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DAVID MARTINS/OBSERVADOR

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Quem são as batukadeiras de Cabo Verde que encantaram Madonna

Ensaiam quase todas as semanas num bairro social da Amadora e muitas são empregadas domésticas. A cantora de “Like a Virgin” gravou com elas e pediu-lhes um acordo de confidencialidade.

Vozes femininas muito agudas, um rufar de tambores, que não são tambores, poderia ser um ritual guerreiro ou um mantra de salvação. No primeiro domingo de março, as batukadeiras que encantaram Madonna estão a ensaiar no Bairro do Zambujal e durante mais de uma hora esquecem-se de quem são. “Quando estamos assim rodeadas de amigas, estamos protegidas”, explica Etelevina, cabo-verdiana de 66 anos, nascida em Santa Catarina, ilha de Santiago, e estabelecida em Portugal há quase duas décadas. “Aqui somos mais livres e não pensamos nas outras coisas”, garante.

Estamos num bairro social entre Alfragide e a Buraca, concelho da Amadora, arredores de Lisboa, zona que não costuma estar nas notícias por estas razões. Mas o que se passa esta tarde é toda uma outra história – de quem se junta em torno de música, dança e poemas para continuar uma prática ancestral cujos primeiros registos conhecidos datam da segunda metade do século XVIII, precisamente em Santiago.

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Curiosamente, para muitos portugueses, o batuku era quase desconhecido até ao início deste ano, quando a cantora de “Like a Virgin”, estabelecida em Portugal em 2017 na companhia dos filhos, publicou na rede social Instagram um vídeo que já teve mais de 240 mil visualizações. Nele se via um grupo de mulheres da Orquestra de Batukadeiras em oração com a cantora, após uma gravação de estúdio de que ainda não são conhecidos pormenores. A mensagem de Madonna que acompanhava o vídeo informava que aquelas mulheres iriam participar no seu próximo disco de originais, que pode ver a luz do dia nos próximos meses.

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Publicado a 29 de janeiro, o vídeo tinha sido filmado muitos meses antes, em junho de 2018, num estúdio em Paço de Arcos. Terão feito em conjunto uma canção inteira, será apenas um excerto, um coro? Não se sabe, mas sabe-se que o respetivo videoclip também tem as batukadeiras e deverá ser gravado nos primeiros dias de abril.

A artista conheceu-as através do cantor português Dino D’Santiago, de origem cabo-verdiana, que nos últimos meses foi guia e consultor musical da “rainha da pop”, apresentando-lhe sons, artistas e lugares da chamada Lisboa crioula.

Por sua vez, Dino D’Santiago tinha chegado às batukadeiras em 2017, ao receber um convite da Associação de Mulheres Cabo-Verdianas na Diáspora em Portugal para apadrinhar um encontro nacional de batuku. A quarta edição terá lugar no domingo, 30 de março, na Igreja de São Pedro do Mar, em Quarteira, precisamente onde nasceu Dino D’Santiago, e serve também para assinalar o Dia da Mulher Cabo-Verdiana, que é assinalado a 27 de março.

A sala onde ensaiam as batukadeiras fica num rés-do-chão e pertence à Associação Recreativa CaZambujal

DAVID MARTINS/OBSERVADOR

Foi dele a ideia de chamar Orquestra de Batukadeiras ao conjunto de grupos de batuku que existem no país. Este que ensaia no Bairro do Zambujal, constituído por uma dúzia de elementos, é um de vários, espalhados por Almada, Loures, Oeiras, Cacém e outras zonas, na sua maioria compostos por mulheres. São como naipes da orquestra idealizada por Dino.

“Convidaram-nos para uma gravação e nem sabíamos bem ao que íamos”, conta Iolanda Veiga, de 42 anos, jurista e presidente da associação. É ela quem leva o Observador ao ensaio, depois de algumas semanas de contactos. “Como o Dino tinha sido nosso padrinho e tem a nossa total confiança, fomos ao estúdio”, acrescenta, sem revelar muitos pormenores do encontro com Madonna. “Quando ela publicou o vídeo, não estávamos à espera, porque tínhamos assinado um acordo de confidencialidade e até pensámos que ela não iria falar do assunto tão cedo. Mas mantemos a nossa postura. Isto vem dar uma grande visibilidade às batukadeiras, mas a fama dura um minuto e continuamos na nossa, a ensaiar.”

“É uma forma de libertação”

No Bairro do Zambujal os prédios são quase todos iguais, cinzentos nos andares de cima e cor de barro no rés-do-chão. Por ser domingo, o comércio está fechado: a Cervejaria Zambujal tem dezenas de vasos à porta com plantas que ainda vão dar flor, o Restaurante Zambujal tem porta e montra cobertas por grades de metal, a Mercearia Maria das Dores ostenta toalhas de papel nos vidros e talvez não reabre tão depressa. Atravessamos um túnel que liga a Estrada do Zambujal à Rua das Mães de Água e surgem vizinhas à conversa, dois rapazes que fumam às escondidas, outros que andam de bicicleta. Alguém estendeu lençóis na corda de um primeiro andar. A sala onde ensaiam as batukadeiras é já ali, num rés-do-chão, e pertence à Associação Recreativa CaZambujal. Por dentro é um ginásio que serve a vizinhança e pretende “combater a exclusão social através do desporto”. Tem um aspeto cuidado e luminoso.

“Através da cultura, na vertente batuku, conseguimos chegar às mulheres e implementar estratégias de ação em termos de igualdade de género e de violência doméstica. O batuku não é uma desculpa para chegarmos a elas, porque isto por si só é importante, mas é uma ferramenta", diz Iolanda Veiga.

Iolanda Veiga é informal e apresenta o jornalista e o fotógrafo às batukadeiras que já se encontram sentadas de roda. Mantêm sempre uma certa distância, talvez por timidez. A presidente diz que depois do vídeo de Madonna a RTP já falou com elas, “mas foi uma reportagem muito curta”. Esta é a primeira vez que abrem as portas para explicar em detalhe o que fazem.

Há apenas um homem no ensaio, além do maestro, Danilson Pires, de 29 anos, que prefere descrever-se como coordenador. Mais tarde, quando lhe pedimos para descrever o que é o batuku, ele disse: “É uma forma de as pessoas exprimirem o que estão a passar, as saudades, as angústias, é uma energia contagiante para quem toca e para quem está à volta.” E destacou: “Acredito que é uma forma de libertação, porque esqueces os problemas, o que tens para fazer, até quem tu és.”

A questão Madonna, que justifica a curiosidade do Observador, fica arrumada logo à chegada. Iolanda Veiga sublinha o acordo de confidencialidade, diz que pode responder apenas a algumas perguntas, sem pormenores. Prefere explicar o funcionamento da Associação de Mulheres Cabo-Verdianas na Diáspora em Portugal e nota que não é rigoroso falar-se em associação feminista.

A seu lado está Maria de Lourdes Monteiro, mais conhecida por Zéfêmia, nascida há 59 anos na Cidade Praia. Chegou a Portugal no início da década de 1990 e fundou a associação em 2011, depois de ter trabalhado alguns anos em Pontevedra, na Galiza, e de ter percebido “a carência que as mulheres cabo-verdianas tinham de se organizarem e juntarem”.

“Eles iam trabalhar para as minas e elas ficavam a tratar da lida doméstica e dos filhos e eram proibidas de trabalhar”, recorda Zéfêmia. “Eram mulheres dependentes, algumas eram viúvas de marido vivo, outras eram viúvas de marido morto, como costumo dizer, isto é, com maridos ausentes. Comecei a organizar encontros com as cabo-verdianas e com outras mulheres imigrantes, do Perú e da República Dominicana, para tratarmos assuntos de mulheres.”

O batuku foi arte de classes baixas e escravos na época colonial e alvo de perseguição da igreja católica e das autoridades portuguesas

DAVID MARTINS/OBSERVADOR

Ao regressar a Portugal, trouxe a mesma vontade. “Convidei um grupo de 38 mulheres e um homem para um jantar nas Portas de Benfica, em setembro de 2010, e lancei a ideia de lançarmos uma associação”, recorda. Em 2014, criou dentro dessa estrutura o grupo de batukadeiras Ramedi Terra (“mezinhas”, em crioulo), que hoje é mais um dos naipes da Orquestra. Entretanto, Iolanda Veiga assumiu a liderança da associação.

Calma, ponderada e misteriosa, Zéfêmia detalha que foi educadora de infância e professora primária em Cabo Verde, colaborou com uma Aldeia de Crianças SOS e já em Portugal trabalhou muitos anos como cabeleireira. Defende que o batuku tem um “papel na valorização e na autoestima” das imigrantes. “Como é uma atividade de lazer e elas se sentem bem, descobrimos assim outras fragilidades das mulheres”, descreve. Iolanda Veiga completa: “Através da cultura, na vertente batuku, conseguimos chegar às mulheres e implementar estratégias de ação em termos de igualdade de género e de violência doméstica. O batuku não é uma desculpa para chegarmos a elas, porque isto por si só é importante, mas é uma ferramenta.”

É música. É dança. É uma festa

A conversa decorre no mesmo espaço que o ensaio. As duas responsáveis têm de levantar a voz quando cresce a energia das batukadeiras. Estas têm no colo, presa entre as pernas, uma tchabeta, o instrumento cujo som parece o de um tambor ou dos adufes da Beira Baixa, também tocados por mulheres. Sem tchabeta não há batuku. Parece um pequeno banco, está revisto a napa vermelha e tem tecidos no enchimento.

De repente, há uma intérprete que se levanta e dança. Faz um movimento livre de ancas e braços. “Não é uma dança erótica, talvez seja uma dança de libertação”, constata Iolanda Veiga, que nasceu em Portugal, filha de cabo-verdianos, mas na infância e adolescência nunca teve contacto direto com este género musical.

As letras, todos em crioulo, são outro elemento fundamental. “Antes de tocar a tchabeta, estudo a letra”, afirma Etelvina, experimentada cantadeira. “Estou em casa a fazer limpezas e vou cantando, com um ritmo próprio, arranjo um ritmo e controlo a letra para encaixar naquele ritmo, faço isto desde criança.”

Em certas ocasiões, a percussão das tchabetas e das palmas leva ao êxtase quem dança. Etelvina tem disso boas memórias trazidas de África. “Sei batukar porque o meu pai e a minha mãe batukavam e as minhas irmãs todas sabem batukar”, relata. “Se havia um batizado dos nossos filhos ou um casamento dos nossos colegas ou amigos, era com batuku a noite ou o dia todo.”

O batuku foi arte de classes baixas e escravos na época colonial e alvo de perseguição da igreja católica e das autoridades portuguesas. Conheceu nas últimas décadas uma valorização sem par, com investigações académicas frequentes. O próprio governo cabo-verdiano a ponderar classificá-lo como património nacional ou propor à UNESCO que o reconheça como Património Cultural Imaterial da Humanidade.

Etelvina vive em Loures e conta que tem três filhos a viver em Portugal e outros dois em Cabo Verde, “todos por conta própria”. Casou-se aos 18 anos e durante muito tempo não batukou, porque “tinha casa, marido e filhos e não podia estar metida nesta atividade”. Mas sempre teve “muita vontade de continuar”. “Quanto mais música, mais vontade tenho de continuar, não fico cansada, aquilo de que gostamos não cansa. Agora já não tenho idade, mas quando era jovem dançava até ser dia e não me sentia cansada. Às vezes só parava entre cada música ou quando tinha de ir à casa de banho.”

A ideia de que o batuku era uma maneira de entrar em transe, como se a dançarina tivesse o diabo no corpo, foi disseminada ao longo do tempo, segundo Iolanda Veiga. “Era praticado mais por mulheres e ouvia-se nas ribeiras, enquanto elas lavavam a roupa, mas também no campo ou na lida doméstica”, explica Maria de Lourdes Monteiro. “Lembro-me de adorar espreitar o batuku, mas a minha mãe não me deixava. Sou de uma família muito religiosa e não era bem visto. Fiquei sempre com isto: gostava, mas não podia.”

As letras, todos em crioulo, são outro elemento fundamental. “Antes de tocar a tchabeta, estudo a letra”, afirma Etelvina, experimentada cantadeira. “Estou em casa a fazer limpezas e vou cantando, com um ritmo próprio, arranjo um ritmo e controlo a letra para encaixar naquele ritmo, faço isto desde criança.”

“Normalmente, fazemos três canções por ensaio, mas elas às vezes querem começar logo com uma nova ideia que tiveram na hora e isso é engraçado"

DAVID MARTINS/OBSERVADOR

Danilson Pires, natural de Santa Cruz e a viver há 12 anos em Portugal, onde trabalha na área da engenharia eletrónica, chegou à associação em 2015 e escreve poemas para batuku. “São sobre o quotidiano, coisas a que assisti em Cabo Verde e outras que o meu avô me contava: uma discussão entre duas pessoas, o marido que emigrou, os sacrifícios do dia-a-dia”. Segundo ele, “estas senhoras são um dicionário, são palavras, são melodia”. Qualquer uma tem, com certeza, mais de 50 canções memorizadas.

Na sua maioria, as batukadeiras são empregadas domésticas ou donas de casa. Muitas escrevem ou leem com dificuldade. Por isso, cabe a Danilson Pires estabelecer a ordem de trabalhos de cada ensaio e ajudá-las a porem as letras por escrito. Enviam-lhe através do Facebook, em gravações áudio, os poemas que criam e ele escuta, transcreve e traz a lírica para ensaiarem. “Normalmente, fazemos três canções por ensaio, mas elas às vezes querem começar logo com uma nova ideia que tiveram na hora e isso é engraçado. Há algumas que já fazem isto há 30 ou 40 anos. Na verdade, eu é que aprendo com elas.”

Depois de um encontro internacional em Paris, no ano passado, a Orquestra de Batukadeiras tem agendada uma deslocação ao Luxemburgo no mês de maio e no próximo ano talvez atue na Holanda. “Isto é muito importante, para que elas não estejam confinadas ao bairro”, defende Zéfêmia. “Vão a vários locais para conhecer, estão dois dias numa cidade para atuarem e para terem mundo, é uma forma de se valorizarem como mulheres.”

Fotografias de David Martins

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