É já uma tradição de final de ano. Nos primeiros dias de dezembro, as redes sociais enchem-se de publicações dando conta das preferências musicais dos seus utilizadores, com base em dados recolhidos ao longo dos doze meses anteriores pelo Spotify. Criada em 2016, a campanha de marketing Spotify Wrapped é um verdadeiro sucesso publicitário para a gigante do streaming de música, com milhões de utilizadores a aderirem anualmente ao convite para partilhar, comparar e discutir os seus gostos musicais com outros internautas – e promovendo gratuitamente a plataforma no processo.
Este ano, Taylor Swift foi a campeã incontestada do Spotify Wrapped. À boleia da regravação dos seus discos (editou este ano a “Taylor’s version” de Speak Now e 1989) e da altamente rentável e aclamada The Eras Tour, a cantora e superestrela da pop acumulou mais de 26 mil milhões de streams nas suas canções, ficando à frente de nomes como Bad Bunny, The Weeknd e Drake para se tornar na artista mais ouvida no Spotify em 2023, lucrando mais de 100 milhões de dólares (cerca de 92 milhões de euros) em royalties da plataforma.
Se estes números impressionam, a verdade é que, para muitos, representam uma exceção que confirma a regra. As queixas por parte de artistas e associações quanto à fraca compensação que recebem por parte da plataforma não são novas – a própria Taylor Swift, no passado, chegou mesmo a retirar o seu catálogo musical da plataforma, reagindo contra o que descreveu como “um modelo que não compensa de forma justa os letristas, produtores, artistas e criadores musicais”.
Em Portugal, Mike El-Nite foi um dos músicos que, em pleno Wrapped 2023, veio a público criticar as políticas da gigante do streaming. Numa série de publicações no Instagram, o rapper, produtor e DJ insurgiu-se contra as “regras do jogo” ditadas pelo Spotify no que à distribuição dos lucros na era digital diz respeito. “Estamos reféns destas plataformas”, disse, contactado pelo Observador.
A juntar a isto, a edição deste ano do Wrapped coincidiu com notícias que deram conta de uma ronda de despedimentos coletivos que viu o Spotify dispensar cerca de 17% da sua força laboral – mais de 1.500 trabalhadores no total. A medida foi explicada por Daniel Ek, fundador e dono da empresa, como uma tentativa de “alinhar o Spotify com os objetivos futuros e garantir que estamos adequadamente dimensionados para os desafios que se avizinham”, surgindo num contexto em que, apesar da sua preponderância no mercado do streaming digital, continua com dificuldades em registar lucros.
Com a empresa a tentar diversificar e expandir os seus negócios para áreas como os podcasts numa tentativa de se tornar lucrativa (ainda este ano foram anunciados aumentos aos preços das subscrições mensais), pairam questões acerca da viabilidade da economia do streaming e da sua capacidade de compensar adequadamente os músicos. Acima de tudo, numa era em que as vendas em formato físico são cada vez mais uma relíquia do passado, uma questão continua por responder: quanto vale a música na era digital?
Somando os cêntimos: quanto vale uma canção no Spotify?
O processo através do qual o Spotify determina quanto é que um artista recebe por cada reprodução da sua obra é mais complexo do que se pode pensar à primeira vista. De acordo com a plataforma, não há uma correlação direta de “valor por stream”; em vez disso, o modelo de pagamento tem por base um cálculo que contabiliza o número de streams no modelo de subscrição mensal e, com um peso menor, as reproduções no modelo gratuito com anúncios, bem como os streamshares dos detentores dos direitos comerciais das músicas.
De forma simplificada, o streamshare divide o número de vezes que a música de um determinado detentor de direitos foi reproduzida pelo número total de streams de um determinado país. O objetivo, diz o Spotify, é dividir o “bolo” de royalties de cada mercado nacional pelos respetivos detentores de direitos comerciais, consoante a dimensão de cada um nesses mercados.
Ainda que não seja possível determinar um número uniforme para o valor de cada stream individual na plataforma, existem aproximações e estimativas que podem ser feitas. Em média, em Portugal, cada reprodução de uma música corresponde a uma compensação entre os 0,0025€ (um quarto de cêntimo) e os 0,003€ — noutros países, este número aproximado pode ir até aos 0,005 € (meio cêntimo).
O valor em questão não é pago diretamente aos artistas, mas aos detentores dos direitos de exploração comercial das músicas — na maioria dos casos as editoras musicais. Em Portugal, as três majors (Warner Music, Sony Music e Universal Music) celebram com o Spotify contratos de licenciamento dos respetivos catálogos musicais. Além destas multinacionais, existe ainda um quarto player no mercado nacional: a Merlin Network, uma organização internacional que negoceia com as plataformas de streaming em nome das editoras independentes.
Com estes dados em mente, é possível fazer um exercício de cálculo (ainda que inevitavelmente impreciso), para tentar perceber o valor de uma música no Spotify. Olhando, por exemplo, para o tema Como Tu, de Bárbara Bandeira e Ivandro, que foi a canção mais ouvida em Portugal em 2023, constatamos que teve um total de 25,1 milhões de streams na plataforma. Ao multiplicarmos este número pelo valor-por-stream aproximado delineado acima, constatamos que a WarnerMusic terá recebido cerca de 70 mil euros da parte do Spotify. Já uma música como Preço Certo, de Pedro Mafama com os seus 8,6 milhões de streams, terá rendido cerca de 25 mil euros à detentora dos direitos, a Sony Music.
É de frisar, contudo, que estes números oferecem apenas aproximações. Variáveis como a distribuição do número de streams por país (o Spotify não disponibiliza estas informações) e especificidades nos contratos de licenciamento com as diferentes detentoras de direitos fazem com que seja impossível determinar valores concretos — nem sequer entrando nas diferenças no pagamento entre as diferentes plataformas de streaming, como TIDAL ou Apple Music, onde os valores-por-stream são altamente variáveis:
Esta tabela do site Headphonesty permite comparar os valores aproximados que cada stream vale por plataforma digital. Valor aproximado que o Spotify paga é dos mais reduzidos; Apple Music é das plataformas que paga mais.
O “bolo” de royalties digitais é depois repartido entre três intervenientes: as plataformas, as editoras/detentoras de direitos e os artistas. Também aqui é impossível determinar valores exatos, já que estes estão dependentes das condições negociadas entre os artistas e as respetivas editoras. Em termos percentuais, sabe-se que o Spotify fica com cerca de 30 a 33% da receita gerada; entre 52 e 60% vai para para o detentor dos direitos comerciais; em geral, a maioria dos artistas ficam com um valor que oscila entre os 10 e os 15%.
Um mundo de possibilidades para as editoras ou um sistema que exclui os artistas? As opiniões do meio musical
O impacto que as plataformas de streaming tiveram na indústria musical é inegável. Desde alterarem os métodos de distribuição musical e erodir de forma irreversível as vendas em formato físico, a mudarem os hábitos de consumo da população e as próprias lógicas de como se produz música, não é exagero dizer que o ecossistema musical é atualmente muito diferente daquilo que já foi.
No entanto, nem todos olham para estas mudanças como sendo positivas. As queixas vêm sobretudo do meio artístico, que há já muito tempo se manifesta contra o que diz ser a baixa percentagem de royalties que os músicos recebem pela sua participação na “economia do streaming” e que, dizem, está muito longe dos valores que recebiam na era do físico.
“O Carlos do Carmo costumava dizer-me: ‘no tempo do vinil, recebia uma página A4 para receber 700 contos [3500 euros]. Agora recebo 25 páginas cheias de números para receber 25 euros’”, ironiza Pedro Wallenstein, presidente da cooperativa para a Gestão dos Direitos dos Artistas (GDA). Questionado acerca do sentimento que encontra junto do meio musical, no que toca às regras atualmente impostas pelas plataformas, o também músico fala numa “resignação” generalizada:
Há quatro ou cinco artistas que retiram qualquer coisa dali – ainda agora a Taylor Swift bateu mais um recorde – mas para o resto sobram migalhas. Do lado da GDA temos sido sempre muito críticos em relação a este modelo, mas é a forma como as coisas estão”, diz.
A mesma ideia foi deixada por Mike El-Nite. “O streaming e os royalties são meramente um complemento, a menos que sejamos um artista com uma dimensão gigante. Mas um artista que não tenha essa dimensão não consegue viver só dos streams”, explicou o músico e produtor. Desafiado a fazer uma estimativa sobre quanto do seu rendimento provém de plataformas como o Spotify, aponta uma percentagem: “Talvez 10, 20%. Se calhar nem tanto”.
A função destas plataformas, explicam, é sobretudo promocional, como forma de expor o trabalho dos artistas ao público e convencê-lo a pagar dinheiro por aquilo que realmente sustenta o meio: os espetáculos ao vivo. “Onde se ganha dinheiro é nos espetáculos. O streaming é sobretudo um fator promocional – é preciso gravar e ter as coisas nas plataformas para que as pessoas as ouçam”, explica Pedro Wallenstein.
Já as editoras e detentoras dos direitos comerciais têm uma visão um pouco diferente. Ao Observador, Miguel Carretas, diretor da Audiogest – Associação para a Gestão e Distribuição de Direitos, que representa várias das principais editoras musicais portuguesas, defende que a nova realidade só veio trazer benefícios aos músicos, abrindo-lhes portas que, de outro modo, estariam fechadas.
“Um artista tem hoje mais opções do que nunca para explorar o seu reportório musical”, diz, elencando como principais vantagens as várias opções contratuais à disposição dos músicos para licenciar o seu catálogo, bem como um sistema que elimina obstáculos e encoraja a criação musical. “As barreiras de entrada são quase inexistentes, o que faz com que tenhamos muito mais artistas e músicas a serem editadas.”
Os números atestam a veracidade deste último ponto. No Reino Unido, um relatório de novembro de 2022 da Competition and Markets Authority concluiu que, naquele país, o número de artistas registados nas plataformas digitais aumentou em 100% num período de apenas seis anos (de 200 mil em 2014 para 400 mil em 2020). O que não quer dizer que todos saiam a ganhar.
O mesmo relatório mostra que a democratização da produção musical não significa uma distribuição mais equitativa das receitas, já que no período acima referido o top 1% dos maiores artistas foi responsável por quase 80% de todas os streams digitais, e o top 10% por 98%. Uma realidade que, diz Carretas, tem meramente que ver com os limites humanos do consumo musical. “O dia continua a ter 24 horas. O utilizador do Spotify não vai ouvir mais música porque há mais música disponível. (…) Há menos músicos a faturar em proporção, mas é porque as coisas estão mais abertas, não menos”.
Em Portugal, as opiniões dividem-se quando o assunto é descobrir novos caminhos que resultem em mais receitas para os artistas. De acordo com Pedro Wallenstein, o meio está sobretudo apostado em expandir o mercado dos espetáculos. No que ao streaming diz respeito, Miguel Carretas diz que o principal desafio passa por conseguir aumentar o número de assinaturas pagas do Spotify, que no território nacional estão a um terço da média europeia. “Em Portugal, cada stream de um assinante do Spotify vale em média 6 vezes mais do que um stream no modelo gratuito com anúncios. Há uma margem de progressão enorme nesta área”, justifica.
O braço-de-ferro entre as realidades económicas da indústria e a luta dos artistas para serem compensados de forma justa pelo seu trabalho não tem passado despercebido aos olhos da legislação. Em 2019, a União Europeia aprovou a Diretiva do Mercado Único Digital (MUD), uma proposta que teve como objetivo salvaguardar os interesses dos artistas e estabelecer normas sobre o exercício dos direitos comerciais e de autor nos mercados digitais – não só na música como no audiovisual, literatura, imprensa ou redes sociais.
Em Portugal, a transposição da diretiva foi sofrendo sucessivos atrasos, levando inclusive Bruxelas a mover um processo contra o Estado português devido ao falhanço em cumprir com o prazo-limite. Finalmente, em junho de 2023, a diretiva MUD foi transposta para a lei portuguesa, mas a maneira como foi implementada ficou aquém do desejável para alguns setores.
“No formato atual, a diretiva foi transposta nos mínimos exigíveis, não veio resolver nenhum problema”, lamentou Pedro Wallenstein. Para o diretor da GDA, que nos últimos anos tem vindo a defender a necessidade de um modelo de gestão coletiva dos direitos musicais, a lei atualmente em vigor continua a favorecer em demasia os interesses das plataformas e das editoras. “Há muita gente que continua excluída”, diz.
Miguel Carretas, por seu turno, não poupou nas críticas à posição da GDA, descrevendo a proposta de gestão coletiva como um “desvio isolacionista” que faria com que as plataformas digitais abandonassem o país. “Podem impor as condições que quiserem a um operador que atue em Portugal – só não lhe podem impor uma coisa: é que atue em Portugal”, ironizou.
Ainda que admitindo que a diretiva MUD tem limitações e que “há um caminho a percorrer por parte da indústria e dos artistas”, o diretor da Audiogest defendeu que esta pode ser adaptada à realidade portuguesa, apontado como exemplos os modelos de negociação coletiva implementados em países como a Bélgica e a Alemanha. “Não podemos partir logo do princípio que isto não é solução. Pode ser. A própria diretiva diz nos seus considerandos que podem ser pensadas soluções mercado a mercado e setor a setor”, afirmou.
A política dos mil streams — uma medida de combate ao “lixo” sonoro e uma preocupação do setor independente
Se a relação entre artistas musicais e plataformas de streaming já não tem sido fácil, 2024 promete trazer alterações ao equilíbrio de forças, cujas consequências são difíceis de prever. Recentemente, o Spotify anunciou uma nova política de pagamento de royalties, numa decisão que tem gerado bastante polémica.
As novas regras da plataforma, em vigor a partir de 1 de janeiro de 2024, estipulam que cada faixa terá de alcançar um número mínimo de mil streams antes de poder ser elegível para receber compensação monetária – caso contrário, não recebe nada. O valor que até aqui tinha como destino estas faixas passará a ser adicionado ao “bolo” de royalties a ser distribuído pelas músicas que fiquem acima do número mínimo de streams.
De acordo com a empresa sueca, esta alteração tem por base dois fatores: por um lado, quer garantir que os royalties (mil streams equivalem a cerca de 3 euros), chegam efetivamente aos artistas e não são desperdiçados em taxas bancárias e “montantes mínimos” que, por norma, são exigidos pelos distribuidores para efetuar pagamentos. Por outro, é uma forma de combater aquilo que a empresa define como “streaming artificial” — ruído e sons fraudulentos criados para desviar parte da receita gerada.
O anúncio desta medida veio causar uma série de preocupações junto dos artistas, nomeadamente no setor independente, sobre o que a implementação de um valor mínimo de streams podia significar para músicos de nicho, alternativos ou em início de carreira. Preocupações que obtiveram uma resposta bastante direta da parte de Lucian Grainge, CEO da Universal Music Group e defensor de um modelo semelhante ao que o Spotify acabou por anunciar:
As únicas pessoas que estão preocupadas com o modelo artist-centric são aquelas cujo negócio assenta em serem vendedores de lixo. Peço desculpa, mas não encontro outra descrição para conteúdo que ninguém quer ouvir”, disse.
Entre estes “vendedores” contam-se várias associações de independentes, como a europeia Impala e a Association of Independent Music (AIM) do Reino Unido, que levantaram preocupações relacionadas com a nova política.
Também em Portugal, o setor independente tem demonstrado alguma apreensão. Ao Observador, Nuno Saraiva, presidente da Associação de Músicos, Artistas e Editoras Independentes (AMAEI), apontou falhas ao novo modelo que, diz, não leva em consideração as características específicas de mercados como o português. “Essa matemática não pode ser igual para todos os mercados. Tem de ter em conta a dimensão do país e o quão fácil é chegar a esses mil streams consoante a população e o número de ouvintes do Spotify. Provavelmente é mais fácil no Brasil ou nos EUA do que em Portugal”.
O Spotify garante que “99,5% do que é transmitido na plataforma não só continuará a ser elegível para monetização, como receberá mais”, num valor acumulado de pagamentos que, estima a empresa, deverá chegar aos mil milhões de dólares em todo o mundo nos próximos cinco anos.
Essa realidade, insiste Saraiva, não é igual de país para país, e pode vir a ter efeitos prejudiciais entre os artistas portugueses – tudo, no seu entender, para engrossar as receitas dos que já recebem mais. “Estar a prejudicar os artistas portugueses que estejam em fase de construção da carreira, e não pagar a faixas que têm 999 streams por ano em prol de pagar aos Rolling Stones é um pensamento que nós, no setor independente, não podemos aceitar”, defende.
“Percebo a motivação, mas estamos a falar de uma empresa gigante. Porquê tirar daí, dos que recebem menos, se pode tirar de mais lados? É uma questão de ganância”, diz Mike El-Nite, reforçando as críticas ao que descreve como “um monopólio da produção musical”, cuja nova política “só revela a falta de vontade em partilhar o bolo.”
Para os independentes, a delicadeza da situação poderia ser resolvida de outras formas, nomeadamente com modelos alternativos. No Reino Unido, a AIM apresentou em 2021 o que chamou de “Artist Growth Model”, um modelo que prevê uma distribuição mais equilibrada dos royalties por todos os artistas, e que é defendido pelo presidente da AMAEI. “Porque é que não tiramos 1% do rendimento das faixas de topo para fortalecer a curva média?”, questiona Nuno Saraiva. “Os artistas de topo não vão sentir qualquer falta desse valor, que pode ser usado para beneficiar a diversidade e o crescimento da indústria desenvolvendo novos talentos”.
A questão, já se percebeu, passa por salvaguardar a viabilidade da criação musical na era digital. Numa altura em que o Spotify vai anunciando aumentos ao preço das assinaturas e rondas de despedimentos coletivos, numa tentativa de tornar rentável o seu modelo de negócio, questões continuam a ser feitas quanto à viabilidade desta economia digital-musical. “Confesso que fiquei muito surpreendido com essas notícias”, disse Pedro Wallenstein. “Quando vemos os jornais, os números são tão grandes, vemos o Spotify a comprar catálogos por balúrdios… não percebo o que é que está a acontecer.”