[Este texto foi publicado originalmente a 30 de junho de 2016. Esta sexta-feira, o Ministério Público acusou cinco médicos do Hospital Padre Américo, em Penafiel, de não terem feito tudo o que podiam para salvar a vida de Sara.]
Até aos 16 anos, Sara Daniela Moreira “vendia saúde”. E mesmo depois, com os problemas causados pelo tumor que nenhum médico descobriu, como as dores de cabeça fortes, a jovem “nunca perdeu a alegria de viver”, lembram os pais. Adorava comer, e isso era um prazer para Mário e Maria de Fátima Moreira. Mesmo quando ela se queixava, a brincar, que tinha menos carne do que os outros elementos sentados à mesa e, com isso, ganhava uma dose extra. “Quando se aproximava do portão eu já sabia que era ela. Enchia-nos a casa de alegria, trazia-me sempre novidades”, diz a mãe ao Observador.
Levantava-se sempre muito cedo, às 06h30 já andava a pé. “Abria tudo, punha o rádio a tocar. Eu às vezes até lhe ralhava: ‘Ó Sara Daniela, olha os vizinhos!'”, recorda, ao mesmo tempo que sorri com os olhos azuis-claros como água. No dia em que ela faleceu, estranharam não a verem a pé, mas nunca lhes passou pela cabeça o motivo. “Quando ela morreu, a nossa freguesia parou”, recorda. Foi há três anos. Ali, junto ao rio Sousa, na freguesia de Recarei, toda a gente se conhece e Sara era querida pelos vizinhos, com quem gostava de falar frequentemente. “Um vizinho que tinha uma casa de motas ali em baixo dizia-me: ‘Ó Mário, tu tens uma filha que é um espetáculo!”
Sonhava ser educadora de infância. “Tinha uma paixão… Dizia também que era para ajudar o mano”, recorda Maria de Fátima. “E também queria ajudar os pais”, completa Mário. “Perdemos o pilar da nossa casa. Era ela que no dia de amanhã ia ajudar o nosso filho”. Depois de 43 anos de descontos, os últimos dos quais a trabalhar numa fábrica de madeiras local, Mário Moreira perdeu o emprego em 2010 e não mais conseguiu arranjar sustento. Como ainda não tem idade para receber a reforma, conta com o Rendimento Social de Inserção (RSI). Maria de Fátima é doméstica. Precisa de ficar em casa a cuidar do filho que lhe resta, Ricardo, 12 anos, autista. Somando o RSI e os abonos de Ricardo, a família vive com pouco mais de 400 euros por mês.
A miúda sorridente que nasceu e cresceu em Recarei frequentava o último ano do Curso Profissional de Apoio à Infância. Já tinha feito um estágio em Paredes, que serviu para ter ainda mais certezas de que um futuro feliz teria de ser perto dos mais pequenos. Por isso, esforçava-se para estudar, mesmo quando a cabeça parecia querer explodir. Faltavam poucos meses para receber o diploma, procurar trabalho na área e ajudar no orçamento familiar.
“Ela dizia que o pai era o ídolo dela”, diz Maria de Fátima, enquanto vai buscar o álbum de fotografias. São todas de datas especiais: o batizado, a primeira comunhão, fotografias feitas pela escola, a comunhão solene. Não há máquina fotográfica em casa, pelo que quase não há imagens recentes da jovem, tirando a foto tipo passe que o pai levou para o quarto e que mostra aos jornalistas.
Nunca houve luxos e Sara vivia bem com isso, entre a humildade e a vaidade típica das raparigas. “Quando fez a segunda comunhão, ela não queria que eu gastasse muito dinheiro num vestido, então mandei fazer uma túnica simples e umas calças, como ela pediu. Para calçar, quis umas sabrinas. Era muito decidida, sabia bem o que queria.” E estava sempre a sorrir, dizem as fotos e dizem os pais. “Ainda era menina para reconfortar as pessoas. Era uma pobre alegre”, resumem.
No dia 1 de janeiro de 2013, depois de dar as boas-vindas ao Ano Novo com os pais, Sara Moreira desmaiou na casa térrea que é propriedade da avó e onde a família sempre viveu. Quando recuperou a consciência, não se lembrava do que tinha acontecido, mas não ficou surpreendida. Há três anos que era assim. Como nem o pai nem a mãe têm carro, um tio foi buscá-la a casa, em Recarei, e levou-a ao Serviço de Atendimento a Situações Urgentes (SASU) do Centro de Saúde de Paredes. A médica de serviço mandou-a de urgência para o Hospital Padre Américo, em Penafiel, acompanhada por uma carta, onde se podia ler que Sara teve perda de consciência e apresentava dores na cervical. Ao entrar, atribuíram-lhe a pulseira verde, de pouca urgência. Sairia às 22h00, com o diagnóstico habitual: “Estado de ansiedade”.
Uma semana mais tarde, a 8 de janeiro, a jovem sentiu-se mal na escola, a Secundária de Paredes. Na urgência do Hospital Padre Américo receitaram-lhe Valdispert e Fluoxetina, o primeiro usado para aliviar a tensão nervosa e para dormir, o segundo um medicamento antidepressivo. Porque o diagnóstico foi, uma vez mais, “estado de ansiedade”.
Menos de 24 horas depois, Sara voltou a sentir-se mal nas aulas e a escola chamou o INEM. Só que, desta vez, recusou ser encaminhada para a urgência. Por ser maior de idade, assinou o termo de responsabilidade e preferiu ir para casa. “No hospital não me levam a sério”, lamentou em frente aos colegas. Na manhã seguinte, uma professora ligou aos pais para saber se Sara estaria melhor, já que não tinha ido às aulas. Tinha tentado o telefone da aluna várias vezes, mas ela não atendia. Talvez estivesse no modo silencioso, pensaram. “Eu estava ali fora com um colega, entro no quarto para lhe dar o telemóvel, vejo a televisão ligada e a minha filha caída no chão, morta.” A mãe completa as peças do puzzle que ninguém quer montar. “Gritei à minha irmã para me ir buscar uma bacia com água, para lhe molharmos a cara, os braços e as pernas, como costumávamos fazer quando ela desmaiava.” Nada. Quando o INEM chegou, tentou reanimá-la. Sem sucesso. Tinha 19 anos. Sete meses mais tarde, a autópsia revelou que Sara tinha um tumor na cabeça com 1,670 quilos.
“Passei a foto dela para o quarto. Assim ela está sempre comigo”, diz ao Observador o pai, Mário Moreira, enquanto a mãe, Maria de Fátima, nos mostra o caminho para o quarto de Sara. “Foi aqui que ela morreu”, anuncia, à entrada. No hall há uma foto da menina em bebé, com os cabelos loiros aos cachos. Na parede há uma imagem de Jesus, outra de Nossa Senhora de Fátima, e um terço. Na cómoda, ao lado de vários peluches, está outro terço e uma Bíblia que a jovem ganhou quando fez a comunhão solene. A colcha da cama é de rapaz, porque os pais querem que Ricardo, o único filho que lhes resta, durma ali. No início não foi fácil para o menino, que sofre de autismo. “Só chorava, dizia que ainda a via na cama, a chorar de dores”, recorda a mãe, que tenta explicar-lhe: “A mana foi para o céu, ela está bem”.
Maria de Fátima tinha acabado de chegar do cemitério quando nos abriu o portão de casa — “vou lá todos os dias.” A família não queria abrir, nem o portão, nem a intimidade da perda que sofreram. Mas há demasiado tempo que aguardam um desfecho para o inquérito-crime que o Ministério Público abriu. Em abril deste ano, as advogadas do caso partiram para o processo cível, contra o Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa, ao qual pertence o Hospital Padre Américo. Reclamam danos morais e patrimoniais (preferem não dizer qual o valor envolvido). As advogadas pegaram no caso em 2014 e, dada a situação precária da família, só vão ser remuneradas no final do processo, caso haja indemnização.
Esta terça-feira, os pais contaram a história ao Jornal de Notícias e puseram metade do país a discutir o caso. No próprio dia, o ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, revelou que, quando teve conhecimento pela comunicação social, pediu à Inspeção-Geral das Atividades em Saúde que iniciassem um processo de esclarecimento. Também o bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva, anunciou a instauração de um processo disciplinar a alguns dos sete médicos que atenderam Sara Moreira. “Obviamente que houve alguma coisa que não correu bem”, disse, considerando que foi um erro não usar meios de diagnósticos como a TAC e a ressonância magnética, como precaução.
“Quero que o que me aconteceu não se repita na casa de ninguém”
Não foi pelo dinheiro que Mário e Maria de Fátima entraram nesta batalha. “Quando soube fiquei com muita raiva. Eles foram uns incompetentes, uns irresponsáveis”, diz Maria de Fátima, a voz a subir de tom. “Podiam ter salvado a minha filha e não o fizeram, sinto-me revoltada. Não os perdoo!”. Mário pede-lhe calma. “Tens razão, mas não adianta nada ficares assim enervada.” “É para o país saber o que eu passei naquele hospital”, justifica a mulher. “Eu não a vou trazer de volta, mas quero que o que me aconteceu não se repita na casa de ninguém.” Sara nunca chegou a ter um namorado, dizem os pais. Nunca a proibiram, apenas lhe diziam para “ter juízo”. Tanta coisa que Sara nunca chegou a viver. “Queremos justiça”, completa o homem.
Entre 12 de fevereiro de 2010 e 9 de janeiro de 2013, a jovem foi 11 vezes ao Hospital de Penafiel, com o ano de 2012 a ser o pior. Com 16 anos já tinha sintomas de vómitos, tonturas e perdas de urina. Por quatro vezes foi atendida pelo mesmo médico, três vezes por outro clínico. Apesar dos sintomas serem recorrentes — dores de cabeça muito fortes, dores na cervical, perdas de consciência e desequilíbrios constantes, Sara nunca chegou a ser encaminhada para neurologia, nem nenhum médico viu motivos para lhe fazer uma TAC (tomografia axial computorizada) ou uma ressonância magnética. Uma vez fizeram-lhe um teste de gravidez. Noutra, a jovem desmaiou em frente ao médico e este declarou-lhe sintomas de histeria de conversão. Mas quase sempre o diagnóstico era stress e ansiedade, por causa dos estudos. Das vezes em que foi ao centro de saúde com as mesmas queixas, nem a médica de família, nem os médicos de serviço na ausência desta, lhe passaram exames para fazer.
Sara preocupava-se com os estudos, é certo. Insistia com os pais que tinha de ir às aulas, mesmo depois das idas ao hospital. Mas não era uma pessoa ansiosa. Nas últimas idas ao hospital, os pais insistiam que não podia ser ansiedade. Que tantos desmaios não eram normais. Em zonas mais pequenas e rurais, a figura do médico é quase lei e, no fim, o diagnóstico era para confiar. Por isso também não a levaram a outro hospital. “A maioria dos desmaios acontecia na escola e o INEM levava-a para lá. E depois do soro que lhe davam, ela até parecia que vinha melhor”, justifica o pai, 57 anos, rosto envelhecido. Levar a um privado nem lhes passava pela cabeça. Não há dinheiro. “Eu até me sinto mal, por às vezes lhe ter dito: ‘Ó filha, já tens 19 anos!’, ela a gemer, e eu a achar que era aquilo da ansiedade…” A filha não confiava. Sabia que tinha de haver algo mais.
Como voltar a confiar no hospital?
A bandeira de Portugal mantém-se hasteada à entrada de casa da família, apesar de Mário e Maria de Fátima perguntarem, volta e meia: “Como é possível?”. Ainda não se sabe como é que um caso assim aconteceu no país. Quando a jovem morreu, o Ministério Público pediu uma autópsia, como é habitual nestes casos, e o resultado revelou um tumor com 1,670 quilogramas alojado na cabeça. O médico legista declarou, como causa da morte, um astrocitoma (tumor no cérebro) de grau III, na escala da OMS. O índice mitótico foi declarado baixo, o que significa que a reprodução de células cancerígenas foi lenta. Mas prolongou-se no tempo.
Em 2013, o armador da funerária, conhecido da freguesia, amparava as perguntas dos pais, que queriam saber por que razão a filha tinha morrido. Sete meses depois, arranjou-lhes uma cópia da Medicina Legal e aconselhou-os a procurar um advogado. A sociedade Filomena Pereira e Cristina Gomes da Silva chegou-se à frente.
Ao Observador, a Procuradoria-Geral da República confirmou “a existência de um inquérito, o qual se encontra pendente a aguardar o parecer do Instituto Nacional de Medicina Legal. Tal parecer foi solicitado em dezembro de 2014.” Há ano e meio, portanto. O Instituto confirma que “o processo a que se refere aguarda parecer. A próxima reunião do Conselho Médico-Legal realiza-se em meados de julho, sendo expectável que o parecer possa ser debatido e aprovado nessa ocasião.”
A administração do Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa, contactada pelo Jornal de Notícias, alega que “os factos ocorreram num período anterior à tomada de posse do atual Conselho de Administração”. Nada mais diz, já que o processo está neste momento em segredo de justiça.
O tempo vai passando. No dia 30 de agosto, Sara faria 23 anos. Desde que a filha morreu, Maria de Fátima já se viu obrigada a ir ao hospital como paciente. “A médica de família passou-me o papel e eu sou obrigada a ir lá. Mas pedi-lhe: ‘ó senhora doutora, se eu não gostar do atendimento, por favor não me mande lá mais, que eu vou com o coração nas mãos'”. “Perdemos a confiança no hospital”, diz Mário Moreira. “Sabe o que lhe digo? Coitado de quem é pobre. Se fosse um rico, já podia escolher onde ir.”