Ao longo de uma década, Lassana Diarra foi o protagonista de um diferendo que poucos conheciam ou reconheciam – mas que agora, dez anos depois do início de todo o processo, pode mudar o mercado de transferências do futebol conforme o conhecemos.
Tudo começou em 2014, quando o antigo internacional francês entrou em rota de colisão com o então treinador do Lokomotiv Moscovo e foi despedido pelos russos por uma alegada violação dos termos contratuais. O clube procurou uma recompensa através do Tribunal Arbitral do Desporto e Diarra, na altura com 29 anos, foi mesmo condenado a pagar 10,5 milhões de euros. Mais do que isso, o Charleroi, clube belga que procurava a contratação do jogador, depressa percebeu que também seria responsável pela penalização e que nunca iria obter junto da Federação da Rússia a certificação necessária para validar a transferência.
Diarra retaliou e lançou uma ofensiva judicial contra a FIFA, apoiado por Jean-Louis Dupont, o advogado responsável pela vitória no Caso Bosman. No início do atual mês de outubro, uma década depois e cinco anos após o francês terminar a carreira, o Tribunal de Justiça da União Europeia deu razão ao jogador e considerou que o artigo 17.º do Regulamento de Transferências de Jogadores da FIFA viola o direito à liberdade de movimentos para indivíduos e a preservação da competitividade dentro de mercados internos.
Em resposta, a FIFA já garantiu que vai “iniciar diálogo” para implementar algumas alterações ao dito artigo 17.º, incluindo o cálculo das indemnizações. “Entendemos esta situação como uma oportunidade para continuarmos a modernizar os regulamentos”, explicou o diretor dos Serviços Jurídicos do organismo. Se é certo que dificilmente um jogador irá simplesmente poder rescindir contrato com um clube sem justa causa e sem consequências, também é certo que dificilmente um jogador será novamente multado de forma milionária por tê-lo feito.
Em entrevista ao Observador, Rosalía Ortega explica tudo o que está em causa. A advogada espanhola é presidente do Instituto Ibero-Americano do Direito Desportivo e está em Portugal para participar na International Sports Law Conference, um dos maiores eventos de direito desportivo a nível mundial que termina este sábado no Estádio da Luz. Para além do Caso Diarra, que garante ser a chave para melhorar um sistema que “prejudica toda a gente”, aborda ainda as recentes decisões de Sporting e Benfica, que colocaram advogados em posições de elevada responsabilidade dentro das respetivas estruturas.
O que está em causa no Caso Diarra, de forma muito simples, é a possibilidade de um jogador poder rescindir com um clube sem justa causa sem ter de pagar compensações milionárias?
É isso mesmo. O que está a ser estudado e terá de ser alterado, até porque a FIFA já disse que vai fazer alterações, é o artigo 17.º do Regulamento de Transferências de Jogadores. Isto porque a União Europeia disse que esse artigo vai contra duas normas europeias: a livre circulação de trabalhadores e a preservação da competitividade dentro de mercados internos. A primeira parte afeta diretamente o direito laboral, o direito do jogador, e a segunda parte afeta os direitos dos clubes.
Mas o que é que diz o artigo 17.º?
O artigo 17.º fala de muitas coisas, tem muito conteúdo que está relacionado com as consequências da rescisão de um contrato que ainda está em vigor. E existem aqui três partes muito importantes. Desde logo porque, quando um contrato é terminado sem justa causa, o artigo 17.º diz que a parte que termina tem de compensar a outra. Qual é o grande problema: se é um jogador que rescinde sem justa causa, e não o clube, a diferença da consequência é enorme. Para um clube, a compensação tem um limite, que é o valor residual do contrato; para o jogador, nem sequer há limite, porque a FIFA aponta para as cláusulas de rescisão. Logo aí, há um desequilíbrio enorme, até porque o jogador é a parte mais fraca economicamente. A isso acrescenta-se o facto de, quando um jogador é penalizado e forçado a cumprir esta compensação, também está a ser impedido de continuar a trabalhar – o que obviamente torna ainda mais difícil que ele possa cumprir a compensação, porque nem sequer está a ganhar dinheiro. Depois, se a indemnização não é paga, existem mais sanções que são transferidas diretamente para o clube seguinte que contratar o jogador em questão, tanto financeiras como desportivas. Temos de recordar que o grande negócio dentro do futebol são as transmissões televisivas, mas a segunda coisa que dá mais dinheiro são as transferências. Tudo isto, todas as consequências do fim de um contrato sem justa causa, tem de ser mudado. E as repercussões disso são enormes.
Se estas alterações acontecerem mesmo, o impacto do Caso Diarra pode ser ainda maior do que o do Caso Bosman em 1995?
Já nem sequer é “podem acontecer”, é “têm de acontecer”, porque a União Europeia já disse. Temos de lembrar que o direito dos trabalhadores está na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Isto tem de mudar, sim ou sim. Agora, claro, temos de ver como é que se muda, porque é imperativo que a estabilidade contratual seja assegurada. Sem isso, o mundo do futebol fica refém de uma insegurança terrível. Mas o direito ao trabalho tem de ser respeitado, tem de ser encontrada uma fórmula que garanta a estabilidade contratual. Na minha opinião, o problema inicial está nos contratos, porque a FIFA permite que exista esse desequilíbrio enorme: um jogador tem de pagar 10 milhões de euros para rescindir, está impedido de trabalhar e ainda sabe que transporta sanções e multas para o clube seguinte. É um sistema que não funciona.
E de que forma é que a FIFA pode alterar esse sistema que não funciona?
Não sei o que vai acontecer. A FIFA já disse que vai ouvir todos os parceiros envolvidos. Para mim, é obrigatório existirem medidas que sejam exequíveis e passíveis de aplicar. E garantir que o direito ao trabalho começa a ser respeitado. Acredito que a equipa jurídica da FIFA já esteja debruçada sobre o assunto. É que não estamos a falar só de dinheiro. Para além das multas e das penalizações, quando isto acontece, um jogador fica impedido de jogar de forma federativa.
Como?
Quando há uma transferência entre dois países, para que um jogador possa ser inscrito, é necessário o chamado Certificado de Transferência Internacional. Sem isso, um jogador não pode trabalhar. E ninguém está a falar disso, porque na larga maioria dos casos, quando há um litígio com o clube anterior, a FIFA passa um Certificado provisório. O que aconteceu com o Lassana Diarra, porque ele ultrapassou as altas patentes desportivas e foi até à justiça civil, foi que a FIFA influenciou a Federação da Bélgica e a Federação da Rússia e esse Certificado não foi garantido. Esse é o grande problema, porque significa que as instituições têm o poder de impedir que um jogador trabalhe.
Uma das grandes questões sobre as consequências do Caso Diarra é o facto de os clubes mais pequenos correrem o risco de ficar ainda mais suscetíveis ao poder dos clubes grandes. Isto é verdade?
Na minha opinião, não. Os clubes mais pequenos ficam com mais oportunidades de ter outro tipo de jogadores, melhores jogadores, que nunca poderiam ter. Como sabemos, os clubes mais pequenos são normalmente clubes formadores, que ficam com os direitos de formação, mas não têm capacidade de comprar precisamente por questões como esta. E assim podem ir ao mercado e ter uma palavra a dizer. Vamos a exemplos: se olharmos para a Premier League ou para a Ligue 1, em Inglaterra e em França, não existem cláusulas de rescisão. Em França são nulas, em Inglaterra não existem. E esse sistema funciona de forma espetacular, a Premier League é a melhor liga do mundo. O sistema que existe atualmente prejudica toda a gente.
O futebol português português está a assistir a um fenómeno curioso, com o Sporting a contratar um advogado especialista em direito desportivo para diretor-geral do futebol, Bernardo Palmeiro, e o Benfica a contratar um advogado especialista em direito desportivo para diretor do Benfica Campus, Guilherme Müller. Concorda com essa opção?
Acho que essa é a medida mais inteligente. Estamos a falar de gestão de empresas, a União Europeia recorda sempre que estamos a falar de uma atividade económica. O melhor, na minha opinião, é dar essa responsabilidade a pessoas completamente formadas no tema, que sejam capazes de discernir o que é possível fazer, o que não se pode fazer, o que é legal e o que não é legal. Porque já estamos mais do que habituados a ver nas notícias coisas que são mal feitas, fora da lei. Acho espetacular que as pessoas que estão dentro dos clubes sejam advogados, pessoas profissionalizadas. Para mim, um advogado especialista em direito desportivo é a melhor opção para esse tipo de cargos.