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Adriano Fagundes

Adriano Fagundes

Ricardo Ribeiro. "Devo tudo à música e ao fado: o carro, a casa alugada, a comida que ponho na boca e a vida"

Aos 37 anos, Ricardo Ribeiro lança um disco de voz, piano, percussão e pouca guitarra. Em entrevista conta histórias de vida, lembra a família, os "mestres", reconhece erros e agradece o que tem.

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Sentado na esplanada de um café e restaurante lisboeta, na tarde da última quarta-feira, 17 de março, Ricardo Ribeiro demorou algum tempo a concentrar-se para uma entrevista com o Observador. Pediu logo gentilmente desculpa por isso, disse que estava com dificuldades em não pensar em como chegaria a casa, o que se explica rapidamente: vive em Cascais, tinha pouco gasóleo no carro e não sabia se conseguiria abastecer, devido a uma greve que só terminou na manhã seguinte. “E em casa tenho o meu cão… mas bom, isto compõe-se, vamos a isto”, logo acrescentou.

Compôs-se, claro: com um novo álbum pronto a ser editado — intitulado Respeitosa Mente, chegará às lojas e plataformas digitais de streaming na próxima sexta-feira, 26 de abril –, o cantor e fadista acedeu a uma conversa longa sobre um novo disco que “não é de fados”. Se não é de fados,é de quê, poderá o leitor perguntar-se? É de poesias (de António Ramos Rosa, Giacomo Leopardi, Miguel Martins e de Tiago Torres da Silva, entre outros) que Ricardo Ribeiro canta por cima de “música nova” que compôs e gravou com o percussionista Jarrod Cagwin e com o pianista e poeta João Paulo Esteves da Silva, cuja influência no disco é clara: é o autor dos poemas de três das 12 canções e de oito das 12 melodias, além de tocar piano com a elegância que lhe é habitual.

A conversa com o Observador, porém, não se circunscreveu apenas a este novo álbum, a esta “aventura” a três onde ao canto de Ricardo Ribeiro (em certos momentos afadistado, claro, porque “não posso dizer que não sou filho do fado, é o meu pai e a minha mãe e não deixará de ser”), que neste disco também toca guitarra e baixo no disco, alia-se o piano e as percussões do baterista norte-americano há muitos anos residente na Europa, que integra a banda de Rabih Abou-Khalil.

É assim a capa do novo álbum de Ricardo Ribeiro

O disco, sexto álbum de estúdio de Ricardo Ribeiro, foi um ponto de partida para a entrevista. É um belo ponto de partida, como se percebe pelo pathos solene da segunda faixa “Envoi”, pelas notas de piano logo no início do tema seguinte “Atraso”, pelos versos de Ary dos Santos cantados com brilhantismo por Ricardo Ribeiro na canção que estará mais próxima de soar a um fado, “Canto Franciscano”, pelo swing de “Vou Fumar um Cigarro” e seus memoráveis versos (“Vou fumar um cigarro a outra vida / a um país distante que é lá fora / vou à varanda ver-me de fugida / correr pelo passado que demora”) e pela “Deserta Liberdade” ansiada por António Ramos Rosa, que Ricardo Ribeiro e os seus dois parceiros transformaram em canção que lhe faz jus.

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Durante 55 minutos de entrevista, porém, Ricardo Ribeiro falou de outras coisas que não este novo capítulo de uma carreira que começou cedo para quem tem 37 anos (editou o primeiro álbum em 1998 ). Falou do fado em que tem “história” e que é musicalmente o seu pai e a sua mãe, mas também de música — às duas coisas deve “tudo”, do “carro, casa alugada e comida que ponho na boca” até não ser “um indivíduo tão escuro e mais débil ainda”. Lembrou ainda dores passadas e como lhes deu a volta, falou do amor da sua mãe pelo seu pai, de leituras e de discos, recordou o momento em que com 25 anos descobriu que só tinha um rim e a perda de mais de 50 quilos que o transformou fisicamente. Respondeu, durante quase uma hora, como costuma fazer, com muitas citações e uma eloquência de pendor filosófico. No final, avisou e garantiu: “Se não levar a minha vida como falo, não valho nada. Não apregoo uma coisa e faço outra”.

“Não canto fados com um pianista, este não é um disco de fado”

Esta entrevista esteve para acontecer um dia antes, mas teve um percalço. Quer contá-lo?
Foi o gasóleo. Houve uma greve, que é bem legítima, mas fiquei sem gasóleo. E ainda estou sem gasóleo. Tive que adiar — peço as mais sinceras desculpas — porque ontem se saísse de Lisboa uma hora depois daquela a que saí não conseguia chegar a casa, porque vivo em Cascais. Com o trânsito para-arranca seria impossível. Hoje vim a 80 km/h para ver se conseguia chegar a tempo. Consegui chegar aqui, estacionei o carro e vamos lá ver se isto se compõe e se consigo pôr gasóleo hoje.

A primeira referência que vi a este disco surgiu numa entrevista que deu no verão passado, quando foi atuar a Évora. Na altura, disse que ia fazer “um disco fora dos fados, uma coisa um bocado louca, com o João Paulo Esteves da Silva”. Quando é que teve a ideia de fazer esta “coisa um bocado louca”?
[Risos] Conhecia o João Paulo, já o seguia há uns anos como músico e como poeta. Quando o conheci pessoalmente e quando colaborou comigo no Hoje É Assim, Amanhã Não Sei [disco anterior de Ricardo Ribeiro, de 2016] — em que tocou em três temas e compôs dois –, sentimos uma necessidade e uma vontade de trabalhar juntos numa coisa que fosse mesmo nossa, com repertório maioritariamente original. Este disco tem duas cantigas [“Canto Franciscano” e “As Mondadeiras”] que não são originais, tudo o resto é música nova.

Resolvemos começar a trabalhar. Resolvi começar a mandar-lhe poesia, ele resolveu começar a enviar-me canções — com poemas dele ou não — e assim foi acontecendo. É “uma coisa um bocado louca” porque este disco vive de duas histórias que funcionam em paralelo: uma é baseada no que é vivido, no que é profundamente real, a outra na imaginação. Há poemas que têm a ver com histórias imaginadas por mim e outros que têm a ver com o mundo real, com aquilo que vivo na realidade ou pelo menos com aquilo que me dói [sorri].

Da esquerda para a direita: Jarrod Cagwin (percussionista), Ricardo Ribeiro (cantor e guitarrista) e João Paulo Esteves da Silva (pianista), o trio que gravou este álbum (@ Pedro Soares)

Pedro Soares

A minha dúvida era se este disco tinha começado de uma vontade de fazer algo com o João Paulo Esteves da Silva ou se o Ricardo já tinha ideias de sons e música e o foi chamar para ajudar a gravá-los.
A vontade começou por ser trabalhar com o João. Há músicos com quem isto me acontece, uma coisa telepática, não sei explicar o que é — e também não quero explicação. Gosto muito de matemática e há um matemático que costumo frisar muito, que é o Henri Poincaré. Ele diz: o acaso nada mais é do que a medida da nossa ignorância. Os três músicos com quem senti essa coisa telepática foram o Rabih Abou-Khali, o Pedro Jóia e o João Paulo Esteves da Silva. Há qualquer coisa que nos une que não sei explicar o que é, mas também não quero uma explicação, quero viver. Com outros aconteceu-me algo parecido, mas não da mesma forma.

É curioso que nos últimos anos cantores ligados ao fado têm-se aliado muito a pianistas. Tivemos há uns anos o  Carlos do Carmo com o Bernardo Sassetti, por exemplo, mas mais recentemente o João Paulo Esteves da Silva tocou no último disco da Carminho, a Cristina Branco canta com o Luís Figueiredo (com quem a Gisela João já deu concertos), o Camané tem neste momento um duo com o Mário Laginha e o Pedro Moutinho gravou recentemente um disco produzido pelo Filipe Raposo. O que é que esta tendência revela?
Não sei explicar isso muito bem… Há uma coisa que é de salientar: eu não canto fados com um pianista, a música que canto é nova. Neste disco tenho apenas a base de um fado. Como às vezes sou um bocadinho provocador e costumo dizer que o fado não faz o fadista mas o fadista pode fazer o fado — ou não –, quero ver quem é que se atreve a dizer que esse tema é fado ou não é fado. Calo-me, não minto mas omito, para ver até que ponto as pessoas chegam. Gosto deste desafio. Agora, o que faço com o João Paulo é uma coisa nova e única, canto músicas originais, não há fados aqui. Há uma base de um fado — e agora quero ver quem vai dizer se aquilo é novo fado, se é fado ou se não é fado. É isso que quero que me expliquem.

O que é que as pessoas poderão não imaginar que gosta de ouvir, fora do fado?
Prokofiev, por exemplo. Alim Qasimov. Música da Mauritânia. Brahms, Schubert, Schuman. Música da Mongólia. Tenho um gosto musical muito estranho, sou muito louco [risos].

"Fado? Tenho 37 anos, mas tenho história nesta cantiga. Comecei muito pequeno e lidei com pessoas muito antigas. Não me é permitido cantar determinadas coisas e fazer certas coisas dentro da tradição fadista. Tenho necessidade de dizer que este não é um disco de fados porque não me é permitido dizê-lo, porque não o é efetivamente."

Tem tido muito cuidado em sublinhar que este não é um disco de fado, é um disco de canções. É curioso fazê-lo numa altura em que tudo parece poder ser fado, em que se questionam os limites do fado. É revelador de um respeito pelo código e pela história do fado?
Espero que não se tome o que vou dizer como uma arrogância. Tenho 37 anos, mas tenho uma coisa que por um lado é um problema e por outro é uma bênção: tenho história nesta cantiga. Comecei muito pequeno e lidei com pessoas muito antigas, não velhas, que me incutiram determinados valores. O mundo precisa de valores, não dos meus mas de valores de justiça, fraternidade, bondade e fundamental respeito por aquilo que são as tradições. É evidente que uma revolução hoje pode ser uma tradição amanhã mas há coisas que não mudam. O meu modo de te tratar como meu semelhante também não muda: a minha obrigação no mundo é tratar-te bem. Da mesma forma, tenho de tratar bem aquilo que os antigos nos deixaram, porque é de todos.

Não me é permitido cantar determinadas coisas e fazer certas coisas dentro da tradição fadista. Não tomem isto como uma arrogância. Também não se trata de ter a cabeça fechada, se me conhecerem e forem investigar o que faço poderão ver que não tenho mente fechada ou espírito fechado. Apenas tenho uma história e conheço as bases, aquilo que a tradição me quer dizer. A palavra tradição vem do termo latino traditio e significa: aquele que transporta algo para dar aos outros. Ao transportar algo para dar aos outros, tenho de cuidar muito bem daquilo que trago e entregá-lo muito bem. Isto não quer dizer que não existam aventuras porque nenhuma expressão [artística] ficou fechada. É importante fazer-se coisas novas e desafiar-se determinados pontos da tradição que achamos que são limites, mas pessoalmente desafio-os de uma outra maneira — só o tempo irá mostrá-lo. Não é arrogância, é uma constatação: faço isso de uma outra forma dentro da própria tradição, vou colocando pequenas coisas da minha personalidade artística que só com o tempo as pessoas irão perceber. Parece igual [ao tradicional] mas não é.

Neste disco o que acontece não é apenas isso, certo?
Tenho necessidade de dizer que este não é um disco de fados porque não me é permitido dizê-lo, porque não o é efetivamente. Desde logo não canto quadras, quintilhas, sextilhas, alexandrinos ou decassílabos. Não canto métricas dos fados e não canto melodias que sejam identificadas como sendo de fados, que tenham essa linguagem. Um indivíduo que vem do Alentejo tem o seu sotaque — e muito bem, assim seja para sempre. Existem formas de linguajar e o fado tem a sua própria linguagem, é uma expressão idiomática do povo português. Salvaguardo sempre esta questão porque o disco não é de fado.

"As pessoas confundem talento com jeito, não pode ser -- como também não se pode confundir valor com gosto ou estética com ética. Consegue-se perceber que uma pessoa tem talento quando se acredita nela, quando não se entende nada e não se sabe porque é que se acredita. Isto é o talento. O jeito é quando tentas começar a entender."

Já tinha dito bem antes de fazer este disco: “Não posso fazer qualquer coisa porque me dá na gana, porque sou muito talentosinho ou muito giro” — e chamar-lhe fado, acrescento eu.
É. Voilá. As pessoas confundem talento com jeito, não pode ser — como também não se pode confundir valor com gosto ou estética com ética. São campos muito distintos. Hoje em dia confundimos tudo, talvez tentemos confundir a nosso belo prazer porque nos serve. É preciso não confundir as coisas porque qualquer ser humano nasce com jeito para alguma coisa. O talento é outra coisa, é alguém que nasce e tu sentes. Por isso, um artista não precisa de ser entendido, precisa de ser acreditado. É preciso acreditar nele. Nem sempre é preciso perceber, é preciso acreditar.

Mais do que perceber ou acreditar no que a pessoa canta, é preciso então acreditar nela quando o faz, é isso?
É certo! Consegue-se perceber que uma pessoa tem talento quando se acredita nela, quando não se entende nada e não se sabe porque é que se acredita. Isto é o talento. O jeito é quando tentas começar a entender.

[“Depois de Ti”, o primeiro single revelado do novo álbum de Ricardo Ribeiro:]

Já lhe passou pela cabeça o que pensará deste disco quem dizia que o Ricardo Ribeiro era um “purista” do fado?
Meu querido amigo, eu “gasto muito pouco aos 100”. Resolvi esses meus problemas. Não estou preocupado com o que as pessoas possam pensar, o importante para mim é a obra. É evidente que faço a música para os outros e para fazer bem aos outros, não faço uma coisa egocêntrica, para mim. É evidente que a viagem [musical] é minha, o que sinto é meu, mas faço-o para os outros. Porém, o ser humano é contraditório e deixei de me preocupar com muita coisa. Se alguém vai gostar ou não isso é problema seu, não é meu. Fiz com todo o amor, se a pessoa não entendeu aquele amor e não acreditou naquilo não posso fazer nada. Continuarei a cantar e não tenho de justificar nada, o importante para mim é o meu caminho, é a arte que me acontece, a música que me acontece, a poesia que me acontece, a necessidade furtiva dentro de mim para o belo, para o que me faz bem e para o que sei que vai fazer bem aos outros.

"É evidente que sou cheio de contradições, mas vivo para amanhã ser melhor. O que se diz preocupa-me só um pouco, já não tem relevância, poderei ficar triste mas o que importa é a obra. Quando fiz uma pequena apresentação deste álbum, escrevi uma frase que diz: o entretenimento é para esquecer a vida, a arte é para lembrar a vida. Eu não quero esquecer a vida, quero sempre lembrar a vida."

Se posso ficar triste? Claro, se pessoas de quem goste e que considero disserem uma coisa… mas sei que essas pessoas terão o bom senso de perceber que não estou a cantar fados. Pessoalmente posso gostar ou não gostar das coisas, não devo é confundir o valor com o gosto. Esta conversa pode parecer presunçosa, dar a ideia que “este gajo está muito cheio dele”, mas não: estou cheio é daquilo que sou movido no mundo, que é a arte e o bem. É evidente que sou cheio de contradições e cheio de porras más, mas vivo para amanhã ser melhor, vivemos para evoluir a consciência. Às vezes também penso mal, sou ser humano, sou passível de erro. A consciência dá-se por contrastes, se todo o mundo fosse azul ninguém sabia o que era o azul, não havia um contraste. O que se diz preocupa-me só um pouco, já não tem relevância, poderei ficar triste mas o que importa é a obra. Quando fiz uma pequena apresentação deste álbum, escrevi uma frase que diz: o entretenimento é para esquecer a vida, a arte é para lembrar a vida. Eu não quero esquecer a vida, quero sempre lembrar a vida.

Agora uma pequena provocação cordial…
… Faça favor.

Quando canta não deixa inteiramente de ser fadista, pois não? Estou a pensar na forma como canta o “Canto Franciscano”, como canta aquele “há quem lhe chame saudade” do segundo tema do disco, como canta a “Deserta Liberdade”.
Pois muito bem, está à vontade para me provocar porque não me levo demasiado a sério. Gosto quando as pessoas me dizem:  é muito aciganado, muito árabe, isto ou aquilo. Fico contente porque isso também sou eu, não é uma coisa que sinta como depreciativa. Na verdade não é bem aciganado, é mais árabe, mas não interessa nada, não me levo demasiado a sério.

Agora, uma pessoa pode ficar sem pai, o seu pai pode morrer, mas ter-se-á sempre um pai, não? O pai pode ser um grande assassino, será sempre pai. A mãe a mesma coisa. A mesma coisa acontece no fado, é igual: não posso dizer que não sou filho do fado, o fado é o meu pai e a minha mãe e não deixará de ser.

Ricardo Ribeiro. 37 anos, foi pastor, trabalhou nas obras, cantou em casas de fados e lançou o primeiro disco há 21 anos (@ Adriano Fagundes)

Adriano Fagundes

Achei curiosa a presença neste disco de um poema do Pedro Homem de Melo, que também estudou o folclore e a tradição portuguesa e que teve textos cantados pela Amália Rodrigues, por exemplo. Teve-os desde logo naquele que é, corrija-me se estiver enganado, o seu disco preferido da Amália.
Sim, o Cantigas de Uma Língua Antiga [de 1977].

O que é que o fascina mais nesse disco?
A maneira como a Amália canta, o acompanhamento, a poesia e as composições.

Consegue escolher três ou quatro discos de fado ou de outro género musical que o arrebatem, que tenha no seu altar de preferências?
Sim. Da Amália é o Cantigas de Uma Língua Antiga. Há um outro disco de uma cantora de que gosto muito que se chama Mayte Martin, o disco chama-se Tempo Rubato. Também o disco Yara, do Rabih Abou Khalil, entre outros.

Canta também neste disco textos do António Ramos Rosa, do Giacomo Leopardi…
Gosto muito do Ramos Rosa, leio-o muito. Quanto a Leopardi, domino o italiano, é uma língua de que gosto muito. Uma das primeiras viagens que fiz a Itália aconteceu quando tinha 20 anos e fui a Recanati, onde está a casa-museu de Leopardi. Comecei a interessar-me e tenho muita coisa dele, é fascinante.

21 poemas para o Dia Mundial da Poesia

“Se não levar a minha vida como falo não valho nada”

A leitura é algo de que é muito aficionado. Ela enquadra-se naquilo de que já falou no passado, o que chama de “desejo de profundidade”? E o que é isso exatamente?
É não ver as coisas como elas se aparentam, mas ver através delas. A profundidade encontra-se através das coisas e não nas coisas em si.

O que é que tem lido recentemente que mais gostou?
Li agora uma poetisa fantástica, Maria Amélia Neto. É fantástica. Por causa dela escrevi dois poemas, tenho um pseudónimo que nem interessa dizer. Ela era de 1960, morreu muito cedo, a poesia é fantástica. Estou também a ler agora “As Páginas Esquecidas” do Agostinho da Silva, o livro que saiu há pouco tempo. Gosto muito do professor Agostinho da Silva, mas tenho lido maioritariamente muita poesia e muita filosofia. Há pouco tempo andei a ler um livro de um filósofo indiano de que gosto muito, Sri Ram, que se chama “Em Busca da Sabedoria”.

Também tem uma história curiosa com um “Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa”, pelo qual pagou, salvo erro, 500 euros.
Sim, sim [sorriso]. Paguei 500 euros em versão digitalizada, mais uns quantos trocos. Disse há pouco que gasto pouco aos 100 mas de vez em quando faço assim umas loucuras. Gosto muito da etimologia, aprendi com o Platão, seduziu-me para ver através das palavras. Às vezes utilizamos palavras… Este título com o Respeitosa Mente, sabe de onde vem a palavra respeito? Vem de uma palavra latina que é respicere, que verdadeiramente significa “o que sabe ver”. Ter respeito pelo outro é saber vê-lo.

"A minha tia lia-me e dava-me coisas para ler, mas foi no colégio [interno e diocesano] que comecei a ganhar mais o bichinho da leitura. Tenho fases em que não leio nada, quase só oiço música, depois tenho outras fases em que só leio, passo o tempo na casa de fados lendo, naqueles intervalos [de canto] estou só lendo, lendo, lendo."

Tem gosto pela leitura desde criança ou isso surgiu mais tarde, já no colégio diocesano [interno] em que estudou?
Apareceu cedo porque a minha tia lia-me e dava-me coisas para ler, mas foi no colégio que comecei a ganhar mais o bichinho da leitura. É estranho porque tenho fases em que não leio nada, quase só oiço música, depois tenho outras fases em que só leio, passo o tempo na casa de fados lendo, naqueles intervalos [de canto] estou só lendo, lendo, lendo. Agora li dois livros pequeninos, quase cadernos, do Manuel de Freitas e da Maria Amélia Neto — e desde aí estou sem ler. Tenho fases, leio quatro ou cinco livros de uma assentada, depois repito alguns, leio certos livros duas ou três vezes, como o “Riso de Deus” do António Alçada Baptista, que é um livro de que gosto muito.

O ano passado deu uma entrevista muito emotiva no programa “Alta Definição”, que marcou muitos espetadores. Falar de todos aqueles assuntos [a relação inicialmente complicada com os pais, uma tentativa de suicídio em criança, um período turbulento que viveu entre 2012 e 2014/2015] serviu de terapia?
Não… foi uma exposição — já sabia que seria assim — do que sou verdadeiramente, daquilo que tenho vivido e daquilo que tenho aprendido. Terapia não porque essa parte resolvo-a sozinho [sorri], faço-a no meu sofá, no meu “cantinho das punições” — como lhe chamo — resolvo isso tudo,  penso e vejo as coisas. O Daniel é um indivíduo muito interessante pela maneira como olha, o olhar dele emana alguma coisa.

Posso estar aqui a dizer coisas muito bonitas, frases que crio ou que cito, mas se não levar a minha vida como falo não valho nada. Tudo aquilo que está nessa entrevista é o que vivo e faço, não apregoo uma coisa e faço outra. Gostava que as pessoas entendessem que o que lá disse não é só dito, é dito e é feito.

Ricardo Ribeiro pela lente do fotógrafo Adriano Fagundes

Falava há pouco de como está cheio de contradições. Nessa entrevista falava de coisas más que vai tentando matar todos os dias…
Às vezes não as conseguimos matar mas vamos tentando. Tentar às vezes pode ser só um tipo chegar a casa e dizer: “fui arrogante, não tive calma ali, epá mas para quê? Isto é tão relativo, dura tão pouco tempo, as pessoas têm falhas, não condenes logo”. Ainda ontem tive uma má atitude, uma má resposta, é natural — o importante é um tipo perceber e dizer: não, acalma-te, respira, as pessoas têm falhas.

Esta história do gasóleo, por exemplo: ontem [quarta-feira] roguei pragas aos senhores e depois lá disse “que estúpido, mas porquê se eles estão a reivindicar qualquer coisa das suas vidas?” Não paramos para pensar que aqueles indivíduos passam a vida metida dentro de um camião, não têm vida, chegam a casa e mal veem os filhos e a mulher. Tudo bem, aquilo prejudicou-me mas aquelas pessoas se calhar andam há mais tempo prejudicadas. Na altura vocifrei por estupidez, depois parei em mim.

Ainda na entrevista ao “Alta Definição” falou de um período recente mais duro [entre 2012 e 2014 a 2015, andava “completamente doido”, revelou]. Que coisas concretas — sejam conversas, pensamentos, pessoas — o levaram a dar a volta?
Amigos, livros… grandes amigos fundamentalmente. A filosofia e a poesia também, mas sobretudo as pessoas que me acompanharam, as conversas, o nunca me terem deixado cair. Nisso tive uma grande sorte, não vou frisar aqui os nomes das pessoas mas tive uma grande sorte, tive grandes amigos que me ajudaram muito, falaram comigo e fizeram-me ver as coisas. Isso a par dos filósofos que ia lendo e com quem ia aprendendo e pondo [ensinamentos em prática]. Tanta coisa na vida requer um esforço e é preciso também um esforço para contrariarmos a nossa mente, para contrariarmos a procrastinação, porque a nossa mente é um círculo. Se calhar é um grande disparate o que vou dizer, uma grande estupidez, mas às vezes penso: se a Terra é redonda, se o sol se me aparenta redondo, se a Terra anda em círculo de si própria em torno do sol, será que a minha mente também não é assim? Então digo: tenho de parar, contrariar as coisas.

Comecei a contrariar a tristeza e fundamentalmente a vitimização. Deixei de me vitimizar e deixei de culpar os outros, acabei com isso, culpar o fulano, o sincrano, a beltrana. Acabou-se. E acabou-se a história de ser bom e os outros serem maus. Não sou vítima de coisa nenhuma, tenho os mesmos direitos e os mesmos deveres de qualquer ser humano — e se as coisas me acontecem de mal é porque têm de acontecer assim, é porque preciso de aprender alguma coisa. É evidente que custa, claro que custa, na altura reagimos mal às coisas, mas a partir do momento em que se vai tomando consciência deixamos de reagir tão mal. Não sou vítima de nada, vamos embora para a frente com a vida.

"Já tomei tantas opções erradas que às vezes até me esqueço das boas. Já tomei algumas boas. Uma delas foi este disco, outra foi a de parar de culpar os outros e de me vitimizar. Também acho que foi boa a opção de aceitar os outros e de me aceitar a mim , com as minhas próprias falências, com as minhas sombras - para que as possa conhecer e dominar em vez de serem elas a dominar-me."

De entre as opções que tomou entre as hipóteses que a vida lhe foi apresentando, de qual se orgulha mais?
Não tenho grande aptidão para o orgulho nesse campo, tenho-o mas não nesse campo. Já tomei tantas opções erradas que às vezes até me esqueço das boas. Já tomei algumas boas. Uma delas foi este disco, outra foi a de parar de culpar os outros e de me vitimizar. Também acho que foi boa a opção de aceitar os outros e de me aceitar a mim também, com as minhas próprias falências, com as minhas sombras — para que as possa conhecer e dominar em vez de serem elas a dominar-me. É muito difícil, tenho 37 anos, há tanta m**** que faço… desculpe a linguagem.

Perder 52 quilos, “a fazer jejuns às vezes de 17 horas…”

O Fernando Maurício…
Master!

O seu grande mestre. Dizia-lhe: “Tens de ser melhor do que tu mesmo, o teu pai não tem uma mercearia nem nasceste com três nomes”. É mais ou menos consensual que se está mais perto de êxitos profissionais quando se tem oportunidades desde cedo e quando se cresce num meio privilegiado. No fado e na música também funciona assim?
Essa frase é um bocadinho rude da parte dele, tanto o é que me foi dita a mim quase estritamente na intimidade, estávamos só os dois. É um bocadinho rude porque ninguém tem culpa de ter nascido num meio privilegiado — e se nasceu, ainda bem. Se nascemos naquele meio é porque tínhamos de nascer lá. Se alguém nasce com pai rico, que culpa tem disso? É evidente que isso faz parte da humanidade, infelizmente e ainda. Um dia deixará de acontecer, X ou Y deixará de ser escolhido porque é filho de alguém ou porque tem dinheiro. Claro que não pode ser assim, não deve ser assim, mas a pessoa não tem culpa de ter nascido num meio privilegiado.

A frase começa com “Sê melhor do que tu mesmo”, portanto ele também quer dizer: esquece o julgamento, esquece os outros — tenham ou não tenham tudo isso — e sê melhor, cumpre-te como és ou como queres vir a ser, tenta-te cumprir e puxa do futuro para ti.

Enquanto fazia este Respeitosa Mente, passou-lhe pela cabeça o que ele poderia pensar do disco?
Sim, sim. Já pensei no que ele pensaria, no Rodrigo, em tantas pessoas. O meu mestre ia gostar.

Da ousadia?
Sim. Ia-me dizer: sim senhor, o disco não é de fados, cantas umas canções, está tudo certo.

E quantas vezes é que já se perguntou como é que só aos 25 anos descobriu que só tinha um rim?
[Sorriso largo] Não faço a mínima ideia. Aconteceu ter uma dor horrível.

"Poderia vitimizar-me: só tenho um rim, coitadinho de mim, já viram se isto pára? Podia viver preocupado, 'tenho uma filha com 14 anos , também tenho bronquite crónica, alergias'... ó f***-**, não! Quero é trabalhar, viver, não quero estar a pensar que não posso comer tomate que tem oxalato."

Na Alemanha, não foi?
Sim, uma dor horrível que não desejo a ninguém, uma coisa assustadora. A dor era de uma pedra que tinha num rim, depois disso é que fui fazer exames, fui ver e descobri que só tinha um. É perfeitamente normal, um urologista já me disse que às vezes acontece uma pessoa nascer só com um rim. Ele é enorme, faz o trabalho de dois e funciona lindamente. Está tudo certo. Lá está, poderia vitimizar-me: só tenho um rim, coitadinho de mim, já viram se isto pára? Podia viver preocupado, “tenho uma filha com 14 anos , também tenho bronquite crónica, alergias”… ó f***-**, não! Quero é trabalhar, viver, não quero estar a pensar que não posso comer tomate que tem oxalato. Não exagero mas está tudo bem.

Não o tem impedido de fazer nada?
Nada! Nem perder 52 quilos, homem! A fazer jejuns às vezes de 17 horas…

https://www.instagram.com/p/Bn6qUqcgRS_/

Não se tornou ainda assim daquelas pessoas que tentam evangelizar obsessivamente todos os dias o máximo de pessoas que conseguem para a comida saudável, ou tornou?
Não, não. Lá voltamos nós: não vou interferir com a vida do outro. Digo às pessoas: ó homem, você é feliz assim? Ouça, viva! A longo prazo isso não lhe vai trazer coisa boa, mas é só isso. A primeira coisa que faço é perguntar a alguém: você vive bem, tem algum problema de saúde? Isto vai trazer-lhe problemas, mas um gordo se está bem [de saúde] não tem de mudar só porque no mundo há magros. Isto é como o conceito do raio da beleza dos homens e das mulheres, um gajo só é bonito se tem músculos e o corpo definido, se usa a barba assim ou assado, se tem a carinha não sei quê e não tem uma borbulha?

Tudo isto é estúpido, é a história da profundidade, as pessoas só veem pela rama. É evidente que é mais agradável ter a beleza ao nosso lado de acordo com o nosso padrão, porque o meu padrão de beleza para uma mulher é muito diferente do padrão de beleza feminina de um chinês. Portanto, o que é a beleza num ser humano? É relativa. Se alguém me diz que precisa mesmo de emagrecer, ok, digo-lhe “faça isto ou aquilo na alimentação e vá para desportos de combate ou para um desporto que obrigue a gastar muito energia”. Acabou aí, não me imponho nada . António Alçada Batista tem uma frase fantástica no “Riso de Deus” que diz o seguinte: “Poder é a capacidade que os homens têm para criar a outros um destino. Essa é a essência da sua perversão”. Eu não tenho de criar destinos, é evidente que posso alertar e dizer à pessoa que algo não é bom mas não posso interferir, a pessoa tem que avaliar por ela.

O concerto em que “do primeiro ao último fado só estava a pedir aos santinhos todos que chegasse ao fim”

Tem uma filha, Carolina, que já toca e canta.
Sim. E bem!

De que tipo de música é que ela gosta?
Evito um bocadinho isso porque não lhe quero alimentar a vaidade, ainda é muito frágil, tem 14 anos. A diferença entre a vaidade e o orgulho é uma linha muito ténue, ainda mais nessas idades. Tento proteger um bocadinho, falamos um bocadinho disso até porque sou uma referência para ela, mas com cuidado. Ela gosta muito da música que se ouve, da música pop, mas quando ouve peças clássicas de piano adora. Estuda [música] também, há peças da música árabe de que gosta, outras não tanto quando são assim mais complicadotas, com muitos quartos de tom. Ela já tem algumas noções de afinação e tive de lhe explicar: não filha, não é desafinação, é um quarto de tom, aqui só usamos tom e meio tom e no mundo árabe ainda há um quarto e oitava [de tom], etc etc. Exemplifico-lhe com voz e guitarra e ela vai percebendo.

Há sempre a possibilidade de ela vir a ter uma carreira musical. Para alguns jovens, isso é um sonho, parece uma vida de luxo só com vantagens. Mas o que é que é preciso sacrificar? No seu caso, por exemplo, o que teve de sacrificar?
Há muitos prós, mas também há contras… em relação à minha filha, a ausência é um contra. As outras desvantagens são algumas mágoas que vão ficando, é importante limpar mas elas não deixam de fazer a sua mossa. Às vezes não se tem vida, apetecia estar aqui ou ali e não é possível por isto ou por aquilo, porque tem de se tocar e cantar.

"Muitas vezes não me apetece falar com ninguém, não me apetece estar com ninguém e tenho de estar, tenho de falar, tenho de abraçar. Tenho que dar quando muitas vezes não tenho para mim. Oxalá as pessoas não me considerem mal por dizer isto. Também sou um ser humano - com a mesma carne, os mesmos ossos, as mesmas fragilidades, as mesmas carências."

Espero que as pessoas não fiquem tristes com o que vou dizer, acontece-lhes a elas também, não me podem julgar por isso: muitas vezes não me apetece falar com ninguém, não me apetece estar com ninguém e tenho de estar, tenho de falar, tenho de abraçar. Tenho que dar quando muitas vezes não tenho para mim. Esse é um dos principais contras. Oxalá as pessoas não me considerem mal por isto, se forem analisar as suas vidas também sentem exatamente o mesmo que sinto, também sou um ser humano — com a mesma carne, os mesmos ossos, as mesmas fragilidades, as mesmas carências. Muitas vezes sabe Deus… não tenho nada para dar, mas tenho de estar e sorrir. Às vezes custa, mas faz parte.

[Chega à mesa Jarrod Cagwin, percussionista do trio que gravou este novo álbum de Ricardo Ribeiro]

Já disse: “Muitas vezes pagava para não cantar”. E ainda: “Muitas dias acontece, estamos vazios, não temos nada para passar. Tenho de o fazer porque é a minha vida, o meu dever, mas não compro mentiras porque também não vendo a minha”. Desses dias em que pagava para não cantar mas teve de o fazer, qual foi o concerto mais difícil de levar até ao fim?
Não vou dizer o sítio  porque fica mal, não seria correto da minha parte, mas houve um concerto no norte de Portugal em que não tinha nada dentro de mim. Tinha tido uns problemas pessoais, umas confusões e — chamem-lhe destino, universo, céu, o que se quiser — o concerto era num palco enorme mas tinha 20 pessoas à minha frente. Já estava sem nada para dar e aquilo parecia um concerto rock and roll, gigante, com tudo, mas para 20 pessoas, com toda a gente espalhada por bancadas lá mesmo ao fundo. Esse dia foi tão frustrante… não foi pelas pessoas, as que estavam à frente foram muito entusiásticas, mas não tinha nada, estava tão vazio. Do primeiro ao último fado só estava a pedir aos santinhos todos que chegasse ao fim.

"Devo à música tudo, especialmente ao fado, mais ao fado do que à música. Devo tudo: a vida que tenho, o carro que tenho, a casa alugada que tenho, a comida que ponho na boca. E a vida, devo a vida. Sem música, não sei... era um indivíduo tão escuro, tão débil - mais débil ainda."

“Devo tudo à música e ao fado: o carro, a casa alugada, a comida que ponho na boca. E a vida”

O que é que a música representa hoje para si? O que já lhe deu e o que já lhe tirou?
Representa tudo. A música deu-me tudo e dá-me tudo. Devo à música tudo, especialmente ao fado, mais ao fado do que à música. Devo tudo: a vida que tenho, o carro que tenho, a casa alugada que tenho, a comida que ponho na boca, tudo. E a vida, devo a vida. Sem música, não sei… era um indivíduo tão escuro, tão débil — mais débil ainda.

Fala-se muito na internacionalização da música portuguesa e também do fado. Tem dado muitos concertos fora de portas: só no último ano cantou no México, Finlândia, Espanha, na Konzerthaus em Viena, França, Marrocos, Estádos Unidos, Irão. Destas experiências todas fora de Portugal, qual foi a mais surpreendente?
O Irão. Foi maravilhoso, estava à espera de encontrar coisas estranhas e não encontrei, vi um país normal. Claro, vi aquilo que me foi dado a ver, que tive oportunidade de ver. E vi músicos do Afeganistão que me deixaram fascinado, foi uma viagem um tanto ou quanto interessante [sorri], foi marcante. O açafrão que trouxe, as misturas que trouxe, os frutos secos, foi fantástico, maravilhoso.

“Já não tenho nada para provar ao fado, nem aos fadistas”

Na área do fado tem-se multiplicado um fenómeno curioso: festivais de fado por todo o mundo. Há um festival de fado em Marrocos, Madrid, Nova Iorque. Como é que isto aconteceu?
Não sei, seria preciso perguntar à organização — que é portuguesa. Não quero ser mau e como não quero ser mau… não sei se é uma internacionalização do fado, do filho do fado, não sei. Sei que vou lá fora e só canto fados — quando canto fados, canto fados, tirando uma canção ou outra que possa pôr no meio, uma balada ou outra. É bom e é maravilhoso ver os artistas portugueses terem sucesso lá fora? É! O caso da Ana Moura, da Carminho, da Mariza, do Camané, do António Zambujo… todas essas pessoas terem tanto sucesso lá fora é fantástico, é ótimo. A Mariza ainda agora teve uma digressão imensa nos Estados Unidos da América, a Cristina Branco… não sei o que é mas sei que é bonito e é bom. Agora o que leva [a acontecer] isso é outra coisa, não me cabe a mim estar a analisar isso, já me deixei disso. Por isso é que dizia que fiz essa provocação, dizer que este disco não tem fados para ver até que ponto alguém diz que isto é um fado. Ai é um fado? Então porquê? Explique-me.

Este tema acaba com um tema instrumental muito curioso, bastante interessante.
Teve paciência para o ouvir?! [sorri]

Tive, claro. Dedica-o à sua mãe, Fernanda, “Naná”. Porquê?
A minha mãe teve uma fase mais difícil, não queria entrar em detalhes. Tinha dedicado um tema à minha filha anteriormente e era importante dedicar um tema à minha mãe.

"A minha mãe ainda hoje diz que o único homem que amou na vida foi o meu pai. Já o homem está morto há sete anos, ela já não estava com ele há 20 anos e continua a dizer: o único homem que amei na vida foi ele. É uma coisa que me arrepia. É preciso ser-se uma grande pessoa para amar alguém durante a vida inteira."

Já disse que ela tem uma voz “linda, uma coisa que vem da terra, um canto arrepiante, que parece que vem das entranhas”. Quando estão juntos, cantam?
Às vezes. É raro, mas de vez em quando ela canta, se lhe pedir muito ou se puxar por ela. Mas desde a morte do meu pai [menos], apesar de já não estarem juntos há 20 anos aquilo afetou-a muito. Acho isto uma coisa tão bonita: a minha mãe ainda hoje diz que o único homem que amou na vida foi o meu pai. Se tivesse uma mulher… Claro que isto é uma coisa muito egocêntrica, mas é de uma beleza enorme ouvir alguém dizer isto. Já o homem está morto há sete anos, ela já não estava com ele há 20 anos e continua a dizer: o único homem que amei na vida foi ele. Ela amou verdadeiramente. Aquilo nunca morreu, apesar do meu pai… [faz uma pausa]. Eu fico tocado, é uma coisa que me arrepia, às vezes diz-me isto: o único homem que amei mesmo foi o teu pai.

Todos temos relações. Também já amei, pronto, depois vem a outra pessoa e já não tenho… E aqui, como é possível? É preciso ser-se uma grande pessoa para amar alguém durante a vida inteira. Não faz jus ao poema da Florbela Espanca que diz “e quem disser que se pode amar alguém durante a vida inteira é porque mente”. A minha mãe não, continua a dizer exatamente isso, é uma coisa que me faz confusão — já teve outros companheiros, tudo bem, mas continua a dizer aquilo.

Depois do lançamento do disco, depois das primeiras apresentações ao vivo na Casa da Música, no Porto (24 de maio) e Centro Cultural de Belém, em Lisboa (1 de junho), vêm mais concertos?
Assim o espero, a não ser que seja banido. Não estou a planear já mais coisas mas espero que os senhores promotores em Portugal oiçam, pelo menos, e se interessem. É só isso que quero. O quer vier eu recebo, aceito e agradeço.

Vai tocar guitarra e baixo nesses dois concertos já anunciados..
Sim! Já estou nervoso porque não sou guitarrista. É um suplício tocar, gravei porque eles me disseram: grava, tu és capaz. O Jarrod dizia-me: “You can do it, man, you can do it!”. Ahhhh…. mas ao vivo? Tremo, as mãos suam, vamos lá ver.

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