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ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Reportagem na Bemposta. A aldeia de 20 pessoas que as chamas cercaram em minutos: "Era como um chapéu de fogo"

Aldeia com 20 habitantes ficou cercada pelo fogo na noite de quarta-feira. À exceção de Florbela e do marido, que ficaram a molhar os carros, quem ali vive fugiu. E a casa de Emília acabou por arder.

A Bemposta ficou deserta. Poucos quiseram ficar na aldeia da freguesia de Alvaiázere enquanto o fogo passava. Emília faz parte da maioria, daqueles que preferiram fugir e, sem pensar, nem os documentos levou consigo. Deixou tudo em casa. Agora, sobra-lhe a roupa que tinha vestida na quarta-feira à noite. Ardeu tudo. Da pequena casa composta por cozinha, quarto, sala e casa de banho, ficou a parte metálica de uma cadeira, que estava junto à porta de entrada e as loiças da casa de banho. O resto ficou em pó, que se misturou com os pedaços das telhas.

Emília ainda não regressou à aldeia para ver o que sobrou da casa onde também moraram os seus pais. Foi para Pombal assim que começou aquele que foi um dos principais focos de preocupação durante a última noite em Leiria, e que juntou mais de 400 operacionais. Quem voltou logo para casa, assim que as estradas voltaram a ser transitáveis, foi a sua irmã. “Estou aqui de vigília”, dizia, enquanto garantia que os quase 40.ºC que se sentiam naquela rua ao início da tarde desta quinta-feira não eram fator para mais um reacendimento vindo do outro lado da estrada — um pedaço de terra que há um dia ainda podia chamar-se pinhal.

Além de irmãs, Emília e Lucinda são vizinhas. A casa de uma e aquilo que sobra da outra estão apenas separadas por um muito baixo muro e um jardim. Estavam as duas em casa quando as chamas, que já tinham anunciado a sua chegada pelo fumo negro que aparecia do outro lado do monte, ganharam velocidade e o vento as trouxe até ali. O dia estava quase a terminar e Lucinda estava a regar a terra de onde tinha arrancado batatas há pouco tempo. Não havia probabilidade de arder, porque não tinha erva, “mas aqui até a terra arde”. Nessa altura, chegou outro irmão, que vive na aldeia que cola a Bemposta: “Lucinda, vamos embora, que nós morremos aqui queimados”.

Lucinda obedeceu ao irmão e às chamas. Pegou no cão, entrou no carro e nem quis olhar para trás. A única coisa que via era a ausência de bombeiros. A não ser as pessoas que vieram das localidades próximas para ajudar, a aldeia da Bemposta estava entregue ao fogo e à sorte de este passar sem deixar estragos.

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Os bombeiros chegaram mais tarde, quando o fogo já tinha passado. Nessa altura, já Lucinda estava à porta da aldeia, à espera de luz verde para ver o que tinha sobrado. Teve autorização para subir a sua rua à 1h44 da manhã. “Depois andámos a noite toda a vigiar e a regar tudo, mas a casa da minha irmã já não tinha salvação.”

“Nunca pensei em preparar um saco de roupa. Nunca, nunca”

Enquanto as chamas cercavam a Bemposta, as pessoas saíam à pressa das suas casas. E a única preocupação, à exceção de Emília, foi levar os documentos. Roupa ou outros objetos nem faziam parte das hipóteses naquele momento. Aliás, nem naquele momento, nem quando o incêndio ainda estava a quilómetros de distância da aldeia. A ideia de que as chamas poderiam chegar até ali não fazia sentido para as pouco mais de vinte pessoas que ali vivem. “Saí à pressa, só levei a mala com os documentos, nada mais. Não houve tempo para mais e eu nunca pensei em preparar um saco com roupa. Nunca, nunca. Mas, olhe, aconteceu”, contou Maria, enquanto descansava, sentada numa cadeira à porta de casa.

Nos seus mais de 80 anos de vida, e de experiência em fogos, porque “todos os anos há um incêndio aqui e ali”, nunca viu nada assim. Achou que ia perder tudo e ficou ainda mais nervosa quando percebeu que os netos, adolescentes, estavam “aterrorizados” com o que estava a acontecer. “Ficámos completamente cercados e quando vimos que o fogo estava ali, compreendemos que tínhamos de sair. Foi uma coisa horrível. Com a idade que tenho, nunca vi tal coisa. Não há nada a dizer, está à vista”. E o que se vê é negro.

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Percorrendo a Bemposta, que se divide entre ruas íngremes, no meio de mato, os relatos são semelhantes: de fuga e de coração apertado por deixar o que se construiu durante uma vida inteira. Enquanto Maria olha para o que ardeu, mais abaixo, noutra rua, Emília Pinheiro tenta distrair-se com os feijões secos que apanha do chão. E até explica que o nome Emília é comum nesta aldeia: “Antigamente, havia uma Emília em cada casa. Agora, somos só quatro — eu, a Emília da casa que ardeu e mais duas”.

Esta Emília, a quem até os feijões que ficaram em cima de uma manta, na rua, conseguiram escapar ao fogo, fugiu num carro com os vizinhos. Em minutos, conta, o fogo chegou. “Isto já andava a arder de tempos em tempos aqui à volta, mas quando a gente deu por ela, já estava tudo. Foi uma aflição, o fogo mete muito medo”.

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E mesmo com os terrenos queimados à volta, Emília continua com medo. As chamas passaram, mas esta quinta-feira o fumo continuava a cobrir o céu — outro incêndio tinha começado a deflagrar perto da Bemposta e o vento não ajudava ao combate. A solução agora é regar o máximo que consegue, apesar de saber que “passado uma hora já está tudo seco outra vez”.

“As chamas eram como um chapéu de fogo”

Entre os poucos que ficaram na aldeia durante a passagem do fogo, está Florbela. Podia ter saído enquanto podia, mas preferiu ficar. Minutos depois de tomar aquela decisão, mesmo que quisesse mudar de ideias, já não era possível — as chamas já tinham cercado a sua casa. Viu-as saltar de uns pinheiros para os outros. “Eu estava no quintal a molhar os carros e ele passou por cima. As chamas eram como um chapéu de fogo”, contou.

Um dos motivos que fez com que ficasse com o marido na Bemposta foi o tipo de construção da sua casa. Ao contrário da casa de Emília, que estava coberta por vigas de madeira, esta não tem nem vestígio de tal material. Florbela estava descansada com a sua casa, mas nem por isso sossegava. É que do lado oposto da estrada estava outra casa, com madeira, botijas e terreno por limpar mesmo junto às paredes. Esta casa já não estava habitada e acabou por arder. Florbela ouviu quatro explosões, das quatro botijas que estavam lá dentro.

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“Isto é um inferno. Estava cada um por si”, recorda. E lembra-se também da dificuldade que foi conseguir molhar o seu terreno, ou tentar apagar as chamas que apareciam quando caíam fagulhas das árvores. Assim, que o incêndio começou, um dos postes de eletricidade ardeu e toda a aldeia ficou sem luz.

E aqui, como em todas as aldeias, é frequente o uso de furos de água, que só funcionam se existir eletricidade. Sem isso, só existia a opção de usar a água da rede. “Mas também, aqui nem com mangueiras, nem com nada. Eu tenho ali aquele bidão cheio de água e ontem nem conseguia chegar lá. Queria apagar as fagulhas que incendiavam, mas tive de dizer ‘não, desisto daquilo’”. “Foi uma loucura.”

Para onde vai o fogo a seguir? “Ele não pede licença”

Pela Bemposta passa o rio Nabão, um afluente do Zêzere. Não leva água, mas marca a divisão entre dois concelhos: Alvaiázere, onde pertence esta aldeia, e Ourém, onde fica a aldeia de Parcerias. No dia seguinte ao incêndio na Bemposta, Idalina, Maria do Carmo e Felizbela juntam-se para fazer um balanço daquilo que os vizinhos viveram. “Só ardeu do outro lado do rio, para aqui não veio nada, mas deve ter sido uma aflição”, desbafa Felizbela.

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Na noite anterior, as três não saíram de casa, já que as chamas não chegaram a entrar na sua aldeia. Ali, o cenário é verde, mas já se faziam os preparativos para a possível chegada de um incêndio. Durante a tarde desta quinta-feira, as chamas voltaram a uma das encostas que protege aquelas aldeias e esta população não quer viver momentos como aqueles que os moradores da Bemposta vivenciaram. Tinham água e uma certeza: “Sabemos que o fogo não pede licença para entrar, mas não saímos daqui”.

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