miras sofisticadas seria terrivelmente ineficiente – numa das raras vezes em que este foi tentado, na Batalha de Midway, em 1942, os B-17 não conseguiram acertar com uma única bomba nos navios japoneses.

Curtiss SB2C Helldiver, um dos mais eficazes bombardeiros em voo picado dos EUA, de que foram produzidos 7140 exemplares

Mas isto leva-nos a outra falácia que está no cerne de A Máfia dos Bombardeiros: a de que quem advogava o bombardeamento de precisão em altitude era um idealista animado por uma intenção benévola: a de minimizar a destruição e o sofrimento. Talvez alguns promotores desta abordagem fossem bem intencionados, mas a maioria pretendia apenas aquilo que pretendem todos os comandantes militares, inventores e fabricantes de tecnologia bélica e Ministros da Guerra (agora da Defesa): produzir o máximo de dano no inimigo com um mínimo de perdas do seu lado.

A ideia de ganhar guerras mediante bombardeamento de precisão a grande altitude floresceu numa altura em que o desenvolvimento de bombardeiros capazes de voar mais rápido e mais alto do que qualquer avião de combate fora capaz até então e abriu a possibilidade de vibrar golpes no inimigo a partir de uma posição inatacável, fora do alcance dos caças, da artilharia anti-aérea e até da vista. Porém, na incessante e feroz competição e co-evolução típica da tecnologia bélica, não tardou que fossem desenvolvidos caças capazes de voar mais depressa e tão alto quanto os bombardeiros e artilharia anti-aérea mais precisa, mais destrutiva e com maior alcance, bem como sistemas de radar capazes de guiar os caças e a artilharia para os seus alvos, desfazendo a fugaz “invulnerabilidade” dos bombardeiros. E quando uma formação de bombardeiros se vê acossada por um enxame de caças inimigos e uma barragem maciça de fogo anti-aéreo, poucos são os pilotos que não cedem à tentação de fazer manobras evasivas e prosseguem, imperturbáveis, como patos numa barraca de tiro, na rota ditada pela sua preciosa mira.

Uma formação de B-17 ruma ao seu alvo em Neumünster, a 13 de Abril de 1945, numa altura em que a defesa aérea alemã era já quase inexistente

Na Alemanha e no Japão, os bombardeamentos diurnos “de precisão” produziram, sistematicamente, uma taxa de acerto muito mais baixa do que previsto e elevadas perdas de bombardeiros. Compreende-se – mesmo que se reprove do ponto de vista ético – que, em 9/10 de Março de 1945, Curtis LeMay tenha tentado um novo método: o bombardeamento nocturno indiscriminado com bombas incendiárias de napalm, uma substância recentemente desenvolvida nos laboratórios da Universidade de Harvard (ver capítulo 7 de Da Arca de Noé ao avião a jacto).

Quando o autor não faz o trabalho de casa

As omissões, distorções e falácias acima apontadas bastariam para retirar validade a A Máfia dos Bombardeiros, mas há pior: o livro abunda em erros, trechos obscuros ou incompreensíveis e explicações trapalhonas, que sugerem que Gladwell não domina os assuntos de que fala e que não reflectiu maduramente sobre as teses que propõe. Eis alguns exemplos:

Pg. 32: Explicando o funcionamento da mira Norden e citando Stephen McFarland (o “especialista” no tema Norden), escreve-se que “um dos 64 algoritmos da Norden compensava o facto de quando largamos uma bomba esta demorar 30 segundos a atingir o alvo. Durante esses 30 segundos, a Terra de facto move-se à medida que gira sobre os seus eixos”.

A Terra gira, com efeito, mas fá-lo apenas sobre um eixo (não “eixos”) e esse movimento é irrelevante para o lançamento de bombas, uma vez que aviões, bombas, nuvens, pardais, borboletas, mosquitos, sementes de dente-de-leão e toda a atmosfera acompanham o movimento de rotação terrestre. É por isso que podemos sair à rua sem ficar despenteados apesar de, à latitude de Lisboa, por exemplo, a superfície da Terra se mover a 1300 Km/h, e é por isso que se deixarmos cair uma pedra do topo de um arranha-céus ela irá – na ausência de vento – cair na vertical do ponto de largada.

É de notar que o tempo de queda de 30 segundos indicado por Gladwell é puramente arbitrário, já que o tempo de queda é determinado pela altitude de lançamento e pelas características da atmosfera e da bomba.

Thomas Ferebee, o bombardeiro (ou apontador) do B-29 “Enola Gay” – o que lançou a bomba atómica em Hiroshima – com a sua mira Norden, na base de Tinian, nas Ilhas Marianas

Pg. 46: Sobre uma inundação em Pittsburgh, em 1936, que interrompeu a produção da firma Hamilton Standard, a “principal fabricante do país de uma mola utilizada no fabrico de hélices de passo variável”, Gladwell escreve “basta destruir a fábrica de molas de hélices em Pittsburgh para paralisar toda a Força Aérea”.

Não é verdade: a paragem da fábrica apenas dificultaria ou atrasaria a entrega de novos aviões, não paralisaria “toda a Força Aérea”. Registe-se ainda que Gladwell preenche 2/3 de página com frases de dramatismo empolado, descrevendo a inundação e suas circunstâncias, o que é absolutamente irrelevante para o que deveria ser o argumento central: a indústria aeronáutica americana estava dependente de um fornecedor de peças cuja fábrica foi afectada por uma inundação.

Pg. 91-94: A fim de ilustrar a crença da Máfia dos Bombardeiros na eficácia do bombardeamento de precisão, apesar dos sucessivos fiascos, Gladwell recorre a uma analogia: a do anúncio do fim do mundo por Dorothy Martin, líder da seita religiosa dos Seekers. Martin previu que o mundo iria acabar a 21 de Dezembro de 1954, mas que quatro dias antes ela e os seus seguidores seriam salvos por um disco voador. Os crentes desfizeram-se das suas possessões terrenas e aguardaram, mas o disco voador não veio a 17; Martin revelou que houvera uma mudança de planos e o resgate teria lugar umas horas antes do apocalipse; os Seekers retomaram a vigília, mas o dia 21 chegou e passou e não houve nem resgate nem apocalipse, pelo que Martin anunciou que Deus, impressionado pela fé dos Seekers, decidira não aniquilar o mundo.

Uma é uma história de charlatanismo reiterado, delírio, crendice e fanatismo religioso, a outra é uma história de um grupo de peritos que, com base em pressupostos e argumentação racionais, tenta persuadir a hierarquia militar da viabilidade da sua abordagem, apesar de os resultados iniciais serem pouco promissores. Como pode estabelecer-se um paralelismo entre ambas?

Pg. 100: “Todos nós temos conhecimento das duas bombas atómicas que foram largadas em Hiroshima e Nagasaki em Agosto de 1945: ‘Little Boy’ e ‘Fat Man’, largadas do ‘Enola Gay’”.

“Little Boy” foi lançada em Hiroshima pelo B-29 baptizado como “Enola Gay” (em honra da mãe do seu piloto, o coronel Paul Tibbets), mas “Fat Man”, a bomba de Nagasaki, foi lançada pelo B-29 “Bockscar”, pilotado pelo major Charles W. Sweeney.

O B-29 “Bockscar”, a 9 de Agosto de 1945, dia do lançamento de “Fat Man” sobre Nagasaki, ostentando na cauda a marca “N”, pintada especificamente para esta missão

Pg. 106: Sobre as dificuldades em fazer descolar da base nas Ilhas Marianas os Boeing B-29 carregados com “9000 litros de combustível extra” que iam atacar o Japão, Gladwell explica que o avião “precisava de um vento de cauda tremendo para descolar da pista. Foi a situação mais insana de toda a guerra”.

Na “Nota do autor” que abre o livro, Gladwell declara ser, desde criança, obcecado com livros sobre guerra – “os grandes bestsellers de História, mas também narrativas sobre o tema. Memórias há muito fora do mercado. Textos académicos” – e em particular, livros sobre bombardeamentos, bazofiando-se de possuir “prateleiras e prateleiras cheias destas histórias”. É de estranhar que, nem nestas pilhas de livros, nem no convívio com as altas hierarquias da Força Aérea Americana (de que também se gaba) tenha aprendido esta regra elementar: os aviões descolam sempre contra o vento. Quanto à “situação mais insana de toda a guerra”, há que dar um desconto: Gladwell é viciado em hipérboles.

Pg. 109-111: Para bombardear o Japão, os B-29 do 20.º Corpo de Bombardeiros, com base perto de Calcutá, voavam até Chengdu, na China, onde “poderiam reabastecer, depois voar para o Japão, largar as bombas, regressar a Chengdu, reabastecer e voar de regresso a Calcutá”, lê-se na pg. 109. Na pg. 110, “a base aérea em Chengdu não tinha combustível para aviões. Era no meio de nada – apenas uma pista de aterragem”, mas na pg. 111, os aviões passam por Chengdu, onde “reabasteceram e partiram outra vez”.

A rota mais curta da Índia para Chengdu passava pelos Himalaias, a que os pilotos chamavam “o Corcunda”: “a única forma de ter combustível para chegar a Chengdu era sobrevoando o Corcunda. Por vezes, se houvesse ventos contrários […] num B-29 gastavam 45 litros de gasolina a sobrevoar o Corcunda para chegar com 3.7 litros” (pg. 110). Esta afirmação é repetida na pg. 111-112: “Não podemos travar uma batalha aérea com qualquer tipo de eficácia quando gastamos 45 litros de combustível a atravessar os Himalaias e chegamos ao outro lado com três litros”.

A capacidade dos tanques de combustível dos B-29 era de 21.200 litros – de onde vêem os valores acima?

Junho de 1944: B-29 Superfortress na base de Chengdu, pouco antes de descolarem para o primeiro raid sobre o norte da ilha de Kyūshū, no Japão

Pg. 114-118: Gladwell dá conta de que os ventos fortes a grande altitude, soprando de oeste para leste, conhecidos como “jet stream” e, à data, ainda mal compreendidos, dificultavam os bombardeamentos dos B-29 sobre o Japão. Porém, as suas explicações são confusas e incidem estritamente no efeito da jet stream sobre a velocidade do avião, quando o que mais prejudicava a precisão do bombardeamento nestas condições era o efeito do vento sobre a trajectória das bombas após serem largadas (e, também, sobre a trajectória dos bombardeiros, dificultando o voo em formação).

Gladwell inquire um meteorologista sobre a extensão da jet stream, aquele responde que esta “é normalmente de 200 Km de diâmetro” e Gladwell aceita de bom grado que uma “corrente” (stream) tenha um “diâmetro” em vez de ter uma largura, um comprimento e uma profundidade.

B-29 bombardeando território japonês: Assim que são largadas as bombas começam a dispersar-se sob o efeito da jet stream. Deve realçar-se que pequenas divergências no momento do lançamento das bombas podem ser amplificadas para centenas de metros quando a bomba atinge o chão

“Infelizmente, as bombas não têm olhos”

Segundo Gladwell, o “génio” da Máfia dos Bombardeiros estava em dizer que “não temos de matar inocentes, deitar fogo a tudo e todos […] para cumprir os nossos objectivos militares. Podemos fazer melhor. E eles tinham razão” (pg. 165-166). E Gladwell dá o exemplo do bombardeiro Northrop B-2, estreado em 1989, que é capaz de “atingir 80 alvos seleccionados, a mais de 12.000 metros de altitude, sem os ver se sem que o bombardeiro seja apanhado no radar, desaparecendo depois”. E remata: “Bombardeamento de precisão de grande altitude. Curtis LeMay ganhou a batalha. Haywood Hansell ganhou a guerra”.

A vermelho, área das cidades de Tokyo, Kobe e Nagoya que foi destruída pelas bombas dos B-29

Gladwell distorce a realidade para obter efeitos dramáticos quando apresenta a evolução da estratégia de bombardeamento americana como resultado quase exclusivo do choque de personalidades entre Hansell e LeMay e o abandono, em 1944, do “bombardeamento de precisão de grande altitude” como resultado da vitória do “vilão” LeMay sobre o “herói” Hansell. A verdade é que o “bombardeamento de precisão” foi abandonado porque a tecnologia de então era demasiado incipiente, o que fazia com que as bombas não acertassem nos alvos e os raids tivessem custos elevados para ao atacante, em termos materiais e humanos. Mesmo que fossem concedidas mais oportunidades a Hansell para provar a validade do seu método, as bombas continuariam a cair longe do alvo, missão após missão. O bombardeiro B-2 não prova a superioridade moral de Hansell sobre LeMay nem atesta que os EUA conduzam hoje a guerra de uma forma mais “humanitária” do que na II Guerra Mundial – apenas testemunha o formidável progresso da tecnologia bélica desde 1944. Mas esses avanços na precisão nem sempre têm os efeitos práticos esperados: apesar de a guerra moderna se travar com bombardeiros “stealth” de 750 milhões de dólares, drones hiper-sofisticados, bombas inteligentes e mísseis de alta precisão, nem por isso as populações civis têm sido poupadas, como podemos ver na Ucrânia, na Síria ou no Yemen.

Gladwell atribui a Hansell e à Máfia dos Bombardeiros o louvável desígnio de poupar vidas inocentes, mas, salvo um ou outro psicopata, não terão a maioria dos comandantes militares um propósito similar? Ou, mesmo que não tenham, não terão o cuidado de assumir publicamente um “rosto humano” mesmo quando estão mais preocupados em alcançar a vitória e salvaguardar os seus homens do que em poupar vidas de civis inimigos?

Se fosse vivo, é provável que Curtis LeMay se sentisse melindrado pelo papel que Gladwell lhe atribui neste livro e, em sua defesa, invocasse o “panfleto LeMay”, que os seus bombardeiros lançaram sobre dezenas de cidades japonesas – incluindo Hiroshima e Nagasaki – e cujo texto, em japonês, justificava a estratégia americana e apelava a que as civis abandonassem as cidades listadas no verso. Entre Maio e o início de Agosto de 1945, foram lançados mais de 60 milhões destes panfletos, em versões ligeiramente diferentes, mas cuja mensagem era, essencialmente, esta: “Infelizmente, as bombas não têm olhos. Assim, em consonância com as políticas humanitárias da América, a Força Aérea Americana, que não pretende atingir pessoas inocentes, vem por este meio advertir-vos para que abandonem as cidades indicadas e salvem as vossas vidas. A América não está em guerra com o povo japonês mas com a facção militar que escravizou o povo japonês”.

A derradeira das três versões do “panfleto LeMay”

É leviano fazer julgamentos sobre actos e palavras fora de contexto, mais ainda em tempo de guerra. Um historiador que pretendesse dar a ver Curtis LeMay a uma luz mais favorável, escolheria destacar este panfleto (que Gladwell não menciona), mas, por outro lado, LeMay foi também quem ordenou o raid incendiário de 9/10 de Março de 1945 sobre Tokyo (causando 80.000 a 100.000 mortos em apenas três ou quatro horas), logo seguido por ataques maciços sobre Nagoya (11 de Março e 18/19 de Março), Osaka (13/14 de Março) e Kobe (16/17 de Março), e que, aparentemente satisfeito com os resultados obtidos, alargou os raids “cegos” com napalm a outras grandes cidades japonesas e, depois, a dezenas de cidades de dimensões médias, algumas delas sem indústrias vitais ou alvos com valor militar, causando um total de 240.000 a 900.000 mortos, e 8.5 milhões de desalojados.

Não, isto não é Hiroshima ou Nagasaki: é Tokyo, em 1945, após bombardeamento com bombas convencionais

Por outro lado, pode perguntar-se que quota de responsabilidade cabe a LeMay nestas decisões – Gladwell apenas pontualmente menciona o general Henry “Hap” Arnold, que comandava toda a Força Aérea americana e a quem, portanto, LeMay estava subordinado, e não menciona de todo a equipa de peritos que produziu o United States Strategic Bomb Survey (USSBS), um relatório detalhado e abrangente destinado a avaliar os efeitos dos bombardeamentos aliados na Europa e no Pacífico, que se estendeu por 208 e 108 volumes e foi a mais completa e importante análise sobre bombardeamentos na II Guerra Mundial.

Embora fizesse uma avaliação globalmente positiva dos bombardeamentos, nomeadamente pelo graves danos infligidos à produção alemã de veículos, submarinos e munições, o USSBS concluía que aqueles não tinham produzido efeito mensurável sobre a produção alemã de rolamentos de esferas e que, embora tivessem contribuído para reduzir a produção alemã de aço, esta redução não tinha sido crucial na derrota da máquina de guerra alemã. As lições aprendidas na frente europeia levaram a equipa da USSBS a recomendar que os bombardeamentos sobre o Japão se concentrassem na rede de transportes e nas reservas de alimentos.

Shizuoka após bombardeamento com bombas convencionais

Quanto a Henry “Hap” Arnold, é bom lembrar que foi ele quem determinou a substituição de Hansell por LeMay no comando dos B-29 das Marianas, embora Gladwell, quando narra a demissão de Hansell, remova Arnold da “fotografia” e confie o papel de “mau da fita” a Lauris Norstad, chefe de Estado Maior de Arnold. Convém também ter presente que foram Arnold e Norstad quem, contrariando as recomendações da USSBS, advogaram os bombardeamentos indiscriminados com napalm sobre as cidades japonesas, a que LeMay deu cumprimento. Além de minimizar o papel de Arnold, Gladwell omite que o plano de bombardeamento delineado por LeMay tinha duas componentes: bombardeamentos de precisão sobre alvos militares e industriais em dias de céu limpo, bombardeamentos indiscriminados com napalm em dias de má visibilidade. Infelizmente para os habitantes da parte meridional do arquipélago japonês – a mais populosa e industrializada – o número de dias encobertos durante a Primavera e Verão costuma ser elevado.

Toyama em chamas, a 1 de Agosto de 1945

Se na Força Aérea dos EUA, Arnold e Norstad deram preferência ao bombardeamento indiscriminado de cidades, também Arthur Harris, o comandante da Royal Air Force, tinha, diz-nos Gladwell, uma “crença inabalável” nesta abordagem, que ele acreditava ser capaz de minar o moral do povo alemão – embora os raids aéreos alemães de 1940-41 não tivessem produzido esse efeito sobre o povo britânico. Gladwell menciona Harris e em particular o bombardeamento de Colónia, mas teria sido pertinente realçar que o primeiro grande raid da RAF contra esta cidade, envolvendo cerca de um milhar de bombardeiros, teve lugar em 30/31 de Maio de 1942, muito antes de a Força Aérea americana começar a empregar o mesmo método.

Colónia foi uma das cidades alemãs que mais sofreu com os bombardeamentos aliados

Na verdade, o “bombardeamento de terror” contra populações civis tinha já uma longa história antes do “duelo Hansell vs. LeMay”: tivera o seu momento fundador em 1937, com o ataque da Legião Condor a Guernica, na Guerra Civil de Espanha (ver Há 80 anos, a tragédia de Guernica foi a glória de Picasso), fora amplamente empregue pelo Japão contra a China a partir de 1938 – nomeadamente sobre a cidade de Chongqing, que foi alvo de 268 raids aéreos entre 1938 e 1943 – e fora usada sem hesitação pela Alemanha desde o primeiro dia da II Guerra Mundial, nomeadamente contra Varsóvia, em Setembro de 1939 (20.000-25.000 mortos civis), e Roterdão, em Maio de 1940 (1000 mortos civis e 78.000 desalojados); e embora os raids da Luftwaffe sobre as cidades britânicas em 1940-41 tenham sido os que conquistaram um lugar na História, os raids contra cidades soviéticas, a partir de 1941, também foram devastadores (nomeadamente em Minsk e Leningrad).

Gladwell omite este enquadramento, talvez por recear que ele desvie a atenção do confronto Hansell-LeMay que ele colocou no centro de A Máfia dos Bombardeiros – muitos livros de divulgação histórica de autores americanos enfermam de um enviesamento similar ao dos blockbusters de Hollywood: tudo tem de girar em torno de personagens americanas e realidades americanas.

A 5 de Junho de 1942, um raid japonês sobre a martirizada cidade de Chongquing, causou, além das vítimas “usuais”, 4000 mortes por esmagamento entre a população que entrou em pânico ao tentar entrar nos abrigos anti-aéreos

Os argumentos acima apresentados não são, obviamente, uma defesa da actuação ou da “filosofia” de Curtis LeMay, nem uma justificação para o uso de napalm ou para o bombardeamento maciço de populações civis, nem uma aprovação da imolação pelo fogo de Dresden, Hamburgo, Colónia, Tóquio ou Osaka e do uso de bombas atómicas em Hiroshima e Nagasaki, são, tão somente, uma refutação dos raciocínios falaciosos, das analogias inválidas e da informação enviesada a que Gladwell recorreu para construir A Máfia dos Bombardeiros.

“E depois: buum”

Para lá destas deficiências profundas, A Máfia dos Bombardeiros tem também falhas mais comezinhas, como as que dizem respeito a números e unidades:

Pg. 31: “Na maior parte dos casos, [os bombardeiros americanos] tinham uma tripulação de dez homens”:.

Apenas os bombardeiros pesados tinham, em média, essa tripulação, os bombardeiros médios tinham cinco a sete tripulantes, os bombardeiros médios tinham dois a três.

Pg. 87: Na contabilização das perdas americanas no primeiro ataque a Schweinfurt fala-se de “60 aviões e 552 pilotos capturados”.

Os B-17 tinham, como a maioria dos bombardeiros pesados, um piloto e um co-piloto, pelo que é provável que onde está “pilotos” deverá ler-se “tripulantes”.

Pg. 89: Equívoco similar terá ocorrido na contabilização das perdas no segundo ataque a Schweinfurt, com “650 pilotos mortos ou capturados”.

Pg. 129: “[…] a área de 65 m2 que constitui a parte central de Osaka”: provavelmente são 65 Km2.

Pg. 130: “[…] no Dugway Proving Ground, as instalações para testes do Exército de 3200 m2, no meio do deserto do Utah”: provavelmente são 3200 Km2.

B-29 sobre Osaka, 1 de Junho de 1945

E depois há o estilo de prosa que Gladwell adoptou neste livro: as frases são muito curtas, o tom é coloquial, estridente e exuberante, a raiar a histeria, como se Gladwell tivesse concluído que um livro sobre bombas precisava de um registo bombástico. As frases curtas não são, infelizmente, sinónimo de concisão: a escrita é farfalhuda e a narrativa, errática, perde-se em detalhes coloridos, anedóticos e absolutamente irrelevantes, pelo que acaba por ter baixa densidade informativa. Para tal contribui a tendência de Gladwell para a redundância (por exemplo, as primeiras cinco linhas do capítulo V consistem exclusivamente em informação que já fora fornecida, em duplicado, no capítulo IV) e para o pleonasmo – só a página 38 tem dois: “Era um homem único. Encontram-se uma vez na vida” e “A Tactical School era uma universidade. Uma academia”. Para completar o enchimento do livro, Gladwell também deita mão às mais estafadas banalidades: “Todas as guerras são absurdas. Durante milhares de anos, os seres humanos decidiram resolver as suas discordâncias destruindo-se uns aos outros. E quando não estamos a destruir-nos uns aos outros, despendemos tempo e atenção a descobrir melhores formas de nos destruirmos uns aos outros na oportunidade seguinte” (uma Miss Universo ou o actual Secretário-Geral das Nações Unidas não diria melhor).

Dresden após os bombardeamentos de 13-15 de Fevereiro de 1945. Os aliados alegaram que a cidade era um importante nó ferroviário e centro industrial, mas muitos destes alvos não foram sequer visados e as bombas caíram sobretudo sobre o notável centro histórico, que ficou destruído em 90% da sua extensão

Gladwell também recorre a onomatopeias pueris, como “E depois: buum. Com o impacto, centenas de pequenas explosões” ou “De repente a Air House desapareceu. Puf”, como se se dirigisse a público adolescente, e faz interpelações directas ao leitor – “No decorrer da guerra quantos aviões americanos pensa que se despenharam a tentar sobrevoar o Corcunda?” – como se estivesse no palco de uma palestra. Os livros costumam ter, sobre outras formas de transmissão de informação, a vantagem de serem sóbrios e reservados, mas este grita e esbraceja, umas vezes como um vendedor de banha-de-cobra (“é com satisfação que afirmo que com A Máfia dos Bombardeiros encontrei uma história digna da minha obsessão”), outras como um tele-evangelista possuído (“Se as bombas incendiárias representavam uma traição à doutrina do bombardeamento de precisão, então o que dizer da bomba atómica? Meu Deus. Era um Judas tecnológico”).

O livro transborda de dramatismo forçado e empolamento – por exemplo, quando se chega à “noite mais longa da Segunda Guerra Mundial” referida no sub-título, percebe-se que nada de particularmente decisivo para o rumo da guerra nela se jogou – e até o mais anódino detalhe pode ser afectado por este sobreaquecimento emocional, o que gera trechos como “fora do edifício estão alegremente estacionados quatro aviões de combate” (há quem consiga avaliar a olho a felicidade das vacas açorianas, Gladwell atribui estados de espírito a objectos inanimados).

A experiência galvanizadora de se ser bombardeado

Malcolm Gladwell ganhou notoriedade pelos artigos que, a partir de 1996, começou a publicar na The New Yorker, que se baseavam na observação atenta da natureza humana e da realidade e que iam ao arrepio do senso comum. Ele era o observador que olhava para o mundo com olhos livres de preconceitos e “ideias recebidas” e descortinava nele padrões, tendências e nuances que passavam despercebidas aos restantes observadores – uma boa amostra desta fase foi antologiada em O que o cão viu (publicado em Portugal pela D. Quixote). Porém, já há alguns anos que vive de impingir teses ostensivamente “fora da caixa” sobre assuntos que não domina e cuja fundamentação se desmorona ao primeiro exame.

Em David e Golias (2013), o seu antepenúltimo livro, esforça-se por convencer o leitor de que os fracos são os fortes e que sofrer de dislexia, ficar órfão, ou ser-se alvo de bombardeamentos regulares pode ser benéfico e ajudar-nos a crescer; que diminuir o tamanho das turmas não se traduz em melhor aproveitamento dos alunos; que os alunos não devem procurar entrar nas melhores universidades; e que os finlandeses registam uma taxa de suicídio relativamente elevada porque é difícil “estar deprimido num país em que toda a gente tem um grande sorriso na cara”. As teses do penúltimo livro, Falar com desconhecidos (2019) são menos contra-intuitivas, mas nem por isso a obra é mais coerente, esclarecedora ou produtiva e, como David e Golias e A Máfia dos Bombardeiros, dá a impressão de ter sido atabalhoadamente pesquisada e redigida (ver O que sabemos nós uns dos outros?).

O que vale a Gladwell é que o ramo dos livros é menos exigente que o dos bombardeamentos: basta acertar nas primeiras tentativas e daí em diante é possível viver indefinidamente à custa da reputação conquistada no início de carreira. Após ter sido rotulado pela revista GQ como “o pensador mais influente do mundo” e incluído pela revista Time na lista das “100 pessoas mais influentes” e pela revista Foreign Policy na lista “Top global thinkers”, Gladwell terá concluído que teria via aberta para vender, sob a forma de livro, palestra ou podcast, qualquer devaneio que lhe passe pela cabeça, desde que o exprima em tom hiperbólico e assertivo, de forma a que ninguém se atreva a examinar de perto as suas esdrúxulas teorias e a sua débil argumentação. E esta estratégia tem tido sucesso: no meio das artes & letras a combinação reputação + intimidação funciona muito bem e A Máfia dos Bombardeiros recebeu críticas positivas em media tão prestigiados como The Washington Post e The Wall Street Journal e tem sido um fenómeno de vendas nos EUA (subiu ao 2.º lugar da lista de best sellers do The New York Times). É provável que o mesmo aconteça em Portugal, onde o respeitinho é muito bonito e uma crítica desfavorável a Gladwell poderá suscitar reacções do tipo “Por amor de Deus! É um senhor professor doutor que faz TEDTalks!”.

Gladwell é tão prolífico a gerar teorias descabeladas, é tão solicitado para conferências por universidades e think tanks de todo o planeta e deve consumir tanto tempo a gerir a sua empresa de podcasts – a Pushkin Industries – que é provável que não tenha tempo para conferir eventuais incongruências na sua vasta produção intelectual. Ora, é oportuno recordar que em David e Golias Gladwell defendeu que a exposição dos londrinos aos bombardeamentos da Luftwaffe foi uma experiência com saldo global positivo: a sua tese é que “sobreviver por pouco traumatiza-nos, sobreviver por uma margem confortável faz-nos sentir invencíveis” e “houve muito mais sobreviventes com margem confortável, que se sentiram galvanizados pela experiência de serem bombardeados, do que os sobreviventes por pouco, que ficaram traumatizados”.

Okayama, após ter sido bombardeada pelos B-29 de Curtis LeMay a 29 de Junho de 1945: São visíveis na foto alguns civis claramente “galvanizados” pela experiência

Seguindo esta linha de raciocínio, pode concluir-se que os bombardeamentos indiscriminados sobre zonas residenciais dirigidos por Curtis LeMay poderão ter sido, afinal de contas, um favor que este prestou aos civis alemães e japoneses. Talvez os ucranianos (tal como os sírios e os tchetchenos) compreendam, a seu tempo, quanto devem a Vladimir Putin.