Israel não está na Web Summit este ano, mas os cartazes com letras vermelhas e a palavra “kidnapped” (raptado) colados nos bancos da avenida que ladeia o recinto do evento, no Parque das Nações, tornam o país, e toda a polémica que marcou as semanas antes do evento, bem presente. Os rostos sorridentes contrastam com a mensagem. São os cartazes que estão a ser partilhados internacionalmente, onde figura a descrição dos 200 reféns do Hamas.
Gabriele Kahlou, responsável pelo desenvolvimento de audiências da Al Jazeera, também reparou nas imagens. Veio pela primeira vez à Web Summit, mas tem pendurada na mochila uma afirmação política: um keffiyeh, o conhecido lenço branco e preto, um símbolo de apoio à Palestina. “Acho que ninguém quer [que os cartazes] ali estejam, ao mesmo tempo estão a ser usados para causar muito mais dano”, lamenta. “O nosso papel enquanto pessoas dos media, jornalistas, é mostrar os dois lados e também não equiparar os dois. Todas as vidas humanas são valiosas”, frisa.
Inevitavelmente, Kahlou acompanhou as notícias ligadas à Web Summit ao longo do último mês. Confessa que já esperava a reação à publicação de Paddy Cosgrave sobre o conflito no Médio Oriente, que disse que os “crimes de guerra são crimes de guerra, mesmo quando cometidos por aliados”. “É algo já comum no mundo tecnológico e no mundo dos negócios”, diz ao Observador. Em reação às declarações do fundador do evento, Israel decidiu não participar na Web Summit. Instalou-se um boicote e grandes empresas do mundo tecnológico, como a Google, Meta ou a Amazon, retiraram a participação, assim como alguns investidores e incubadoras. A lista de oradores também sofreu várias alterações. Alguns dos principais não quiseram associar-se ao evento.
A visita de Gabriele Kahlou à Web Summit lisboeta é feita como que para medir o pulso antes da primeira edição do evento no Qatar. Sem termo de comparação em relação aos tempos de Cosgrave no palco principal, esteve atento às declarações de Katherine Maher, a nova CEO. A norte-americana falou sobre o antecessor. “Acho que ela tinha mesmo de falar – não digo fazer o que Paddy Cosgrave fazia, se não obviamente não estaria ali – mas usar uma linguagem que apaziguasse os parceiros e as pessoas que estão no evento. Fez o que podia.”
Dentro do recinto da Web Summit não há cartazes com os reféns do Hamas. Mas, mesmo assim, Kahlou considera que o assunto “está presente, mesmo que esteja fora do radar.”
Houve mais participantes a reparar nos cartazes. “Seria leviano não perceber que algo está a mudar. É impossível não saber o que está a acontecer”, dizem ao Observador Alex Alonso e Marcos Santos, que vieram de Brasília para participar pela primeira vez na Web Summit portuguesa. No banco de jardim onde estão sentados, perto de um dos vulcões do Parque das Nações, não há cartazes, mas garantem que já se cruzaram com vários. “Há imagens de pessoas raptadas nos bancos, nas paredes. Tem impacto”, reconhece Alex Alonso.
Aos olhos de vários participantes, a turbulência não deverá ser suficiente para ameaçar a sobrevivência da cimeira de startups e tecnologia. Orcun Ulgen, da startup turca Lugath, não sentiu as expectativas abaladas pela controvérsia. “Há muitos investidores de diferentes países e já tinha marcado conversas com alguns”, explica, desviando os olhos do smartphone. Tem um objetivo claro nesta vinda a Portugal: estabelecer contacto com investidores, numa altura em que está à procura de conseguir uma ronda “seed” para a sua startup de automatização. “Já marquei algumas reuniões antes do evento e ainda estou a tentar marcar mais. Para mim está tudo bem.”
É o primeiro ano em que vem a Lisboa para a Web Summit. Ulgen não conhece Carlos Moedas, o autarca de Lisboa, mas quase que decalca as palavras do português para desdramatizar a questão. “É um evento de tecnologia e não devia haver comentários sobre a questão [conflito do Médio Oriente], precisamos de falar sobre tecnologia.” Na primeira reação ao tema, em outubro, Moedas disse que a cimeira é um evento de “inovação e tecnologia” e não de “política e geopolítica”.
E estar num evento onde há menos pesos-pesados dos investimentos – a Sequoia Capital cancelou a participação, por exemplo – muda alguma coisa? “Algumas empresas decidiram não vir, mas acho que não está a afetar a reputação da Web Summit, porque a maioria dos participantes são startups e investidores.” Porém, reconhece que “se as gigantes cá estiverem, haverá muitas oportunidades para as startups”. Ainda assim, não são inalcançáveis, considera. “É um mundo global, que está online, podemos contactá-los através de outros canais, o LinkedIn, etc. Claro que falar cara a cara com investidores é melhor, mas as startups encontram sempre uma forma de ultrapassar obstáculos.”
Repensar a vinda à Web Summit nem sequer passou pelas cabeças de Vanja Vukovic e Filip Zic, respetivamente diretor tecnológico e CEO da Notus, uma empresa croata de software especializada na criação de páginas web e app personalizadas para outras empresas. Ainda antes de entrarem no recinto, explicam que nesta primeira vinda à Web Summit estão interessados em assegurar reuniões com outros players da indústria. O primeiro dia de evento ainda nem tinha começado e já tinham fechado uma dezena de reuniões. “Vimos para ver outras pessoas, conhecer clientes. Já tínhamos pensado em vir, mas o fluxo de trabalho tem adiado a questão”, explica Vukovic.
Entre os participantes portugueses, não há expectativas de grandes alterações no evento. Para Henrique Rocha, Antero Santos e Duarte Oliveira, da startup de ed-tech Intuitivo, que digitalizou as provas de aferição em Portugal, o sentimento é de que a dinâmica do evento e os objetivos dos participantes “não vão mudar muito”. Ter uma Web Summit sem grandes tecnológicas não lhes gera apreensão. “Não me surpreende”, diz Henrique Rocha, “acho que é o mundo super polarizado em que vivemos”. “Não estamos à procura de big tech, estamos a ver outros parceiros”, completa Duarte Oliveira.
Dança de oradores gera conversa, mas evento é mais do que conferências
A contagem decrescente para o arranque de mais uma Web Summit foi sendo pontuada por desistências de oradores – algumas assumidamente devido ao boicote de Israel, outras mais discretas e com menos justificações.
Veljko Silmilr, um programador sérvio que ocupou um dos primeiros lugares na fila de segunda-feira, aguardando quase 40 minutos antes da abertura de portas, para ter a certeza que conseguia garantir um lugar no Altice Arena, lamenta pelo menos uma ausência – a da Amazon Web Services (AWS). “Era o meu palco favorito, o melhor para quem está na área da programação. Este ano fiquei um pouco triste”, confessa. É a quarta vez que vem a Lisboa para o evento. “Para ser honesto, nem sequer pensei nisso”, diz quando questionado sobre se repensou a vinda a Portugal devido às mudanças de oradores.
Entre Suzana Leonardi, gestora da inovação na Viatecla, e a amiga Michele Capiotti, consultora, discutia-se justamente a lista de oradores. Capiotti, brasileira que vive há um ano em Portugal, veio pela primeira vez ao evento e confessa que não tinha ainda feito a agenda para dar pela diferença na lista de oradores. Leonardi, mais experiente, confessa que nota muitas diferenças na Web Summit a nível de temas. E especificamente sobre as alterações das últimas semanas? “Acho que até abre espaço para o que é novo. Há muita coisa para ver.”
“Definitivamente não estou aqui só pelas conferências”, diz Iya Kalomentsava, bielorrussa que vive há dois anos na Polónia. É a CEO de uma empresa de organização de eventos, a Mara Studio. Prefere olhar para o evento como “um encontro, um ajuntamento de pessoas”. Ainda assim, consegue perceber que “há quem venha pelos oradores, outros para networking, para se conheceram ou para gerar vendas.” Não se sentiu melindrada com a “mudança de oradores”, mas sim com a “razão para a mudança”.
E a crise política em Portugal? “Não dá boa imagem…”
“Mas ele ainda vem para o fecho, não é”, comenta Suzana Leonardi, ainda na fila para entrar no recinto, a algumas centenas de metros do pórtico principal. O pronome é usado para se referir ao primeiro-ministro, António Costa. O palpite sai ao lado. Quem foi à abertura da Web Summit não viu António Costa, mas sim António Costa Silva, o ministro da Economia. E será o mesmo governante que verá no encerramento.
Ao Observador, a gestora da inovação brasileira que vive em Almada, mostra-se atenta à política nacional, mas acredita que o desfile mais comedido de figuras políticas este ano não deverá ser fraturante. “Acho que não vai afetar muito, foi muito em cima.”
Mas há quem tenha uma visão diferente. Teresa José, fundadora da Do It Clever, comprou bilhete para a Web Summit em março. “A crise política pode não ter tanta consequência aqui”, diz, mas considera que “dá má imagem de Portugal”. É a primeira vez que vê o evento de dentro: em edições anteriores, só tinha a perceção das multidões que passavam pelo Parque das Nações. “Acho que está menos gente.” Os números revelados pela organização apontam para 70.236 pessoas, ligeiramente abaixo dos 71.033 participantes de há um ano. Percorrer os corredores da FIL continua a ser uma corrida de obstáculos e encontrões.
Laurentina Gomes faz companhia a Teresa José. É uma “veterana” do evento em Lisboa, vem desde 2016. Na sua visão, as mudanças a nível político não parecem “ter um impacto direto”. “Foi muito em cima da hora.”
Mas ao longo dos últimos anos foi notando diferenças na Web Summit. “Precisa de um boost, mesmo a nível de experiência. Tudo o que não inova deixa de ter visitantes novos.”