As notas também ardem. E a expressão queimar dinheiro ganhou forma em Portela do Sobral, em Abiul. Quando Paula colocou algum dinheiro no sótão, cerca de 2000 euros, não imaginava que em poucos minutos seria transformado em cinza.
As chamas chegaram esta terça-feira, sem avisar. Queimaram o telhado, tudo aquilo que estava no sótão e, só não foram mais longe, porque Fernando, marido de Paula, pegou nos 20 garrafões de água que tinham em casa e impediu que o fogo entrasse na cozinha, depois de ter descido as escadas. “Se isto pegasse aqui no sofá, ia a casa toda”, explica Fernando. E aponta para o sofá azul escuro, colocado mesmo ao lado da porta da cozinha que dá acesso ao sótão. Aliás, dava. Agora é uma casa a céu aberto.
Pelas escadas, estão espalhados os desenhos que os filhos do casal fizeram quando eram pequenos. Todos os livros da escola, todas as recordações de infância estavam fechados em caixotes que já não existem. Sobram restos de folhas, que se espalharam sem critério e que ainda deixam ver os nomes dos filhos, desenhados em letra de aluno da escola primária. De resto, desapareceram microondas, máquinas de café, roupas, faqueiros, cobertores, lençóis, três arcas de roupa de inverno e duas bicicletas.
Mas a sorte, ou falta dela, não termina aqui. Na sexta-feira da semana passada, foram dados os últimos retoques na pintura do interior da casa. Paula e Fernando demoraram vários anos a decidir se pintavam as paredes de todas as divisões e só avançaram este ano. A tinta fresca e branca durou três dias.
O fogo chegou a Portela do Sobral a meio da tarde. Os moradores estavam a senti-lo, pelo cheiro, e a vê-lo, através do fumo. Mas havia uma distância considerável a separar as chamas das suas casa. Tanto, que este casal foi trabalhar, sem que o fogo ocupasse as suas preocupações. E os dois filhos, de 18 anos e 22 anos, ficaram sozinhos em casa. Quando o incêndio chegou, continuaram sozinhos e o tempo só foi suficiente para fugirem.
Avisos vermelhos de calor e perigo máximo para fogos no interior norte e centro
Todas as pessoas daquela aldeia foram embora, tal como aconteceu em vários locais de Leiria, Pombal e Ourém nos últimos dias. Fogem entre o pânico e o calor das chamas e deixam o que demorou uma vida para construir para salvar a própria vida. Paula tinha chegado ao lar, onde ia começar o seu turno às 16h, e horas depois, quando o marido chegou a casa, já as chamas tinham destruído todo o sótão e foi então nessa altura que usou os garrafões de água. Nas ruas, nem sinal de bombeiros. E água também não tinham — não havia eletricidade para tirar água dos furos e os canos da água da rede não deitavam uma gota sequer. Aliás, ainda hoje não podem utilizar a água da rede, uma vez que os canos ficaram danificados e, sempre que abrem uma torneira, a água corre para lá dos canos.
Mas não é só a água que torna inviável a vida desta família naquela casa. “Os bombeiros não queriam que ficássemos aqui durante três, quatro dias, porque aquilo está quente e, ao arrefecer, pode ceder”, explicou Paula. Uma das tarefas difíceis, neste momento, é encontrar um sítio para ficarem durante várias semanas.
Nem os cães de Raul e Celeste se salvaram
Da casa amarela sem telhado até à casa de Raul e de Celeste, onde o fogo levou tudo o que estava à volta, são poucos metros de distância — é seguir em frente e virar à esquerda. Antes, este casal tinha vista para uns pinheiros que estavam mesmo do outro lado da estrada. Agora, têm vista para um descampado que se estende por quilómetros, todo em tons de carvão. Também fugiram e, só quando regressaram, é que perceberam o que tinham perdido. As chamas deixaram a sua marca no interior da casa, pintando as paredes de negro, mas não pouparam o que estava do lado de fora.
Raul e Celeste fugiram e não tiveram tempo de levar o que quer que fosse. Nem os animais. “Quando voltámos para cima, é que percebemos o que tinha acontecido. Nem tive tempo de salvar os três cães que estavam aqui”, conta Raul. Um dos cães foi retirado pela filha mais nova, que regressou a casa assim que soube o que estava a acontecer, e os outros dois continuavam debaixo dos materiais queimados. De resto, morreram patos, galinhas e pombos. Raul fala ainda sobre os materiais agrícolas que perdeu, enquanto Celeste coloca também o foco no frigorífico, nas arcas e nas loiças.
As contas ao prejuízo ainda não foram feitas. “Até tenho medo. É tanto dinheiro. E andou uma pessoa a lutar a vida inteira. Tenho seguro de recheio da casa, mas não sei se dá”, lamenta o homem, enquanto mostra a perna ferida, consequência da fuga.
O que ardeu e o que sobrou
Apesar de a aldeia de Portela do Sobral ter ficado cercada, a maioria das casas escaparam à fúria das chamas. “Não se sabe, é um milagre. Tinha aqui estas botijas de gás, por exemplo”, indicou Raul, mostrando as duas botijas que estavam mesmo junto à casa e foram as únicas coisas que não arderam.
Aliás, a poucos metros dali, continuando por um caminho de terra, Maria Manuel, irmã de Raul, sublinha exatamente a mesma sorte: “Olhe, ardeu tudo atrás de casa, tinha aqui os animais e a única coisa que não ardeu foi a botija, até o cano que estava ligado à botija derreteu e aquilo não rebentou”.
Três dias depois de passar aquele que foi “o pior incêndio de sempre”, e com os incêndios em Leiria em fase de rescaldo, os relatos multiplicam-se sempre com pontos em comum: terrenos perdidos, animais queimados e prejuízos ainda desconhecidos.
E há quem ainda não entenda qual é o critério do fogo quando chega perto das casas. É o caso de Paula, a quem ardeu o telhado, sempre que olha para a frente: “Esta casa é madeira, tem tudo por cortar à volta da porta e nada lá chegou. E uma pessoa que não tinha nada, arde tudo. Olhe, é porque tinha de acontecer”. Por Portela do Sobral não há, de facto, um padrão. Casas de madeira, que já não estavam habitadas, arderam, casas com pouca madeira, como a do senhor António, que vive agora num lar, arderam, casas sem madeira alguma arderam também e outras, exatamente com as mesmas características, ficaram intactas.