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© André Correia

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Roque Braz de Oliveira: um dos primeiros pilotos da TAP movia-se a loucura

Tirou o 'brevet' com apenas 16 anos e entrou para a TAP logo na segunda geração de pilotos. A partir daí? Apertem os cintos de segurança: há Casablanca, Guerra Colonial e um sequestro aéreo.

A vida de Roque não teria sido a mesma se aos seis ou sete anos não o tivessem levado a ver o mar. Os banhos, as regatas e as brincadeiras no mar de Sesimbra. Se não fosse todo esse tempo passado naquelas águas geladas, Roque nunca teria conquistado o ar e não se teria tornado num dos primeiros pilotos da TAP. A companhia aérea portuguesa celebra este sábado o 70º aniversário e a sua história confunde-se com a de Roque. Ou será ao contrário?

Roque Braz de Oliveira tem hoje 92 anos e mora na Sesimbra que lhe deu a saúde necessária para ser piloto de aviões. “Eu quando era miúdo era débil. Aos seis, sete anos apanhei linfatismo e o médico, que era uma pessoa de família, [disse] ‘este menino precisa de iodo, levem-no para o mar!’ E é por isso que eu fiquei agarrado a Sesimbra.” A paixão pelo mar começou aí, a “loucura” pelo ar já vinha de trás. É a expressão que usa: loucura. É o que ainda sente por voar. E só não está ainda aos comandos de um avião porque não o deixam.

“Era a minha loucura de miúdo.” Noventa e dois anos de vida, quase quarenta a voar, Roque Braz de Oliveira é um homem de riso fácil, com milhentas histórias na ponta da língua e algumas com expressão física. O antigo comandante da TAP recebe o Observador na casa que desenhou no liceu e mais tarde ergueu. Chama-se “Refúgio”, é toda construída apenas em pedra e madeira e, mal se entra, os objetos não escondem a vida cheia de peripécias. Há uns bancos feitos com selas de camelo, vindas diretamente do meio do deserto, onde o Dakota DC4 avariou. Há um candeeiro cujo pé é formado por uma catana, um canhangulo e uma moca. E na aparelhagem ouve-se Have Yourself a Merry Little Christmas. Quase mais surpreendente do que Roque estar a ouvir uma canção de Natal em março é não estar a tocar As Time Goes By. Confuso? Vamos então entrar a bordo do avião das memórias…

3 fotos

Apertem os cintos de segurança

Ver a Baía de Guanabara a aproximar-se a partir de um cockpit é uma sensação reservada a poucos. Quando o fez pela primeira vez, Roque só tinha dois nomes na cabeça: Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Foi o exemplo desses dois pioneiros, que pela primeira vez levaram um avião de Lisboa ao Rio de Janeiro, no Brasil, que o inspirou a ser piloto. “Quando voei depois mais tarde para o Brasil, para a ilha do Governador, onde a gente aterrava na Baía de Guanabara…” As palavras perdem-se na nostalgia desses tempos, quem ouve só pode supor a beleza daquilo tudo.

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Tudo começou em Sintra, na verdade. Respondendo a essa “loucura” que o consumia, Braz de Oliveira decidiu meter-se nos aviões com apenas 16 anos. “Sintra foi o meu berço aeronáutico. Quando eu tirei o brevet no Aeroclube de Portugal, ia de comboio até ao Algueirão, depois ia a pé, voltava outra vez de comboio.” Estava-se em 1939, mesmo à beira da Segunda Guerra, e sem o saber, Roque tinha já conhecido uma das figuras emblemáticas do conflito. Uns anos antes, era apenas um miúdo. Na guerra ficaria famoso: Walter Nowotny, piloto da Luftwaffe conhecido como “ás”, que derrubou mais de 250 aviões inimigos.

“Vieram a Portugal oito miúdos alemães, a Pedrouços, fazer corridas com os Lusitos”, a equipa de regatas da Mocidade Portuguesa, com a qual Roque ganhou diversos troféus. “Eu não falava alemão, eles não falavam português. Foi giríssimo. A reinação que aquilo foi… Ganhámos uma amizade”, conta o antigo piloto agora, a rir-se. “Eu fiquei com uma amizade [à Alemanha] que até o meu pai dizia assim ‘ah mas tu és todo a favor do Hitler’. Era contra, mas era um miúdo, eu conhecia era os putos”, desculpa-se. Hoje em dia, no entanto, Braz de Oliveira não tem confusões ideológicas na cabeça. Para ele, monárquico convicto, o 25 de abril foi um “terramoto”.

Os "Onze de Inglaterra", os primeiros pilotos da TAP. "Sou produto do saber destes homens", diz Braz de Oliveira

© André Correia

As Time Goes By

Falemos, então, do que notabilizou Braz de Oliveira: a TAP. Era um sonho do general Humberto Delgado, que pegou em onze oficiais da Força Aérea e da Marinha e os levou para Inglaterra para aprenderem a voar com a British Airways. Roque não estava nesse lote, mas já andava metido nas andanças da companhia aérea nacional. “Abre o aeroporto da Portela e o que é preciso? É preciso controladores.” Lá vai Roque tirar o curso de controlador aéreo. Na verdade, era um estratagema, porque ele queria era voar. Quando a TAP abre o curso de pilotos, em 1947, inscreve-se logo, mas não abandona a torre de controlo. “Eu fazia o turno das corujas e depois ia de manhã para a TAP fazer o curso.” Era cansativo? “Opá, mas sabes quando se tem a idade que se tem… eu entrei para a TAP com 24 anos…”

E aqui começa uma longa história, repleta de episódios marcantes. Eram oito os pilotos daquele curso. “Coitadinhos, já faleceram todos”, lamenta Roque enquanto folheia um livro que o próprio escreveu e organizou por ocasião do octogésimo oitavo aniversário. Lá está ele, o terceiro a contar da esquerda, junto ao Dakota que o veria passar de copiloto para comandante. Era aos comandos desse avião, ao serviço da Aero Portuguesa – companhia aérea entretanto integrada na TAP – que Roque fazia a ligação de Lisboa a Casablanca. Já está a ouvir o As Time Goes By na cabeça? Foi esse mesmo Dakota que serviu de pano de fundo à última cena do Casablanca.

(no improvável caso de nunca ter visto o filme, não veja este vídeo)

Duas portas à frente, duas sobre as asas

Uma guerra passou, outra veio. Depois das aventuras marroquinas, eis Braz de Oliveira de regresso à TAP, ao comando de outro Dakota, o DC4, com o qual começa a fazer a chamada linha aérea imperial. Era a ligação entre Lisboa-Luanda-Lourenço Marques. Demorava sete dias. “O raio de ação do avião – o combustível que a gente levava – era muito pequeno, tínhamos de fazer viagens no máximo de duas horas, três horas” e, por isso, faziam-se onze escalas entre a capital do império e a capital da colónia moçambicana.

O invulgar candeeiro que já referimos é dessa altura, em que ainda havia império e ainda havia colónias. A Guerra Colonial rebentara. “Eu estou a precisar de distribuir armamento”, disse-lhe alguém. Era “para aquela gente das sanzalas que precisava de se defender. E então eu ajudei. Eles, para consagrarem isso, deram as três armas gentílicas: a moca, o canhangulo e a catana. E eu fiz isto”, o tal candeeiro, que ocupa lugar de destaque no living. As palavras em inglês saem-lhe como o português, fruto da linguagem técnica usada a bordo dos aviões, das viagens que fez por todo o mundo e das amizades que colecionou nos States. Muitas delas, junto de portugueses emigrados.

"Oh comandante, tenho aqui um senhor com uma pistola apontada à cabeça a dizer que quer falar com o comandante", disse o assistente. "Então traz cá o senhor acima".

A propósito, é à diáspora que compete investir na TAP, defende Roque, que é favorável à privatização da companhia, mas não na totalidade. “Hoje ver todas as pessoas, todos os portugueses, não sei o que é que têm, não querem que se privatize a TAP. A TAP é um ícone no meio dos portugueses.” E é por isso, diz, que é preciso investidores privados. “Eu para mim, privatizar mais do que 50% é entregarmos isto, é vendermos. Para mim, a privatização é 49%. A gente não pode vender o que é nosso. Temos de expandir. Já encomendámos aviões de longo curso, mas não temos dinheiro.”

Com um orgulho que se nota na maneira como carrega certas palavras, Roque fala de Portugal de uma forma que hoje já caiu em desuso. “Para mim os portugueses são os maiores do mundo”, atira, referindo os nomes de Afonso de Albuquerque, D. Afonso Henriques e Bartolomeu de Gusmão. O jesuíta inventor da passarola leva-o mesmo a falar de uma espécie de desígnio nacional para a aviação, semelhante ao que se disse um dia existir para o mar. Tudo isso, diz, ruiu com o 25 de abril.

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O colete salva-vidas está debaixo do banco

Filho de uma mãe que teve dez crianças, Roque Braz de Oliveira vem de uma família com pedigree. O irmão Rui foi general e comandante da região aérea de Angola e o irmão Fernando foi o engenheiro responsável pela barragem do Cambambe, tendo ido mais tarde fazer a barragem de Cahora Bassa. Além disso, o primo, Joaquim Pinto Braz, foi capitão de polícia na Índia portuguesa e o último português a deixar Goa, em 1961.

O 25 de abril veio. Os Dakota já eram coisa do passado e a linha imperial já fazia a ligação entre Lisboa e Maputo em apenas onze horas. “Antes do terramoto de abril [a revolução], comprámos quatro [Boeing] 747 e estava previsto comprar mais quatro, para fazermos dois serviços diários às colónias.” Só que a mudança da situação política também trouxe mudanças à TAP e à vida do comandante. “Nessa altura já não se justificava comprar mais aviões, antes pelo contrário, tínhamos de vender aviões. A certa altura fui para o Paquistão vender isto. Mandaram paquistaneses fazer os cursos da Boeing e eu estive a fazer os primeiros serviços aéreos do Paquistão para Paris e para Londres. Estive ali a voar durante um mês e meio. Fiz lá grandes amizades.”

"A gente não pode vender o que é nosso. Temos de expandir. Já encomendámos aviões de longo curso, mas não temos dinheiro."

Não muito mais tarde, seria despedido da companhia aérea, por divergências com o administrador da altura, Gomes Mota. Com os anos que já levava de casa, tinha à espera “uma pipa de massa” de indemnização, mas ele não queria ir para casa, queria voar. “Eu não parava! Ainda hoje não paro”. Os colegas pilotos, ao saberem do seu despedimento, resolveram dizer que não iam voltar a voar enquanto Braz de Oliveira não fosse readmitido. E Roque regressa à companhia e fica até 1983, altura em que atinge os 60 anos e, por novas regras da Organização Internacional da Aviação Civil, é forçado a reformar-se.

Não sem antes juntar ao currículo um airjacking, que é como quem diz um sequestro em pleno ar. Passou-se num Boeing 747 que fazia a ligação de Luanda a Lisboa. A história começa com um telefonema do comissário de bordo para o cockpit, que nestas aeronaves fica num piso superior ao dos passageiros. “Oh comandante, tenho aqui um senhor com uma pistola apontada à cabeça a dizer que quer falar com o comandante”, disse o assistente. “Então traz cá o senhor acima”. Era um cubano que queria fugir para Espanha.

Thank you for flying TAP Air Portugal

O último voo que Roque realizou enquanto piloto foi do Rio de Janeiro para Lisboa, em outubro de 1983. Foi uma espécie de despedida poética, da cidade que entrara no seu imaginário de menino para a cidade que o vira nascer, sessenta anos antes. Ficou o encanto pelo português açucarado das terras de Vera Cruz. Os olhos ainda lhe brilham quando fala do Brasil. “Angra dos Reis foi um sítio do Brasil que eu adorei. Fica a uns cento e não sei quantos quilómetros do Rio de Janeiro. Tem uma ilha muito grande. Um clima formidável, a água quente, a floresta toda ela era muito bonita…” Mais uma vez, uma frase suspensa.

Já depois de reformado, Roque e a mulher correram mundo: Rússia, Índia, Terra Santa, México. Piloto, nadador, velejador, golfista, esquiador, mergulhador, pai de oito, avô de vinte e dois e bisavô de dez, Roque Braz de Oliveira já só tem um cockpit atualmente: o escritório da casa sesimbrense, um templo aos tempos que foram e não voltam mais. Nostalgia? Sim. “Fazia-se uma vida muito, muito humana. Era uma vida muito, muito interessante.” Mas também olhar para o futuro. “O meu último voo ainda não acabou.”

 

Texto: João Pedro Pincha

Fotografia, captação e edição de vídeo: André Correia

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