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Rainer Zitelmann: "Os ricos e o capitalismo são uma espécie de bode expiatório, é possível culpá-los por quase tudo"

Entrevista com o historiador especializado na economia e sociedade alemãs, atento especialmente às causas e efeitos da riqueza. Tem agora publicado em Portugal o livro "Em Defesa do Capitalismo".

Quais são as vantagens do capitalismo? Porque é que a história de um sistema que tira sistematicamente países e pessoas da pobreza tem uma fama tão má? Foi sobre isso que Rainer Zitelmann, que esteve em Portugal para apresentar o seu livro Em Defesa do Capitalismo, falou com o Observador.

A obra de Zitelmann é bastante variada. De Hitler a Adenauer, o historiador tem escrito sobre todas as grandes políticas alemãs do século XX. Este livro surge numa altura em que, depois de umas décadas de euforia capitalista, Zitelmann vê as suas vantagens serem ameaçadas, não por contrapropostas reais, mas pelo que vê como propaganda ideológica baseada no desconhecimento histórico. É esse desconhecimento que Rainer Zitelmann diz querer combater, com uma avalanche de dados e estatísticas que comprovam o modo como, por todo o mundo, o capitalismo fez diminuir a pobreza e aumentar o nível de vida.

Esta é uma conversa que vai da história do século XX aos grandes bilionários da tecnologia, dos problemas éticos às revoluções socialistas, sempre em volta de pobres, ricos, e de um tema tão vasto como o capitalismo.

A capa de "Em Defesa do Capitalismo", a edição portuguesa do livro de Rainer Zitelmann, pela Aletheia

Aquilo que resulta do seu livro é a ideia de que o grande problema do capitalismo é de perceção. É visto como a causa de muitos problemas que resolve e tem muito pior imagem do que aquilo que na realidade é. Porquê?
Bom, isto acontece com muita coisa, não apenas com o capitalismo. Passa-se o mesmo com aquilo que é descrito nos livros do [psicólogo e linguísta americano] Steven Pinker. Se perguntarmos às pessoas se temos mais pobres, se a pobreza cresceu ou diminuiu, a ideia das pessoas é a errada.

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Sim, mas o problema é o mesmo. Porque é que as pessoas têm esta perceção errada?
Julgo que não há só uma resposta, há várias. Em primeiro lugar, nem sempre foi assim. No princípio dos anos noventa, o capitalismo tinha muito melhor imagem. Por todo o lado tínhamos reformas a favor do mercado, houve o Reagan, houve reformas na China, julgo que até aqui em Portugal, de 1985 a 1995, houve reformas pró-mercado. Itália, Argentina… Porquê? Porque nessa altura toda a gente via que o socialismo não tinha funcionado e o capitalismo aparecia como a alternativa. Isto passou-se há trinta anos e há muita gente que já não se lembra. Ensinam-se muitas coisas na escola sobre os males do capitalismo, mas não sobre o socialismo. Dou um exemplo. Viajo muito por todo o mundo. Este ano fui a 15 países e para o ano vou a 35. Nas minhas conferências costumo perguntar aos jovens se ouviram falar na escola do chamado “grande salto em frente”, de Mao, que foi a mais ambiciosa experiência socialista da História, e em que 45 milhões de pessoas morreram. Só três ou quatro pessoas dizem que sim, a maior parte nunca ouviu falar disso. No entanto, toda a gente ouviu falar dos males do capitalismo. Tenho um capítulo no livro sobre o que se passou no Camboja, com Pol Pot, e que as pessoas não sabem. Esta é uma das razões. Educação, conhecimento da História. É por isso que tenho esta frase em destaque no meu livro. “O socialismo parece sempre bom no papel, menos quando está no papel de um livro de História”.

"O último século teve 24 experiências socialistas. Todas falharam, das mais diversas maneiras, pelo que, se nos quiserem mostrar um socialismo que funcione, têm de nos mostrar um livro. Eu quero ver a realidade, não um livro. Eu também não consigo dar um exemplo de um país capitalista perfeito, mas consigo dizer que por todo o mundo há demasiada ingerência do Estado e que devíamos ter mais mercado livre."

Há um desconhecimento sobre o que é o socialismo?
Diria que as pessoas não sabem como é que se costumava viver antes do capitalismo. Se perguntarmos por aí “Como é que acha que as pessoas viviam antes do capitalismo?”, ou “Como viviam há duzentos anos?”, as pessoas imaginam excursões modernas ao campo, imagens românticas. A verdade é que as pessoas tinham verdadeira fome. E nem é preciso recuar duzentos anos. Estive há semanas no Vietname, que ainda nos anos 90 era o país mais pobre do mundo. Imensa gente vivia na pobreza, e uma pobreza que significa não ter nada para comer. Isto porque primeiro tiveram a guerra, depois dez anos de socialismo, antes de começarem com as reformas pró-mercado. Outro bom exemplo é a Polónia, um país socialista que era mais pobre do que a Ucrânia, do que a República Checa, e agora é o país em maior crescimento da Europa. Acho que o desconhecimento do passado é um dos maiores problemas. Eu vejo o quanto os países cresceram com o capitalismo, mas a maior parte das pessoas, que não leem ou não se interessam pela História, não conseguem vê-lo. Mas esta é uma das razões.

Que outras razões existem?
Outra é praticamente religiosa. Para muita gente, os ricos e o capitalismo são uma espécie de bode expiatório, é possível culpá-los de quase tudo. Li há pouco tempo um livro, de uma famosa autora americana, que começava com o relato de uma busca por mobília. Tinha ido a muitos sítios e não encontrara o que procurava. A conclusão era, então: “Como é mau o capitalismo!”. Todos os problemas se podem atribuir ao capitalismo. Em religião há Deus e o Diabo, o capitalismo funciona como uma espécie de diabo. Mais, esta é uma religião especialmente para os intelectuais. Esta ideia não vem dos pobres ou dos operários, até Lenine escreveu que não se poderia esperar que o socialismo viesse dos trabalhadores. O socialismo tem de ser criado pelos intelectuais, o que faz deste sentido religioso uma coisa própria das classes pensantes. Não só dos intelectuais de esquerda, até à direita há intelectuais que não gostam do capitalismo.

Bom, mas há uma diferença entre intelectuais de esquerda e de direita. Não é preciso contestar radicalmente o capitalismo, pôr em causa a ideia de propriedade ou de mercado livre, mas é possível reconhecer que o capitalismo precisa de ser mitigado nalguns dos seus efeitos, ou o capitalismo só funciona se for aplicado em pleno?
Não há nenhuma sociedade cem por cento capitalista. Isso não existe e nunca existiu.

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"Não estou à procura de uma sociedade cem por cento capitalista, quero só ver: o que é que acontece se juntarmos mais capitalismo?", diz-nos Rainer Zitelmann

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E acha que devia?
Eu não penso sobre coisas que não consigo ver, como no caso do socialismo. O que temos por todo o mundo são sistemas mistos. Capitalismo e socialismo misturados. Costumo comparar os sistemas políticos com tubos de ensaio. Nestes, podemos pôr dois ingredientes: mercado e Estado, ou capitalismo e socialismo. Depois, vemos o que acontece se juntarmos mais mercado ou mais Estado. Mais Estado, temos o exemplo da Venezuela. Nos anos 70, era um dos vinte países mais ricos do mundo; depois começaram a encher o mercado de trabalho de restrições — sei que também têm muitas em Portugal – e a situação piorou. Depois disto, a conclusão das pessoas na Venezuela foi a de que deviam ter mais restrições e elegeram Hugo Chávez.

Qual foi o resultado?
Nos primeiros anos foi bom, porque o preço do petróleo subia e havia muito dinheiro; quando o preço do petróleo desceu começaram as nacionalizações, o controlo de preços e agora conhecemos os resultados. É o que acontece quando, neste sistema misto, juntamos mais Estado. Por outro lado, já referi o Vietname, que era o país mais pobre do mundo e em 1986 começou a imprimir reformas pró-mercado. Levou o seu tempo, mas hoje em dia o rácio de pobreza é de 5 por cento. O mesmo na China, que passou de um rácio de 88 por cento de pobreza extrema para menos de 1 por cento. Porquê? Porque introduziram a propriedade privada, liberalizaram o mercado. Claro que não é um sistema capitalista pleno, mas não é isso que é preciso. A coisa boa a respeito do capitalismo é que até algumas gotas de capitalismo podem ajudar muito, por vezes. Eu sou pragmático, não estou à procura de uma sociedade cem por cento capitalista, quero só ver: o que é que acontece se juntarmos mais capitalismo? E a verdade é que não vejo nenhum país hoje em dia em que diga que há demasiado capitalismo.

"O Bill Gates tornou-se rico porque roubou alguém? Não, criou um produto que todos usamos, como aconteceu com o Google, que colocou os seus criadores entre as pessoas mais ricas do mundo. Não porque roubaram, mas porque criaram um produto que é útil para muita gente. É assim que as pessoas se tornam ricas no capitalismo e é uma diferença entre este e outros sistemas."

Mas vamos tentar perceber: com algumas gotas de capitalismo, vemos crescimento. Mas acha que há um ponto qualquer em que se devia parar? Em que é preciso Estado? Ou surgirão problemas?
Em teoria, é possível que o Estado seja melhor. Olhemos para os capitalistas mais odiados do século XX: Margaret Thatcher e Ronald Reagan. Eles também criaram leis que regulavam o mercado, eu não sou contra toda a regulamentação. Mas não é “quanto mais, melhor”. É claro que às vezes é preciso que o Estado imponha algumas regras e talvez haja situações em que seja preciso regulamentar os mercados, mas nos dias de hoje não encontro nenhuma situação concreta em que ache que seja preciso, e é esse concreto que me interessa. Não posso criticar os socialistas por se centrarem numa utopia e ter a minha própria utopia. Não me interessa fazer como os socialistas, a quem, se perguntarmos por um sítio no mundo onde o socialismo funcione, não conseguem mostrar. Ora, o último século teve 24 experiências socialistas. Todas falharam, das mais diversas maneiras, pelo que, se nos quiserem mostrar um socialismo que funcione, têm de nos mostrar um livro. Eu quero ver a realidade, não um livro. Eu também não consigo dar um exemplo de um país capitalista perfeito, mas consigo dizer que por todo o mundo há demasiada ingerência do Estado e que devíamos ter mais mercado livre.

Mas o capitalismo também parece exigir uma utopia, as mesmas regras em todos os países. Se eu tenho leis sobre o salário mínimo e o país do lado não tem, naturalmente o meu país estará em desvantagem e as empresas irão para o país do lado. A menos que haja um único e total mercado livre, utópico. Mais: isto transforma-se numa espécie de imperialismo.
Não é realista pensar numa regulação única, mas isso não é mau. Trata-se de uma competição entre os diferentes países, com vantagens numas coisas para uns e noutras para outros.

Rainer Zitelmann tem 65 anos e o seu trabalho publicado tem tido dois focos principais: a abordagem histórica ao nacional socialismo e os ultra ricos, a partir de dentro e segundo a opinião pública

E não há um problema moral no capitalismo? A ideia de que a acumulação só é possível porque estamos a tirar de uns para dar a outros?
O chamado problema da soma nula. Tenho no livro dois gráficos sobre esta ideia. Como é que essa ideia pode estar certa quando, ao mesmo tempo, aumenta o número de ricos e diminui o número de pobres?

Podia estar a aumentar a pobreza noutros países, por exemplo. É aquilo que Keynes diz sobre a riqueza da Europa – só é possível porque tira de África a matéria para o crescimento…
Mesmo que consideremos o mundo inteiro, passa-se o mesmo. O número de pobres diminuiu ao mesmo tempo que aumentou o de bilionários. De onde é que vem o dinheiro? Isto não seria matematicamente possível numa soma nula? As pessoas não enriquecem por roubarem aos outros, isso é uma loucura. O Bill Gates tornou-se rico porque roubou alguém? Não, criou um produto que todos usamos, como aconteceu com o Google, que colocou os seus criadores entre as pessoas mais ricas do mundo. Não porque roubaram, mas porque criaram um produto que é útil para muita gente. É assim que as pessoas se tornam ricas no capitalismo e é uma diferença entre este e outros sistemas. Como é que as pessoas se tornam ricas na Rússia de hoje? Roubam, é uma cleptocracia. Não é assim que o capitalismo funciona. No capitalismo, enriquece-se quando aquilo que se cria é bom para todos. Os consumidores ganham com a riqueza dos outros, até têm a oportunidade de se tornarem mais ricos, porque compram mais barato.

"Se não houvesse a vontade de alguns bilionários irem ao espaço, seria mais difícil financiar a pesquisa que permitirá tornar mais barato ir ao espaço. Tudo aquilo que pagamos foi, em tempos, um luxo. Há quem olhe para os bilionários empreendedores e tenha inveja; e há quem olhe para as suas biografias e queira aprender alguma coisa. Quem, destes dois tipos de pessoas, terá uma vida melhor?"

Pode ser uma vantagem para os consumidores — mas, e para os trabalhadores? É sobretudo isso que o socialismo critica no capitalismo, a cativação da mais-valia criada pelos trabalhadores, não o que faz aos consumidores.
Claro, o socialismo não quer falar sobre os consumidores, percebo, mas eu também posso falar sobre os trabalhadores. Se não pagamos o suficiente, os trabalhadores vão embora. Eu tive essa experiência. Também fui empreendedor durante quinze anos e houve alturas em que, para dizer a verdade, devia ter pagado mais. O que aconteceu foi que os trabalhadores saíram da empresa. Hoje em dia, todas as empresas procuram novas pessoas, pelo que se uma não paga bem, os trabalhadores mudam de empresa. É competição.

Mais uma coisa sobre a justiça de termos gente muito rica. Bernard Shaw tem aquela ideia de que é justo guardar um pão para amanhã ou depois, visto que temos de comer todos os dias, mas não é justo guardar pães ilimitados, porque o pão ao fim de uns dias se estraga. Não é injusto guardarmos mais do que aquilo que podemos gastar, quando outros precisam? Não é dinheiro que se devia distribuir?
Bom, em primeiro lugar, o Bernard Shaw foi um apoiante de Estaline, pelo que para mim não é uma grande referência. Mas falemos sobre o que significa ser muito rico. Não acontece que um Elon Musk tenha biliões na conta bancária. 95 por cento daquilo que têm está nas suas empresas. Onde é que as pessoas muito ricas têm o dinheiro? Nas suas próprias empresas, na maior parte dos casos, ou em ações de outras empresas, mas a verdade é que este dinheiro está a ser útil, não está guardado. Se olharmos para a lista de pessoas mais ricas do mundo, a fortuna é estimada com base naquilo que valem as suas empresas, não se trata de dinheiro líquido. Mas mesmo que olhemos para os luxos dos mais ricos – que representam uma percentagem minúscula das suas fortunas – até estes fazem sentido. São estes luxos que permitem sustentar empresas em fases experimentais, de tal forma que estas possam otimizar os meios de produção, tornando os produtos mais baratos e acessíveis a todos. Se não houvesse a vontade de alguns bilionários irem ao espaço, seria mais difícil financiar a pesquisa que permitirá tornar mais barato ir ao espaço. Tudo aquilo que pagamos foi, em tempos, um luxo. Há quem olhe para os bilionários empreendedores e tenha inveja; e há quem olhe para as suas biografias e queira aprender alguma coisa. Quem, destes dois tipos de pessoas, terá uma vida melhor?

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