Quando se muda de casa, há sempre nervosismo à mistura. Que o diga Ricardo Araújo Pereira, que regressa à SIC, canal onde se estreou em televisão em 2002, agora para ser a cara do programa “Isto É Gozar Com Quem Trabalha”, com estreia marcada para o próximo domingo, 1 de março. Mas isto do nervosismo pode parece estranho, até porque o humorista está mais do que habituado a este registo: no ano passado, esteve na TVI com o “Gente Que Não Sabe Estar”. Em 2008, ainda na SIC, com “Esmiúça os Sufrágios”.
O novo programa é feito com a “velha” equipa de guionistas/humoristas (Guilherme Fonseca, Cátia Domingues, Manuel Cardoso, Miguel Góis, Cláudio Almeida, Joana Marques e Luís Rodrigues, autor da página Insónias em Carvão, e responsável por muitos memes e partes gráficas do programa). Entre fotografias, apresentações, fechar ou não fechar guião, o Observador esteve à conversa com o Ricardo Araújo Pereira, que nos deixou três garantias: André Ventura não tem lugar neste programa, vai-se gozar também com o discurso sobre a política (jornalistas incluídos) e podem vir aí momentos criativos ainda não testados. Porquê? Porque aqui, além de se gozar com quem trabalha, há tempo para fazer o que ainda não foi possível.
É mais difícil fazer este tipo de programa num ano sem eleições?
Sim, é muito mais difícil. Há menos incidentes… eu estou preocupadíssimo com a estreia. Foi semana de férias de Carnaval, só se fala de coronavírus, que não é um tema especialmente hilariante, vamos ver como o abordamos. Esse é um problema, não escondo que estou muito aflitinho, porque hoje é quarta-feira e no domingo tenho coisas para dizer. Esta semana é meio mortiça e o programa vive de atualidade
E vocês querem manter a linha do anterior. Ou seja, não vão fazer um programa só sobre coronavírus, por exemplo?
Receio que se torne cansativo e que não tenhamos capacidade para fazer meia hora sólida sobre o coronavírus. Acho que é divertido que o programa exista. Nos Estados Unidos, há vários programas deste género. É divertido que aqui haja um, em que há um momento da semana em que vemos um resumo humorístico do que se passou. Qual é o problema? É que é bastante difícil de fazer. Um não é assim tanto, mas um ano, como fizemos em 2019, isso sim, é. É uma prova de fundo, uma maratona. É chegar ao fim do programa de domingo e perceber que o relógio já está a contar para a semana seguinte.
Com esta vossa transferência da TVI para a SIC, é possível que surjam mais apostas em programas deste formato?
Só tem havido quando nós o fazemos. Mesmo quando estamos fora, tem havido pequenas ameaças que não ganham expressão. Tirando no Canal Q, o “Inferno”, mas em canais generalistas não. Isso é muito doloroso. Uma coisa é fazer um, juntamo-nos uma semana e está feito. Outra é fazer mais vezes, requer uma consistência que outro tipo de trabalhos não tem. Para sketches, por exemplo, temos algum tempo, fazemos cinquenta para aproveitar dez. É outra coisa. Fazer isto requer um estofo, não quer dizer que seja melhor, é outro tipo de coisa.
E o Ricardo ainda se sente nervoso, depois de “Gente Que Não Sabe Estar, de “Esmiúça os Sufrágios”…
Bastante. Isso não passa, no meu caso.
Então nunca se vai fartar de gozar com política. Uma vez, noutra entrevista, falámos da ambição que o Ricardo manifestava de um dia abandonar o programa e ele viver por si próprio.
Isso seria ótimo, significava que nós todos tínhamos feito um trabalho com uma qualidade tal que o próprio programa se tornava uma instituição. Seria uma marca. É como o Daily Show, nos Estados Unidos da América, que nem sequer começou com o Jon Stewart. É muito improvável que, quer no grupo de autores, quer no grupo de apresentadores, ainda lá esteja alguém do princípio do programa. Significa que se criou um espaço que neste dia, a esta hora, dizem-se coisas sobre o que foi esta semana. Era divertido que isso acontecesse.
Na apresentação, percebemos que o programa vai ter convidados. Era capaz de convidar André Ventura?
Não o convidámos no programa anterior. Nós falamos dele sem nenhum problema, mas tê-lo lá é outra coisa. Na primeira parte, dizemos o que nos apetece, sobre as figuras todas. Na segunda parte, quando temos o convidado, isso não é exatamente assim nem eu acho que possa ser. Quando convidamos alguém há duas coisas que não podemos fazer, porque eu não gostaria de ver esse espectáculo: uma é enxovalhar a pessoa, e a outra é bajular a pessoa. São ambas inadmissíveis. Há ali um meio termo em que tentamos provocar o adversário com coisas que às vezes podem ser duras de dizer, mas estão embrulhadas com piadas com ponto de interrogação no fim. E assim podemos ir mais longe do que quando estamos a falar a sério. Com o André Ventura não me apetece fazer esse jogo. Porque o próprio André Ventura é contra o sistema. E eu sou a favor. O sistema chama-se democracia e, portanto, eu sou capaz de fazer esse jogo com as pessoas que estão dentro desse sistema, incluindo quem esteja muito distante da minha área ideológica. Eu tenho lá gente do CDS sem nenhum problema.
Por exemplo, o novo líder centrista, Francisco Rodrigues dos Santos…
Sim, não tenho nenhum problema com isso. Tenho é dificuldade em conceber o que é que seria uma interação minha com André Ventura.
Porque não seria engraçado?
Não, exatamente. Não vejo lado humorístico nisso.
Porque poderia ser mais vantajoso para André Ventura, do que para o programa.
Repare, eu nem estou preocupado com o que resultaria. Eu na primeira parte do programa digo o que me apetece sobre André Ventura correndo riscos, não sei qual é o efeito. Imagine que acontece cá o que aconteceu nos Estados Unidos. Os humoristas, em peso, fizeram pouco do Trump. O que é que aconteceu? Nada, ele ganhou. Isso é um facto. Uma das interpretações, não achando que é absurda, mas não sei se subscrevo, é: será que não foi também por isso? Será que isso não ajudou? O facto dele ter todo o país mediático contra ele, ajudando-o a legitimar a conversa, que é absolutamente ilegítima, do facto dele ser fora do sistema. De ser um bilionário a vir dizer ‘não, não, eu sou um rebelde’. Um homem milionário que estava pendurado no Estado, que não paga impostos e continua sem pagar.
Ou talvez cá estaremos a “parir um monstro”…
Na verdade eu não sei que efeito as coisas podem ter, a esta distância, nem sequer à posteriori. Eu acho que os humoristas fizeram muito bem, porque o trabalho deles é aquele, perceber o que é ridículo e apontá-lo. Será que isso teve efeito? Não sei, nem me interessa na verdade. Nós aqui no programa, é que não temos grande responsabilidade. Há quem discorde, mas a única responsabilidade que tenho é sobre as piadas, quando uma piada não tem graça. O resto… não tenho responsabilidade de educar as pessoas, nem sequer tenho essa legitimidade, ou indicar o sentido de voto.
Caindo num certo moralismo, talvez?
Sim, e eu não estou aqui para pregar. Até acho que não é esse o contrato tácito que eu assino com as pessoas. As pessoas que leem a última página da Visão não pensam que vão ouvir coisas sensatas. Para isso vão ler o Pacheco Pereira ou o Rui Tavares. A mim ouvem-me, leem-me e veem-me apenas na medida em que eu as possa fazer rir. E é assim que está certo.
Quando vocês dizem que o programa não será só sobre política, é porque o Ricardo, também com alguns anos de Governo Sombra, já se está a fartar de falar sobre isso?
Não necessariamente. O programa vai ser ligeiramente maior do que era. E, na verdade, o programa nunca foi só sobre política: falámos do juiz Neto de Moura, por exemplo. Mas acho que aqui há hipótese de fazer outras coisas que, por falta de tempo e de calma para deixar entrar isto em velocidade de cruzeiro, não fizemos antes tanto como queríamos. Este programa mais do que ser sobre política, vai ser sobre o discurso sobre a política. E isso envolve a comunicação social…
Portanto, vão desancar nos jornalistas?
Sim, também merecem. Os comentadores… o discurso sobre a política às vezes é mais interessante do que o acontecimento político.
Então afinal não vão gozar com a classe trabalhadora, como indica o título do programa. Achei estranho, vindo de alguém de esquerda como o Ricardo…
O título tem a ver com gente com empregos a sério, ao contrário de nós. Mas, de facto, o que é que tem mais graça? Acertar com a maçã podre na testa do rei, ou na testa do pajem? [faz um parêntesis] Não é dopagem no sentido do laboratório, é do-espaço-pajem. É óbvio que é na testa do rei! Mas a partir do momento em que alguém diz ‘na testa do pajem nunca se pode’, é off limits. Aí, de um certo ponto de vista, o pajem passa a ter um privilégio que nem o rei tem. Ou seja, volta a ser divertido. Sempre que se define um tabu, de repente, nós pensamos: ‘ah não se pode… porquê?’. Eu até acho que há muito bons argumentos para que ninguém esteja a salvo do olhar humorístico.
Isso quereria dizer que seríamos mais iguais, apesar de ser utópico.
Não sei se é. Há um substrato igualitário no facto de ninguém estar a salvo de que o olhar humorístico pouse sobre ele. 80% do que nós falamos é sobre o Governo e menos sobre a oposição. Agora o Governo é este, mas quando for de outro partido vai acontecer a mesma coisa. Muita gente critica-me porque, como sou de esquerda, fiz imensas piadas sobre o Cavaco Silva, e poucas sobre o Francisco Louçã. É incomparável, Cavaco Silva foi dez anos primeiro-ministro, mais dez como Presidente da República. Francisco Louçã foi líder de um partido que nem sequer tinha 10% na altura em que lá estava. Claro que fiz mais piadas sobre o primeiro. E isso tem uma razão humorística e não política. Não tem a ver com o facto de eu votar à esquerda. Há quem ache que só se pode fazer humor sobre um determinado quadrante. O partido em que eu voto mais vezes, como agora na eutanásia, que tem uma posição contrária à minha, às vezes tem opções bizarras.
Às vezes até pode dar mais gozo.
Sim, claro.
Agora que a equipa já se conhece mais, olhando para os programas que fizeram, o que é que gostava mesmo de conseguir fazer, que não fez?
Há sempre alguma coisa. Em 2015, a discussão política, não sei porquê, era sobre plafonamento. E tivemos uma ideia: pedimos a um jornalista para ir para a rua perguntar às pessoas se sabiam o que era o plafonamento. Se respondessem que não, era bom. Depois perguntávamos quais eram os dois ingredientes da pizza de José Sócrates. Recolhemos vários depoimentos com mais gente a responder que sabiam quais eram os ingredientes. Claro que isso implica termos a capacidade de ter alguém que vá fazer essas perguntas, de ver o que é para aproveitar.
Gostavam de ir mais vezes para a rua, é isso?
É uma hipótese, mas não necessariamente. Gostávamos de tentar fazer coisas mais imaginativas e que nós, quando estamos no sofá, pensamos: ‘ah, olha, não estava à espera, realmente é bem visto’. Quando fizemos um jogo de computador sobre o juiz Neto de Moura fomos para a cama pensar que tinha sido engraçado, porque não tinha havido mais sítios na televisão portuguesa onde isso tivesse acontecido.
E a SIC não estabeleceu limites?
Não nada, o Daniel Oliveira está doido para que haja extravasamento.