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O duo Golden Slumbers é formado pelas irmãs Margarida (à esquerda) e Catarina (à direita) Falcão
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O duo Golden Slumbers é formado pelas irmãs Margarida (à esquerda) e Catarina (à direita) Falcão

Maria João Bilro

O duo Golden Slumbers é formado pelas irmãs Margarida (à esquerda) e Catarina (à direita) Falcão

Maria João Bilro

Quanto vale cada canção das Golden Slumbers: uma lição de intimidade e harmonia

Em "I Love You, Crystal", as Golden Slumbers (Catarina e Margarida Falcão) expandem a sua folk "naive". Sem acelerações a fundo, a canção vulnerável aperalta-se com o perfecionismo pop.

Se as portuguesas Golden Slumbers fossem estrelas pop mundiais, talvez já se estivessem a fazer filmes ou séries (encomendadas por somas astronómicas, negociadas ao detalhe com grandes operadoras de streaming) sobre o seu novo, I Love You, Crystal — um álbum que viveu de avanços e recuos, hesitações e convicções, canções feitas, refeitas e produzidas exaustivamente até que, de perto de 60, sobraram dez resistentes no alinhamento final.

O perfeccionismo na arte pode ser um trunfo e um valente problema em simultâneo: por um lado retardando a conclusão das criações, que no limite podem ser infinitamente transformadas e melhoradas, por outro apurando-as até um grau de sofisticação máximo. Também pode, como para as irmãs Catarina e Margarida Falcão — que formam o duo Golden Slumbers —, dar no seguinte: quatro anos de composição, seis anos de intervalo face ao disco anterior (The New Messiah), trabalho com cinco produtores diferentes e um caminho de demorada insistência para que este passo não fosse em falso.

I Love You, Crystal, o segundo álbum das Golden Slumbers, não teve, como um Yankee Hotel Foxtrot dos Wilco ou um Let It Be dos The Beatles, membros a entrar e sair, discussões capazes de pôr a banda em risco, personalidades obsessivas a impor-se nas gravações e a tentar assumir os comandos do grupo. Para já pode ser chamado, ainda assim, “o disco acidentado” das Golden Slumbers. Felizmente, lá está, o perfeccionismo também pode ser um trunfo: nunca as irmãs Falcão tinham escrito tão boas canções.

A capa do novo disco das Golden Slumbers, editado esta sexta-feira, 25 de março

Crescer a cantar e a partilhar canções com as “melhores amigas”

Quando começaram a fazer música, Catarina e Margarida Falcão, hoje respetivamente com 28 e 25 anos, eram duas adolescentes que gostavam de cantar em casa e que gostavam de ouvir canções. No limite era só isto. Mas ao mesmo tempo talvez não fosse apenas isso: “Em miúdas, estávamos sempre envolvidas em atividades musicais: estávamos num coro, tínhamos aulas de piano, depois tivemos aulas de guitarra… e cantávamos imenso”, relata Margarida.

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Este plural não inclui apenas Margarida e Catarina Falcão, que decidiram começar a cantar, escrever e compor juntas depois de Margarida ter descoberto na internet um projeto musical de três irmãs britânicas chamado The Staves. Inclui também outra irmã deste duo, Marta, que faz música a solo enquanto “Junno”.

Enquanto cresciam, as três Falcão habituaram-se a cantar em família: “Cantávamos imenso no carro. A minha mãe incentivava muito, o nosso pai também. Tivemos sempre a música muito presente”, conta Margarida, que em criança, quando lhe perguntavam o que queria ser quando fosse grande, costumava responder que “queria ser senhora da caixa e queria ser cantora: senhora da caixa porque achava que ganhávamos o dinheiro todo que os clientes davam”.

A paixão das duas, quando começaram a fazer música como Golden Slumbers, era a música folk, as canções vulneráveis, delicadas e suaves, cantadas à guitarra. Mas também as harmonias de voz e o pop-rock dos The Beatles, por exemplo, tanto que acabaram por resgatar ao título de uma canção do quarteto de Liverpool o nome para o duo.

"Quando mostras uma canção há uma espécie de resolução sobre aquilo que se escreveu e se está a cantar. É uma coisa bastante poderosa, até. Talvez seja uma das melhores formas de falar sobre um assunto mais íntimo porque há aí um concretizar, um fecho desse assunto pendente."
Catarina Falcão

Catarina Falcão ainda se lembra dos primeiros passos de Golden Slumbers: “Lembro-me perfeitamente de começarmos. Claro que a Margarida viu um concerto das The Staves e achou: isto é lindo, também quero. E falou comigo. Lembro-me que nessa altura estava super heartbroken [de coração partido] e a Margarida quase me forçou a escrever sobre isso”.

Escrever letras ou poemas sobre assuntos íntimos e emocionais — as paixonetas, os desgostos, a sensação de incompreensão do mundo — pode ser um refúgio individual para muitos adolescentes, algo que não se partilha com ninguém por constrangimento. No caso das irmãs Falcão, não foi bem assim. “Fomos sempre muito próximas e a partir dos 15 ou 16 anos ainda mais. Nunca me fez impressão mostrar as minhas canções à Catarina, nunca tive vergonha — também porque éramos muito musicais em casa, todas nós, e mostrámos sempre umas às outras o que andávamos a fazer, fosse uma cover ou um original”.

Complementa Margarida: “Elas eram as minhas melhores amigas, portanto acho que essa partilha era super natural. A vulnerabilidade também é uma coisa boa e, de alguma forma, quando mostras uma canção há uma espécie de resolução sobre aquilo que se escreveu e se está a cantar. É uma coisa bastante poderosa, até. Talvez seja uma das melhores formas de falar sobre um assunto mais íntimo porque há aí um concretizar, um fecho desse assunto pendente”.

O método 50/50: como as irmãs Falcão constroem as suas canções

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Algumas canções do novo disco foram escritas por uma, outras por outra, mas a ideia passa sempre por cada uma contribuir com algo: pode ser um verso, pode ser uma linha melódica, há sempre algo a acrescentar à canção. “A graça disto também é, pelo menos para nós, estarmos a compor juntas — é tudo muito partilhado, também por isso é que se calhar os temas deste álbum são o que são, porque são vivências e sentimentos que de alguma forma são partilhados”, conta Catarina Falcão. Acrescenta: “Servimos também como desbloqueadoras uma da outra, há momentos em que me é mais difícil escrever e a Margarida ajuda-me a desbloquear — e vice-versa”. Não há mais letras de uma do que de outra, “é mesmo 50/50”.

O primeiro EP (mini-álbum), I Found the Key, saiu há oito anos, em 2014 — e o primeiro álbum completo, The New Messiah, dois anos depois, em 2016. Rapidamente ganharam alguma notoriedade no indie nacional, sem que estivessem a contar com isso. “Apanhámos uma altura que era folky, em que o folk estava a ser mais ouvido”, recorda Margarida. Acrescenta a irmã: “Não conhecíamos ninguém. Quando digo ninguém, é mesmo ninguém. Não fazia ideia do que existia na cena musical portuguesa mais independente. Portanto, tivemos sorte. Ok, tínhamos canções, cantávamos bem, éramos duas miúdas e na altura não havia muitos projetos só de miúdas… mas não tínhamos qualquer expectativa”.

Apesar do primeiro EP e de terem entrado num disco de novos talentos da FANC, o primeiro álbum foi o momento que projetou as Golden Slumbers e que as colocou a dar concertos com mais regularidade. Chegaram a participar no Festival da Canção em 2017, um ano depois do lançamento do disco, interpretando uma canção composta por Samuel Úria (“Para Perto”). Mas daí para cá, passaram mais tempo ocupadas com projetos paralelos: Catarina Falcão com Monday, nome artístico com que edita as suas canções a solo, e Margarida Falcão com a banda Vaarwell.

Um disco mais expansivo, à procura de um “desenvolvimento harmónico e melódico”

Quando começaram a pensar neste novo disco, há quatro anos, as irmãs Margarida e Catarina Falcão tinham uma ideia mais clara sobre o som que queriam ter do que propriamente sobre os temas que queriam cantar. “Havia uma procura de uma sonoridade, havia uma ideia de busca de um desenvolvimento harmónico e melódico face aos trabalhos que tínhamos feito no passado”. Em sentido inverso, liricamente não houve “temas” pensados, foram “compondo um bocadinho o que vinha no coração”, queriam que as letras refletissem o que tinham vivido e estavam a viver mas sem imposições pré-definidas. Só mais tarde, dizem, aperceberam-se “que há uma narrativa bastante coesa”, construída quase inconscientemente.

Por outras palavras: até aqui as canções de Golden Slumbers eram mais descarnadas, mais despidas e mais reduzidas a um esqueleto essencial: guitarra (habitualmente acústica) e/ou piano, acordes simples e suaves e harmonias de vozes que cantam juntas. Canções “mais naive [ingénuas]”, dizem-nos. Desta vez, Catarina e Margarida Falcão queriam mudar e aperaltar as suas canções, apresentá-las com arranjos mais trabalhados, com mais camadas e elementos sonoros que permitissem criar um som mais “cheio”. Arriscamos nós: um som mais expansivo, a flirtar com a pop e a misturar momentos de maior quietude e acalmia folk com outros para pôr a tocar bem alto.

Nas palavras de Margarida, a ideia inicial “era um bocadinho vaga” e difícil de explicar por palavras mas estava lá: “Sabíamos o que queríamos mas não sabíamos bem como o materializar. O que sabíamos é que procurávamos um ambiente mais etéreo, um som mais moderno também — mas sem ir propriamente para a parte eletrónica da música”. E ainda: “Queríamos que a canção continuasse muito presente, que não deixasse de estar lá a nossa essência — que é as nossas vozes e a nossa forma de compor — mas tendo uma produção um bocadinho mais elaborada”.

O caminho foi algo tortuoso até dar frutos. Catarina Falcão assume: antes de começarem a trabalhar com Miguel Nicolau, músico que integrou a banda Memória de Peixe e que produziu por exemplo o primeiro disco de Bloom (alter-ego de JP Simões), as Golden Slumbers tentaram levar o disco a bom porto com quatro produtores diferentes. Sem sucesso: “As pessoas são todas fantásticas, mas estava a ser mesmo difícil sentir que as ideias que tínhamos se materializavam a 100%. Ainda não tínhamos um caminho fechado mas tentámos quatro abordagens com produtores diferentes e não estávamos a conseguir acertar”.

Há mais ou menos um ano e meio entrou em cena Miguel Nicolau. E aí tudo mudou, conta Catarina Falcão: “A primeira música em que ele pegou foi a ‘I Love You Crystal’ [que viria a ser single]. Quando nos mostrou, comecei a chorar de emoção, a pensar: yes!, é isto. Andávamos à procura de uma pessoa que conseguisse puxar para cima [as canções], materializar as nossas ideias de uma forma que permitisse embelezar tudo aquilo, dar coesão às canções…”. A partir desse momento, “desbloqueou-se muito facilmente” o impasse e “à medida que mostrávamos mais coisas, as ideias fluíam cada vez mais naturalmente”.

Uma das conquistas do trabalho conjunto das irmãs Falcão com Miguel Nicolau foi conseguir chegar a um disco com “várias texturas e dinâmicas”, contam, com “temas que podendo até ter letras mais sisudas, têm neles alguma leveza [sonora]”. Até porque um disco em que Catarina e Margarida cantam sobre amor, desamor, ser mulher e crescer num mundo com oportunidades desiguais já é suficientemente denso para sobrecarregar a melancolia (ainda assim, invariavelmente presente no disco, em alguns momentos) e a soturnidade.

Escrever com alguma profundidade sobre temas densos, ora sociais (papel da mulher e desigualdade de género) ora mais íntimos (as relações amorosas e de amizade) é um dos traços da maioria das canções das Golden Slumbers. Margarida Falcão, por exemplo, diz que tende a compor quando está “mais aflita ou com alguma coisa na cabeça” sobre a qual quer refletir ou que quer verter para canções. “Isto não é para dizer que não gosto de músicas mais ligeiras”, mas esse é o tipo de canções com que mais se identifica. Catarina acrescenta: “Tudo tem o seu espaço, também adoro músicas leves e faz-me bem ouvi-las para não estar sempre na nóia. Mas quando sentimos algo de forma muito intensa e emotiva e o conseguimos exprimir, é muito bom partilhá-lo”.

Se estas novas canções são menos “ingénuas” do que as anteriores de Golden Slumbers, quer sonicamente (pela maior complexidade dos arranjos e pelo crescimento que tiveram tecnicamente como instrumentistas na última meia dúzia de anos) quer liricamente, isso deve-se também à idade, à experiência de palcos e concertos e às aprendizagens que tiveram com os seus projetos paralelos, Monday (Catarina) e Vaarwell (Margarida), dizem.

Catarina Falcão resume: “Hoje conseguimos arriscar mais, fazer coisas um bocadinho mais pensadas e tecnicamente mais difíceis, ou pelo menos mais trabalhadas. Fomos crescendo, musicalmente e como pessoas. Temos hoje a segurança de sabermos o que queremos, de não termos receio de levar as nossas ideias avante, de arriscarmos. É por isso que este é um álbum completamente diferente, a meu ver muito mais interessante do que o anterior”. Complementa a irmã Margarida: “Estamos numa fase completamente distinta, sabemos muito melhor o que queremos. Lançámos ou compusemos o disco anterior com para aí 18 ou 19 anos, no meu caso, e com 20 ou 21 no caso da Catarina. Éramos muito novas, estávamos a descobrir o que queríamos. Agora estamos mais pré-definidas, musicalmente mais bem resolvidas”.

"Isto é a narração quase da nossa vida, ou de partes da nossa vida, e a vida não é constante, oscila. Quisemos que de alguma forma estas canções também transmitissem essas oscilações", dizem

Martim Braz Teixeira

Depois disto, virão os concertos. Para apresentar um disco com mais instrumentos, mais camadas e em muitos momentos mais elétrico, Margarida e Catarina vão precisar de ter mais gente a ajudar: neste momento vão ensaiando com uma banda e contam ter cinco pessoas em palco (as duas incluídas), com bateria, baixo, guitarras e teclas, por exemplo. “Full band“, dizem-nos. Dito de outra forma: também num sentido literal e em palco, as Golden Slumbers querem mostrar-nos que passaram os últimos anos a crescer. Enquanto não o mostram ao vivo, podemos confirmá-lo em disco.

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