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"O Triunfo de Baco" ou "Os Bêbados": obra de Velázquez, que terá sido pintada entre 1628 e 1629

Corbis/VCG via Getty Images

"O Triunfo de Baco" ou "Os Bêbados": obra de Velázquez, que terá sido pintada entre 1628 e 1629

Corbis/VCG via Getty Images

Quanta literatura existe numa bebedeira?

O livro "Breve História da Bebedeira" propõe-se traçar o perfil e o percurso da dita. O resultado não entusiasma, mas reforça a proximidade entre a criação literária e invenção ébria.

A propósito da publicação pela Casa das Letras de Breve História da Bebedeira, de Mark Forsyth (com tradução de Francisco Agarez), gostaria de me dedicar a uma também breve comparação entre bêbados e escritores, uma vez que me parece existir uma forte correlação (bem como uma importante diferença) entre criação literária e invenção ébria.

O primeiro ponto de contacto é, evidentemente, o facto de muitos escritores e artistas acumularem funções, sendo uns bêbados de primeira. A lista é longa e uma enumeração pareceria um folclórico e mesquinho exercício de coscuvilhice, a que, apesar do meu grande apreço por folclore, coscuvilhice e mesquinhez, pouparei os leitores. Por si só, essa coincidência nada prova, pelo que importa aprofundar mais esta correlação.

No primeiro parágrafo do livro, Forsyth confessa “não saber realmente o que é a embriaguez”. Perante o evidente conflito entre esta confissão e a sua vontade de dedicar um livro ao tema, o escritor acrescenta: “se os escritores consentissem que um pormenor tão insignificante como a ignorância os impedisse de escrever, as livrarias estariam vazias”. Forsyth tem razão. Por bizarro que possa parecer, a atividade literária (tanto crítica como criativa) consiste precisamente numa investigação ignorante. Esta descoberta não é propriamente original, uma vez que já a encontramos no diálogo platónico Íon, onde Sócrates força o rapsodo protagonista que dá nome à obra a admitir que quando Homero escreve sobre cavalos não sendo cocheiro, ou quando fala de pescas não sendo pescador estaria a falar do que desconhecia e a obrigar intérpretes da sua obra, como Íon, a comentarem assuntos que extravasavam os seus conhecimentos.

A capa de "Breve História da Bebedeira", de Mark Forsyth, na edição portuguesa da Casa das Letras

Em certo sentido, escrever um livro é uma atividade que consiste em persuadir os outros de que sabemos do que estamos a falar quando não é de todo esse o caso. Se a literatura for uma reprodução ficcional da vida, então um escritor teria necessariamente de ser alguém especialista em estar vivo, alguém que compreendesse a fundo o mistério da existência. Não sei se já tiveram a oportunidade de conhecer algum escritor, bom ou mau, mas estou em condições de garantir que não é isso que acontece. Um escritor gabar-se de compreender melhor do que o resto de nós, míseros mortais, o que é estar vivo seria o mesmo que o recordista do mundo do salto em altura descrever-se como a pessoa que mais perto esteve de tocar com a barriga na lua sem a ajuda de outro instrumento que não o seu corpo. É uma afirmação fatualmente verdadeira, mas a distância ao alvo ridiculariza a excelência do feito. Ora, ainda que alguns abstémios sejam prodigiosos no desporto de falar confiantemente do que desconhecem, os grandes rivais dos escritores neste aspeto serão, sempre, os bêbedos e, desejavelmente, os padres quando falam de sexo.

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Encontramos outra semelhança entre alcoolismo e literatura na passagem de As Variedades da Experiência Religiosa, de William James, que aparece citada no referido livro de Forsyth: “A influência do álcool sobre a humanidade é inquestionavelmente devida ao seu poder de estimular as faculdades místicas (…) Para os pobres e os analfabetos [o álcool] ocupa o lugar dos concertos sinfónicos e da literatura (…) A consciência embriagada é um fragmento da consciência mística”. James está aqui a sugerir que o álcool, tal como a música e a literatura, derivariam do nosso lado místico, o que, mais uma vez, traz de volta a discussão de Sócrates com Íon, onde se debate a hipótese de a inspiração ser uma possessão divina, isto é, a possibilidade de a escrita ser um momento acerca do qual pouco teríamos a dizer porque não estaríamos em nós nesses momentos. Nesse sentido, não é uma coincidência que na mitologia grega Dioniso fosse tanto o deus do vinho como do teatro.

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A fronteira entre ilusão e realidade é líquida e o bêbado cambaleia para cá e para lá dessa linha imaginária ("Jovem Casal Numa Taberna", de Cornelis Bega, 1661)

Heritage Images/Getty Images

Tomar como bom este argumento teria desde logo duas consequências. A primeira, e mais evidente, é a de justificar o motivo pelo qual todos nós conhecemos um desgraçado qualquer que, tal qual um super-herói, durante a semana é uma pessoa séria e engravatada e nas noites de sexta-feira, passado cinco ou seis copos, constrói implausíveis enredos ficcionais, nos quais vai sendo ora herói ora vilão, enredos esses em que a nossa eventual sobriedade não deposita grande confiança mas com os quais não deixa de se entreter tremendamente.

Há ainda outra conclusão a retirar desta relação entre ebriedade, literatura e misticismo. Se for verdade que a literatura é uma inspiração divina e se o trabalho dos escritores for apenas o de se colocarem na posição certa para receber das suas tágides “um estilo grandíloco e corrente”, como diz Camões, então não poderão ser responsabilizados pelo que possam escrever. Aliás, a ideia de ficção deriva precisamente dessa premissa: o escritor cria um narrador e o narrador descreve as personagens, mas, como todos sabemos — ou deveríamos saber —, nem o comportamento das personagens nem as opiniões do narrador são imputáveis ao escritor. O caso de Pessoa (também ele um consumidor ávido de substâncias inebriantes) é, neste ponto de vista, paradigmático, na medida em que através dos seus quarenta e sete heterónimos e do que apelida de “drama em gente” acrescenta uma nova camada a separar o autor do conteúdo da sua obra.

Como bem sabemos, os geniais inventores desta camada ficcional que nos separa do conteúdo do nosso discurso e do resultado das nossas ações foram, evidentemente, os bêbados. Os escritores limitaram-se a sofisticar afirmações como “Oh, eu disse isso mas estava a brincar, como é óbvio”, “Sabia lá eu o que estava a fazer, Arnaldo, porra” ou “Anabela, por amor de Deus, ela não significou nada para mim”.

Quando nos embebedamos, a construção ficcional que fazemos do mundo desfaz-se a cada dois minutos. Contamos histórias que sabemos serem mentiras, tal como fazem os escritores, mas estas não têm consistência, sendo interrompidas, consoante o feitio do bêbado e a qualidade da bebida, por gargalhadas ou lágrimas. Divagamos e interrompemo-nos, oscilamos entre a credibilidade e a amnésia.

No entanto, se os bêbados e os escritores têm todos estes pontos de contacto, há entre eles uma diferença importante que nos leva de novo ao livro de Mark Forsyth e que deriva da duração destas experiências místicas. No caso dos bêbados, a fronteira entre ilusão e realidade é líquida e o bêbado cambaleia para cá e para lá dessa linha imaginária. Quando nos embebedamos, a construção ficcional que fazemos do mundo desfaz-se a cada dois minutos. Contamos histórias que sabemos serem mentiras, tal como fazem os escritores, mas estas não têm consistência, sendo interrompidas, consoante o feitio do bêbado e a qualidade da bebida, por gargalhadas ou lágrimas. Divagamos e interrompemo-nos, oscilamos entre a credibilidade e a amnésia, enchemos as histórias de incoerências e não damos um passo sem que a gravidade nos puxe para o ponto de partida, a que nos agarramos para não batermos com o rabo no chão. Os nossos soluços lembram a audiência de que não nos deve levar a sério, que isto é o álcool a falar. Um bom escritor não faz isso. Um bom escritor apoia os pés na capa, mergulha na primeira página e atravessa o livro em apneia até chegar à contracapa.

É esse o grande problema de Breve História da Bebedeira. Ao longo do livro, Forsyth descreve a relação de várias civilizações (romana, egípcia, asteca, etc.) com a bebida, mostrando com isso tanto a omnipresença como a importância da bebida para a construção de praticamente todas as formas de organização comunitária que já existiram. No décimo oitavo capítulo, por exemplo, o escritor londrino apresenta uma descrição sensata, interessante e nada maniqueísta das causas e efeitos da lei seca nos Estados Unidos.

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Enchemos as histórias de incoerências e não damos um passo sem que a gravidade nos puxe para o ponto de partida (o "Baco" de Caravaggio, 1597)

Print Collector/Getty Images

No entanto, tal como um bom bêbado, um mau mentiroso ou um escritor medíocre, Mark Forsyth quebra de dez em dez linhas a ilusão ficcional com uma piada que nos escritores ingleses definimos como wit e nos portugueses como engraçadismo. Nada é mais irritante do que críticos que franzem o sobrolho sempre que um escritor tenta fazer rir o seu público. Não estou, longe de mim, a sugerir que o problema de Forsyth é tentar ter piada. Estou a sugerir que o problema é não conseguir. O problema é a piada não servir outro propósito que não o de troçar com os leitores que achavam ir aprender alguma coisa com o livro que têm diante dos olhos ou que se entusiasmam com os cenários abertos pelas sugestões do texto, cujas expectativas são invariavelmente defraudadas.

As piadas que polvilham Breve História da Bebedeira estão lá apenas para seduzir o leitor. Estão lá para subjugar o conteúdo do livro ao charme do seu criador, como se a obra fosse um empecilho que Forsyth quer tirar do caminho tão cedo quanto possível, para que nos imaginemos seus camaradas numa noite de copos que se prolonga noite dentro. Ao longo das páginas de Breve História da Bebedeira, sentimo-nos muitas vezes como o amigo abstémio, obrigado a assistir de lábios secos a uma bebedeira monumental e depois guiar todos em segurança para casa.

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