Polly frequentou a escola até aos 15 anos. Como o pai trabalhava na indústria da impressão, aprendeu a ler e escrever, o que era incomum para as meninas da classe trabalhadora de uma Inglaterra do século XIX. A idade adulta trouxe-lhe o alcoolismo e a vida nas ruas (era uma entre as 70 mil pessoas sem teto em Londres naquele período). Já Annie cresceu entre as classes média e baixa, sendo filha de um militar: o suicídio violento do pai marcou-a para sempre. Apesar de ter nascido em Gotemburgo, os passos de Elisabeth ficaram marcados na capital inglesa onde nos últimos anos de vida se tornaria uma vigarista implacável.
As vidas de Polly, Annie e Elisabeth – assim como as de Katie e Mary Jane – cruzaram-se na reta final. Todas morreram em 1888, às mãos de Jack the Ripper (ou Jack o Estripador) um dos assassinos mais populares da história que, ao longo de mais de 130 anos, tem gerado tanta curiosidade quanto intriga. Quem era, o que fazia, porque matou? As perguntas sempre se focaram no homem mistério, pelo menos até The Five chegar às livrarias. Lançada em fevereiro deste ano, esta é a primeira publicação que traz perfis detalhados das vítimas do assassino em série – e não só. Também há revelações: afinal, nem todas estas mulheres eram prostitutas.
Entrevistámos a autora Hallie Rubenhold, historiadora e consultora histórica para televisão e cinema que falou sobre o enorme o impacto do livro. Afinal, tem sido assediada pelos Ripperologists (pessoas que se dedicam a explorar o caso do Estripador) que estão furiosos – sentem que Hallie lhes está a destruir o mito. Falámos sobre preconceitos no século XIX, a obsessão do espectador por assassinos e até a “Guerra dos Tronos” veio à baila. Diretamente da sua sala de estar, em Londres, Hallie confessou que a sua cidade predileta é Lisboa e que não resiste a um pastel de nata e a um bom peixe fresco. Foi por cá que ouviu falar da tragédia de Inês de Castro – quer escrever um romance sobre a história.
The Five era suposto ter seguido um caminho diferente… Porquê?
Achei que ia escrever um livro sobre cinco profissionais do sexo no século XIX. Mas fiz a pesquisa e percebi que não existiam evidências que sugerissem que essa fosse a ocupação delas. E a única coisa que existia sobre estas mulheres era um pequeno panfleto de 60 páginas (escrito há uns 12 anos) de um ponto de vista genealógico. E eu só pensava como é que isto é possível? Nunca houve um livro que explorasse a vida delas. Claro que foram mencionadas em livros escritos sobre Jack o Estripador mas nunca ninguém se focou em como teriam sido as suas vidas.
Conta que foi “uma caminhada incrível, tanto intelectual como emocionalmente”. De que forma?
O tema é incrivelmente emotivo. Olhar para a vida delas e para as condições em que viviam levou-me a lugares muito sombrios. Não é como se fosse a primeira vez que escrevo sobre mulheres desfavorecidas, mas ser relembrado disso é muito difícil. E foi muito tempo, foram três anos e meio passados na vida destas mulheres. Houve alturas em que estava tão zangada que me tinha de afastar da escrita.
Porquê?
Porque realmente não fizemos perguntas. Estes homicídios aconteceram há 130 anos e ninguém se importou de perguntar quem eram estas mulheres. Ninguém se importou de questionar se eram realmente trabalhadoras sexuais.
Conclui que pelo menos para três delas – Polly, Annie e Kate – não existem provas de que estivessem na prostituição. Porque se disse o contrário?
Na altura era uma teoria muito conveniente, servia um propósito. Era a lógica de que as mulheres más têm de ser castigadas. E uma mulher má transgride a norma – que, na altura, era toda a mulher que ia contra a corrente, que não tinha casa, nem família, que não era mãe ou não tinha um papel de cuidadora, que era alcoólica, que tinha problemas mentais, que tinha relações fora do matrimónio… e não interessa se és culpado de uma ou de várias destas coisas, acreditava-se que se eras uma fallen woman (mulher desgraçada), então eras capaz de tudo. Se vivias fora de casa, se tinhas deixado o teu marido, então eras uma prostituta. Não havia diferenciações. Era o que a sociedade acreditava.
E a imprensa da época reforçou essa ideia.
As notícias foram sensacionalizadas como hoje em dia também são. E isso vende jornais, todos queremos uma boa história. “If it bleeds it leads” (se sangra, então lidera), costumamos dizer por cá. Claro que teria sido o mesmo naquela altura. Esta ideia de que as fake news nasceram agora é absolutamente ridícula, elas sempre existiram.
The Five conta-nos tudo sobre estas mulheres: quem eram os pais, como foi a sua infância, por quem se apaixonaram. Quão importante era para si pintar estes retratos detalhados?
Muito importante. É que até aqui estas mulheres eram debatidas no sentido de o que podemos aprender com elas para chegar ao assassino, eram provas e nunca pessoas por direito próprio, o que é horrível. Estas mulheres eram seres humanos, as experiências e vidas delas foram únicas. Viveram quase o período inteiro em que a rainha Vitória esteve no trono e contam-nos muito sobre um período, de uma perspetiva diferente, que é a das mulheres pobres. É que toda a gente se interessa pela vida da rainha, da família real, da aristocracia, mas não estão interessados nas vozes da maioria das pessoas que são os pobres ou marginalizados – e as mulheres que são 50% da população.
Como foi o processo de pesquisa?
Tinha muito material para processar. É que estava a construir contexto e uma história mais ampla. Queria questionar como teria sido fazeres uma tatuagem naquela altura, como fez a Catherine Eddowes, ou como teria sido a tua educação se fosses filha de alguém do exército, como a Annie Chapman. Ao longo do livro há muitos mais exemplos porque tento realmente levar-te profundamente a este tema. Acho que todos nós, secretamente, queremos ser viajantes do tempo. Desejamos a experiência visceral de viver no corpo de outra pessoa, noutro tempo. E isso é não só educativo e informativo como também é entretenimento, para que possamos perceber o que era respirar, viver neste período.
O que mais a surpreendeu?
O que realmente me deixou admirada é que, à medida que estava a escrever, comecei a ver elementos das suas personalidades a surgirem. É que não temos memórias, cartas ou diários delas. Mas, apesar de não ouvirmos as suas vozes, temos a linha das suas vidas, as escolhas que fizeram, os sítios onde viveram, as pessoas com quem se casaram, e daí consegues tirar perfis e personalidades. A Annie Chapman, por exemplo, tinha-se movimentado entre a classe média e a baixa, e conseguimos perceber as suas expectativas através daquele seu pequeno retrato do casamento, com o marido.
Passou muitas horas na biblioteca?
Fui aos arquivos metropolitanos de Londres, à Biblioteca Nacional do Reino Unido, visitei arquivos regionais. Também fui à Suécia para fazer investigação sobre a Elisabeth, que nasceu lá, e visitei a casa em que ela viveu.
Se Jack o Estripador também tivesse morto homens, a história teria sido diferente?
Dependeria do homem que fosse assassinado. Mas acho que é muito difícil ignorar que sempre existiu um elemento sexual nesta mitologia. Principalmente no que toca à Mary Jane Kelly, a última vítima e a mais nova. Todas as outras estavam nos seus 40, a Mary Jane tinha 25 anos. Ela era a única que era uma prostituta confirmada e assumida e tornou toda a história muito excitante. Quando as pessoas ficam obcecadas com Jack the Ripper é com a Mary Jane, que era a mais atraente e a mais sexual.
Existe toda uma comunidade dedicada a estudar o mito e o homem. Como reagiram os Ripperlogists [estudiosos de Jack the Ripper]?
Eles odeiam-me! Tenho sido assediada no Twitter. Têm sido terríveis, recebo hate mail, tenho sido atacada. Houve uma mulher que pôs a minha fotografia num site de Ripperologists e que incentivou as pessoas a fazerem comentários sexuais e depreciativos sobre mim. Dizem que sou uma mentirosa, que inventei isto tudo, que deliberadamente exclui evidências de que estas mulheres eram todas prostitutas, o que não é de todo verdade. É ridículo. Têm-me comparado ao David Irving, que nega a existência do holocausto.
Esperava este tipo de reação?
Nada como isto. É que estas pessoas estão muito perturbadas, o meu livro muda completamente a história, o mito, abala todo o seu mundo. Estes são na sua maioria homens que dedicaram as vidas a procurarem provas e a tentar descobrir quem é que foi Jack o Estripador. Basicamente, tirei-lhes a única coisa com a qual toda a gente concordava: que o Estripador matava prostitutas. Estou a destruir o hobbie deles e a ameaçar os seus egos.
Que impacto é que o livro teve na sua vida pessoal?
Estou muito mais ocupada do que alguma vez estive. O livro está a ter um grande impacto. Estou a fazer entrevistas e a viajar, a fazer apresentações. Mas tem sido interessante porque o meu marido é advogado de direito criminal, então conversámos muito sobre estes temas e também temos uma série de amigos advogados e discutir com eles ajudou-me.
Como?
Bom, a apresentar argumentos legais sobre o que são ou não provas válidas. Com a Ripperology há muita obsessão pelas declarações das testemunhas, mas a lei mudou e há muita coisa que não se sabia em 1888. Por exemplo, hoje temos as Turnbull Guidelines, que foram estabelecidas nos anos 70 e reconhecem que testemunhas que acham que viram algo em más condições têm uma grande probabilidade de estar erradas em relação ao que viram. Então a sua utilidade é questionável. Os Ripperologists não têm em conta estas coisas – simplesmente veem tudo como factos. Na introdução do livro, digo muito claramente porque é que excluí determinadas provas. Porque se não são válidas, então não fazem parte da história de uma vida, mas sim de uma teoria da conspiração.
Há cada vez mais séries, filmes e documentários sobre crimes reais – podemos concluir que temos uma obsessão com assassinos?
Acho que são fases e tendências. Não sei porque é que o crime real é de repente tão fascinante para as pessoas. Talvez queiramos saber o que torna uma pessoa má. E também estamos muito interessados em descobrir que características fazem um assassino para nos podermos afastar delas. Uma coisa que noto é que o entretenimento está a ficar cada vez mais violento, há muitos assassinatos brutais retratados na televisão, e muitos deles são de mulheres. Não tenho as estatísticas para aprofundar melhor esta questão, mas parece-me que há uma relação muito estranha entre a violência contra as mulheres e o sexo, é perturbador.
Devíamos mudar o foco, como fez neste livro, e apontá-lo para as vítimas?
O crime, as histórias de homicídio, estarão sempre no centro de qualquer drama da mesma maneira que o amor, a traição está, aliás só tens de ver a “Guerra dos Tronos” para perceber isto [risos]. Isso é inerente ao bom drama. Mas quando olhamos para as histórias de crime reais acho que é importante vermos de diferentes ângulos. Podemos olhar de uma forma que é tão interessante quanto ética. Podemos olhar de uma forma feminista, de uma forma de coloque questões difíceis, e que pergunte porque nos interessamos, e porque é que há casos que resistem ao tempo como o Jack o Estripador ou a Lizzy Borden, o Ted Bundy. Como existe tanto crime real à nossa volta, estamos a começar a fazer estas perguntas e talvez este seja o lado bom.
Estreou-se com “Covent Garden Ladies”, em 2005. Como decidiu escrever sobre esta peculiar publicação, um guia de prostitutas do século XVIII?
Tinha feito a minha pós-graduação em história social e a tese sobre o casamento e a parentalidade no século XVIII e sabia sobre a existência destes guias. Mas a oportunidade do livro surgiu por um acaso: estava num casamento e sentei-me ao lado de um editor, conversámos e ele perguntou-me se o tema podia dar um livro, eu disse que sim. Foi fantástico saber mais sobre estas mulheres, mais de mil literalmente: saber como tinham começado, se tinham filhos, o que gostavam e não gostavam, e foi incrivelmente comovedor. E porque o guia foi publicado todos os anos durante 47 anos então conseguias perceber a evolução. Algumas tinham trajetórias incríveis, tinham começado nas ruas e depois acabavam por ser as amantes de homens muito ricos.
Sempre estudou temas do universo feminino. Porquê?
Porque a vida das mulheres era complexa. Carregavam nos ombros todo o peso de expectativas, da moralidade. Como é que continuas a tua vida quando fazes algo que não é considerado aceitável pela sociedade? Para as mulheres isto acontecia-lhes a toda a hora, não podiam dar um passo em falso.
Soube desde cedo que queria ser historiadora?
Acho que sim. Sempre fui interessada. Mas como cresci em Los Angeles sonhava em ser realizadora e escritora, mas era porque me sentia atraída por estas histórias épicas.
“Covent Garden Ladies” deu origem a uma série de televisão, “Harlots”. Aliás, muitos dos seus livros foram adaptados para a TV. Gosta de os ver no ecrã?
Adoro. Na verdade, vou começar a escrever guiões também. Adoro o processo de ver uma história tornar-se filme. Claro que um livro nunca pode ser exatamente reproduzido no ecrã. E porque trabalho na indústria – sou consultora histórica – sei o que é e o que não é possível fazer e porque é que as decisões são tomadas. Muitas vezes não há timing, nem orçamento.
Sempre se interessou por história britânica?
Sim porque o meu pai é britânico, mas sempre me interessei pela história americana e também pela europeia. Na verdade, quando estive em Portugal recentemente li sobre a Inês de Castro e fiquei maravilhada e disse “tenho de escrever esta história”.
The Five também poderá chegar à televisão. Quando será?
Está numa fase muito inicial, estamos a começar a desenvolver a ideia. Temos uma escritora muito famosa no Reino Unido (Gwyneth Hughes) que fez uma adaptação da “Feira das Vaidades” que foi muito falada. Ela é que vai escrever. A televisão toma o seu tempo, mas estamos a fazer figas para que aconteça.
Tem ideia de quando é que o livro poderá chegar a Portugal?
Eu adoraria que o livro fosse traduzido para português. O que precisamos é que uma editora portuguesa compre os direitos, que estão disponíveis. Temos uma versão italiana, alemã e finlandesa a caminho. Estas são histórias que têm impacto e ressonância com a vida moderna: falam do alcoolismo, da violência domestica, dos sem abrigo, da culpabilização das vítimas, tudo isto faz parte das nossas vidas hoje. Adoraria que as pessoas lessem e pensassem sobre estes temas.
Já está a trabalhar noutro tema ou ainda está a digerir este?
Bom, ainda estou a digerir este, mas já tenho outra coisa em mente. Não posso dizer o que é, mas é outro assassino famoso, mais ou menos do mesmo período, e vai ser novamente escrito do ponto de vista das mulheres envolvidas.