1. Caminhar sobre as águas (Primeira etapa: 1.103 m)
Quem chegar a este jardim à procura de referências ao Constantino que lhe deu nome escusa de se cansar. A estátua que ali se encontra não o representa a ele mas sim Prometeu, o titã que deu o fogo aos homens e que parece nesta escultura estar bastante desiludido com a escolha que fez. Também as árvores nada devem a Constantino, que não era jardineiro. (Não precisa de se compadecer com aquele exemplar que está na parte sul do jardim, cujo tronco parece desfazer-se em folhas sobrepostas: é uma melaleuca e este fenómeno é próprio da sua espécie, por isso lhe chamam árvore do papel). Constantino também não era pedreiro e por isso não é responsável nem pela fonte nem pela construção em tijolo que já foi quiosque onde se bebiam licores e onde agora funcionam lavabos, ou seja passou de lugar de ingestão de líquidos a espaço para a sua eliminação. E muito menos tem culpa pela colocação daquele parque infantil que veio adulterar por completo o espírito deste jardim romântico.
Esclareça-se: ao ser inaugurado este jardim, em 1886, foi decidido homenagear Constantino José Marques de Sampaio e Melo, que teve uma vida que dava um romance. Foi soldado para não ser frade, expatriado por combater pelos miguelistas, perseguido pela Comuna de Paris, provavelmente por ter ficado rico, e morrendo por fim pobre mas famoso devido a umas flores de papel executadas por suas mãos que correram as cortes europeias e tiveram consagração na Exposição Universal de Paris, em 1844. Por isso a homenagem ao Rei dos Floristas é merecida mas não deixa de ser bizarro este tributo de jardim real às flores de papel, esta homenagem da Natureza ao artificial.
Bizarro era também aquilo que os lisboetas achavam do prédio n.º 16 da Rua Aquiles Monteverde, na rua abaixo do jardim, considerado o mais estreito da cidade, até que ao ser demolido há alguns anos se percebeu que era só fachada, ou seja, o prédio era realmente estreito à frente mas alargava nas traseiras. Um caso de falsa modéstia arquitectónica. A propósito de traseiras há várias neste percurso, por exemplo na Rua dos Anjos, que convém espreitar, como aliás deve ser regra em Lisboa. Não por voyeurismo. E daí, talvez. As fachadas posteriores contam histórias e, comparadas com elas, as da frente são mudas. Chega-se a pensar se Lisboa não teria a ganhar em ter as traseiras dos prédios viradas para a rua.
Passado o Beco Maria Luísa, afinal uma travessa e não um beco (há vários assim neste percurso) entra-se no Regueirão dos Anjos que é uma espécie de caminho em trincheira, com uma cota mais baixa que as ruas paralelas, a dos Anjos, à direita, e a Avenida Almirante Reis, à esquerda. Não é necessário ser muito perspicaz para perceber que por aqui correram águas em tempos, daí a designação Regueirão.
Exactamente nesse ponto onde entramos no Regueirão dos Anjos ficava o portão da Fábrica Portugal, que produzia mobiliário em metal, cofres fortes, portas onduladas, colchões de arame, máquinas e caldeiras, mas que ficou para sempre famosa pelos fogões, dotados de um esmalte imbatível, que durava décadas sem um único risco, desafiando o tempo. Podia o fogão deixar de funcionar, enferrujar e apodrecer por dentro que o esmalte mantinha a mesma juventude do dia em que tinha saído da loja. O que acabou por não resistir foi a própria marca: há cerca de duas décadas, após mais de um século a cozinhar para os portugueses, os fogões da Fábrica Portugal deixaram de ser fabricados.
O Regueirão dos Anjos tem três arcos: o primeiro é o da Rua Febo Moniz em cuja base está a placa referente a uma bica que aqui existia e que foi entaipada em 1937 por a água estar inquinada, outro arco tem por cima a Ermida de Nossa Senhora do Resgate das Almas e Senhor Jesus dos Perdidos e um terceiro corresponde a outro viaduto, o da Rua Álvaro Coutinho. Através das escadas que estão junto deste último arco pode-se atingir a Rua dos Anjos, onde se situa a fachada principal da ermida. Mas é preferível seguir em frente porque haverá outra oportunidade de a visitar no regresso e aproveitar para ver também o Palacete Lafões, recentemente recuperado, cujas traseiras correspondem ao n.º 53 da Rua do Regueirão dos Anjos.
Roteiro da primeira etapa
(Entre parêntesis estão assinaladas as distâncias acumuladas)
- Partida do Jardim Constantino – WGS84 (graus decimais) lat.: 38,730984, long.: -9,137396. Atravessar a Rua Pascoal de Melo junto ao cruzamento com a Rua Passos Manuel e virar à direita. Seguir ao longo do gradeamento. 000 m (000 m)
- Escadinhas à esquerda. Descer. 110 m (110 m)
- Rua Aquiles Monteverde. Direita. 23 m (133 m)
- Rua de Arroios. Direita. 28 m (161 m)
- Beco de Maria Luísa. Esquerda. 482 m (643 m)
- Regueirão dos Anjos. Direita. 35 m (678 m)
- Passagem sob o viaduto da Rua Febo Moniz. 67 m (745 m)
- Passagem sob um arco na base da Ermida de Nossa Senhora do Resgate das Almas. 128 m (873 m)
- Passagem sob o viaduto da Rua Álvaro Coutinho. 40 m (913 m)
- Cruzamento com a Avenida Almirante Reis – WGS84 (graus decimais) lat.: 38.723382, long.: -9.135262. Esquerda, pela Avenida Almirante Reis. 190 m (1.103 m)
2. O promotor imobiliário e as estimadas senhoras da sua família (Segunda etapa. 634 m)
O caminho pelo Regueirão dos Anjos é como uma viagem pelo subsolo lisboeta do qual nos sentimos emergir ao desembocar na Avenida Almirante Reis. Ora é precisamente neste ponto, mais exactamente entre as duas artérias com nome de Anjos (a Rua e o Regueirão) que se situava a antiga Igreja (também ela) dos Anjos. E o que aconteceu a essa igreja que já aqui não está, sendo certo que reaparece 170 metros mais a norte?
Quando no final do século XIX se tomou a decisão de rasgar um arruamento moderno que ligasse a Baixa e a Mouraria aos arrabaldes situados a norte logo se constatou que a Igreja dos Anjos teria de ser sacrificada porque implicava com o traçado rectilínio desta nova artéria que começou por se chamar Avenida dos Anjos, depois de Dona Amélia, acabando finalmente, uma vez desterrada a rainha e instalada a República, por receber o nome daquele que devia ter liderado o 5 de Outubro de 1910, o trágico Almirante Cândido dos Reis, que por sinal se suicidou não longe daqui, nas imediações do Largo do Leão. Logo se encarregou o arquitecto da Câmara Municipal de Lisboa José Luís Monteiro de delinear um novo templo que aproveitasse a talha dourada do antigo, que era riquíssima e não merecia ser desperdiçada, assim como painéis e mobiliário.
Desenvencilhou-se o arquitecto com a incumbência, transportou-se o recheio para o novo templo e, terminado o bricolage da sua remontagem, pôde a nova Igreja dos Anjos ser inaugurada a 11 de Março de 1910, embora as obras se prolongassem até ao ano seguinte. Quanto à devoção nunca precisou que a levassem para lado nenhum, vai naturalmente pelos pés dos fiéis e já desde 1908 que se tinha instalado numa pequena capela ao lado das oficinas da nova igreja, ainda as obras estavam para durar.
Como sempre acontece com qualquer mudança, algo se perde e algo se ganha. Aqui perdeu-se uma vetusta igreja do século 16 mas ganhou-se outra mais desafogada e harmoniosa, envolvida pelo Jardim António Feijó onde pontificam dois exemplares de Bela-sombra (Phytolacca dioica). E ganhou-se ainda aquilo a que os urbanistas costumam chamar uma nova centralidade. No cruzamento onde antes estava a igreja velha, entalada entre rua estreitas, foram surgindo outros motivos de atracção para os moradores das proximidades: a Farmácia Bezelga, transformada depois no bar Palmeira dos Anjos (a serpente simbólica ainda se mantém esculpida na fachada), a tabacaria Estrela da Sorte, o cinema Lys, mais tarde chamado Roxy, o café Ribatejano, instalado em 1949 num edifício com a assinatura do arquitecto Porfírio Pardal Monteiro (Rua dos Anjos n.º 13) ou a Pastelaria Delta, onde nos meados dos anos sessenta marcavam encontro alguns dos primeiros maoistas portugueses, organizados no Comité Marxista-Leninista Português (CMLP) em que Alan Oulmain, o compositor exclusivo de Amália, fazia de tesoureiro. A Delta e a Estrela da Sorte sobrevivem, o resto desapareceu ou sofreu profundas mutações (a Palmeira dos Anjos é hoje um restaurante de kebab).
A abertura da Avenida Almirante Reis pretendia facilitar o acesso da periferia ao coração de Lisboa mas era também a oportunidade de importar para Lisboa o modelo dos boulevards que deslumbrava os portugueses ricos que visitavam Paris. Assim se fez mas a Almirante Reis nunca chegaria aos calcanhares, socialmente falando, do outro boulevard lisboeta, a Avenida da Liberdade. Aqui, nos Anjos e Arroios, ficavam os prédios de rendimento destinados a inquilinos remediados, edifícios medianos, embrulhados em azulejo, que as elites cultas daquela época achavam desinteressantes e uniformes. Talvez por isso mesmo, por serem parentes pobres e menos cobiçados, a avenida e os bairros que a envolvem mantiveram-se relativamente conservados. E os azulejos e as portas de madeira entalhada podem ser hoje vistos com olhos mais compreensivos.
O n.º 47 desta avenida destaca-se pelo predomínio do tijolo e do ferro que se inspira na arquitectura industrial. É um edifício de 1914 mas acolhe uma instituição mais antiga, fundada em 1893, com o objectivo de fornecer uma sopa diária aos pobres que a procurassem. Chama-se hoje Centro de Apoio Social e de Acolhimento Nocturno dos Anjos (como é pomposa a linguagem dos nossos dias). Mas no passado teve outras designações: Cozinha Económica, Sopa dos Pobres, Refeitório dos Anjos, Sopa do Sidónio, Sopa do Barroso. Já teve assim mais nomes que os ingredientes da própria sopa, a avaliar ao menos por uma letra de humor cruel que há alguns anos ainda se cantava nos pátios das escolas (“Lá vai a marcha do Casal Ventoso/Panela às costas vai para a sopa do Barroso/Não digas sim, não digas não/A sopa do Barroso tem feijão com grão”).
Contornando a Igreja dos Anjos pela sua parte posterior entra-se na Rua Palmira, a que se segue a Rua Maria Andrade, perpendicular à Rua Maria que tem ligação com a Rua Antónia Andrade. Todas estas senhoras, que assim viram o seu nome passado a placa toponímica por deliberação camarária de 10 de Novembro de 1892, seriam familiares de Manuel Gonçalves Pereira de Andrade, o construtor de todo este bairro (o Bairro Andrade) e proprietário dos respectivos terrenos que assim resolveu homenageá-las. Comovente amor de um chefe de família. Mas o mais significativo é este gesto de impor o apelido à obra feita. Ele próprio dá o seu nome a uma artéria, a Rua Andrade, onde se encontra, no nº 2, um bom exemplo destes prédios feitos a pensar em moradores da classe média ou média-alta dos finais do século XIX, interiormente decorados com belos estuques. Nas fachadas exteriores deste edifício, de onde, de tempos a tempos, se solta um pedaço de estuque ou de cantaria em sinal de protesto contra a falta de conservação (o prédio é propriedade da Misericórdia), merece atenção o portal de alto pé direito com madeiras laboriosamente trabalhadas.
Em frente deste edifício fica o Mercado do Forno do Tijolo, um projecto modernista de 1952 que, como todos os mercados da capital, vive em conflito interior sobre qual o papel que lhe está reservado neste século XXI em que tão alterados estão os hábitos de consumo. Neste caso, o mercado adoptou como solução integrar um supermercado de uma grande cadeia (se não podes vencê-los junta-te a eles), uma solução que lhe garante manter este espaço aberto até às 21 horas.
Roteiro da segunda etapa
(Entre parêntesis estão assinaladas as distâncias acumuladas)
- Cruzamento com a Rua Álvaro Coutinho. Direita, atravessando a avenida e seguindo pela Rua Álvaro Coutinho (Igreja dos Anjos e Jardim António Feijó à direita). 170 m (1.273 m)
- Cruzamento com a Rua Palmira. Direita pela Rua Palmira. 98 m (1.371 m)
- Cruzamento da Rua Palmira com a Rua Maria Andrade. À esquerda pela Rua Maria Andrade. 143 m (1.514 m)
- Cruzamento da Rua Maria Andrade com a Rua Maria da Fonte e com a Rua Damasceno Monteiro. À direita pela Rua Maria da Fonte. 173 m (1.687 m)
- Cruzamento da Rua Maria da Fonte com a Rua Andrade – WGS84 (graus decimais) lat.: 38.722477, long.: -9.132621. Em frente (Mercado do Forno de Tijolo à esquerda, prédio do nº 2 da Rua Andrade à direita). 50 m (1.737 m)
3. Olarias sem oleiros (Terceira etapa. 866 m)
Já se desceu, já se subiu. Agora é chegada a altura de caminhar em terreno plano, quase horizontal, seguindo as curvas de nível para evitar fadigas desnecessárias. Ou seja, evitando a tentação oferecida pelas múltiplas escadas, escadinhas e ruas empinadas que se vão apresentando à esquerda. Percorre-se assim uma sucessão de ruas que se prolongam umas nas outras, como se fossem uma só via, sempre na meia encosta do Monte São Gens, ou Senhora do Monte. Começa a etapa na Rua Maria da Fonte, prolonga-se pela Rua da Bombarda e entra por fim na Rua das Olarias, num cruzamento de onde partem também as Escadas do Monte e as Escadinhas das Olarias, que já se chamaram Beco dos Emprenhadores, nome para o qual não se encontra facilmente explicação entre os olisipógrafos. (A toponímia lisboeta é um estímulo para os espíritos especulativos: aquelas Escadas do Monte dão acesso, no n.º 6, ao Pátio Mariana a Vapor.)
Por esta altura já se tornou evidente que o território que agora se atravessa nada tem a ver com as ruas do Bairro Andrade, daqueles gloriosos tempos em que cada prédio tinha o seu guarda-portão e um número variável de meninas dedilhadoras de piano. Pelo contrário, o sítio das Olarias, com um cheirinho a Mouraria mas sem com ela se confundir, tem origem mais antiga, no tempo em que os mouros tinham aqui o seu cemitério, ou almocavar. Expulsos os hereges em 1497, por D. Manuel I, começou então a urbanização do sítio mas manteve-se por outro lado uma actividade que já era praticada pelos filhos do Norte de África: a olaria. A Rua da Bombarda, a Calçada Agostinho de Carvalho (nome de um oleiro) e o Largo das Olarias estavam repletas destas oficinas, algumas delas mantendo-se em actividade na mesma família (caso dos Maias e dos Romão) desde os séculos 16 e 17 até final de oitocentos.
Antes de terminar, esta etapa passa ainda pela Ermida do Senhor Jesus da Boa Sorte e Santa Via Sacra, resultado da iniciativa de D. Veríssima Caetano da Conceição que em 1758, num gesto de devoção e generosidade, fez doação dos terrenos para a edificação do templo mas reservou o direito de prolongar sobre a ermida o primeiro andar da sua casa, situada ao lado, garantindo-lhe assim acesso directo ao interior do templo.
Um pouco mais adiante, a meio da Travessa do Jordão, no n.º 18, fica uma das mais interessantes vilas operárias de Lisboa, a Vila Luz Pereira. Mas não se olhe apenas para aquilo que fica ao nível do solo: no Largo das Olarias convém elevar a vista já que é possível admirar cá de baixo o Convento da Graça e o Castelo de São Jorge. E a propósito de vistas há ainda que experimentar as que se obtêm da Rua Manuel Soares Guedes (basta subir alguns metros a partir do meio da Rua da Bombarda) que sem ter a magnificência panorâmica da Senhora do Monte é ainda assim um razoável miradouro sobre São Pedro de Alcântara e o Campo de Santana.
Roteiro da terceira etapa
(Entre parêntesis estão assinaladas as distâncias acumuladas)
- Cruzamento da Rua Maria da Fonte com a Travessa do Maldonado. Em frente, entrando na Rua da Bombarda que é o prolongamento da Rua Maria da Fonte. 153 m (1.890 m)
- Cruzamento da Rua da Bombarda com a Travessa da Cruz dos Anjos e o Beco do Monte. Em frente pela Rua da Bombarda. 46 m (1.936 m)
- (Em alternativa, mais esforçada, entrar no Beco do Monte e ao atingir o cruzamento com a Rua Manuel Soares Guedes virar à direita, entroncando a seguir com a Rua da Bombarda. A Rua Manuel Soares Guedes é um razoável miradouro sobre o vale da Avenida Almirante de Reis e a colina do Campo de Santana, avistando-se até ao Areeiro, para norte. Esta variante tem 224 m de extensão)
- Cruzamento da Rua da Bombarda com as Escadinhas das Olarias e as Escadas do Monte. Em frente, entrando na Rua das Olarias que é o prolongamento da Rua da Bombarda. 216 m (2.152 m)
- Após passar pela Calçada Agostinho de Carvalho e Calçada do Monte, cruzamento com o Largo das Olarias. À direita, entrando no Largo das Olarias (Ermida do Senhor Jesus da Boa Sorte à direita e vista do Castelo de São Jorge em frente). 200 m (2.352 m)
- Cruzamento do Largo das Olarias com a Rua do Jordão. À direita, entrando na Rua do Jordão (a meio fica a Vila Luz Pereira). 46 m (2.398 m)
- Cruzamento da Rua do Jordão com a Rua do Terreirinho. Direita. 92 m (2.490 m)
- Cruzamento da Rua do Terreirinho com a Rua do Benformoso – WGS84 (graus decimais) lat.: 38.717705, long.: -9.134886. Em frente pela Rua do Benformoso (Edifício antigo, no nº 101). 113 m (2.603 m)
4. O Benformoso e o mal-afamado (Quarta etapa. 584 m)
A Rua do Benformoso, que deve o nome a um “boi formoso” que por aqui ruminou em tempos e por corruptela deu origem à toponímia actual, tem conhecido profundas alterações no último século e meio. Está hoje fechada ao trânsito e é por isso difícil imaginar que noutras épocas quase toda a circulação de Lisboa para norte se fazia por esta rua estreita. Até 1862 nem sequer a Rua da Palma existia, no troço que hoje lhe conhecemos, do Martim Moniz ao Desterro. Por isso quando os noctívagos iam ver nascer o dia nas hortas era por aqui que faziam caminho, cruzando-se com os saloios que das mesmas hortas traziam o que era necessário para alimentar Lisboa. A partir do Benformoso o trajecto prolongava-se pelas ruas dos Anjos e de Arroios, ligando ao Areeiro.
Outra prova do muito que esta rua mudou está no comércio actual onde predominam lojas e restaurantes de imigrantes recentes, paquistaneses, chineses ou vietnamitas. Mas até há poucos anos o último quarteirão do Benformoso, junto ao Largo do Intendente era lugar de má fama, um “mercado de baixa prostituição”, como lhe chama José Augusto França. Por ironia desenrolava-se este “mercado” em frente da fachada severa do palácio onde viveu o Intendente da Polícia de D. Maria I, Diogo Inácio de Pina Manique (número 52 do largo, segundo uma placa ali colocada, embora o registo do Óbito indique outra morada próxima, na Travessa da Cruz), também ele mal-afamado, apesar das muitas acções meritórias. Uma delas teve como palco este mesmo palácio hoje quase em ruína, onde Pina Manique albergou a Academia do Nu, uma iniciativa de ensino artístico já experimentada noutros locais onde acabava sempre por ser apedrejada pelos súbditos de sua majestade indignados com tal indecência.
Já se viu que das olarias que funcionaram na encosta da Senhora do Monte só restou o nome. Há contudo duas destas oficinas que quase chegaram aos dias de hoje nesta área mais baixa. Uma é a Fábrica de Cerâmica da Viúva Lamego, no Largo do Intendente, números 23 a 27. A outra é a Olaria do Desterro que ficava no Pátio do Desterro, ou Pátio das Indústrias, ao lado do Hospital do Desterro que laborou até aos anos 60, produzindo louça vermelha barata. É contudo provável que fosse sucedânea de uma antepassada mais ilustre, a Fábrica de Louça do Desterro, fundada em 1889 e que produzia faiança fina que concorria com as fábricas de Sacavém e Alcântara. No prédio situado em frente deste pátio da Rua Nova do Desterro, funcionou até há alguns anos uma serralharia que em tempos mais recuados terá correspondido à empresa dos Aeromotores Hércules, a acreditar nos azulejos que decoram a fachada, restaurados há alguns anos.
Ao contrário da Olaria do Desterro, de que só restam vestígios, a Fábrica da Viúva Lamego tem muito que ver graças à decisão do proprietário, em 1865, de revestir toda a fachada de azulejos polícromos, num delírio de imaginação que mistura anjos e figuras mitológicas, jarrões de flores e macacos, gaiolas de pássaros e figuras orientais.
Em matéria de azulejos há mais para ver no cruzamento junto ao Intendente onde a Rua da Palma dá lugar à Avenida Almirante Reis e onde começa a Rua Nova do Desterro. Aqui os prédios do n.º 1 e do n.º 2 da avenida obrigam a erguer os olhos para alto para ver as decorações Arte Nova, não só em azulejo como em ferro. O primeiro é uma obra de 1905, do arquitecto Joaquim Francisco Tojal, e pertence ao mesmo proprietário da Cervejaria Ramiro, situada ao lado, um estabelecimento muito conceituado na cidade entre os que cultivam como hobby a martelada no crustáceo. Quanto ao edifício do n.º 2, acabado de restaurar, fique-se a saber que foi Prémio Valmor, classificado como Imóvel de Interesse Público, e que corresponde a um projecto de 1908 da autoria de Adães Bermudes, o arquitecto de muitas obras Arte Nova de Lisboa como a Escola Normal Primária (depois Escola do Magistério Primário), o Bairro do Arco do Cego e o Instituto Superior de Agronomia. Integrou igualmente a equipa que concebeu o Monumento ao Marquês de Pombal. Por fim, ainda neste cruzamento, olhe-se (mas semi-cerrando os olhos para abstrair o estado de degradação da pintura) para a esquina oposta (Rua da Palma, 263 a 267) onde fica a Garagem Liz, exemplar de arquitectura modernista de Hermínio Barros (de 1933).
À semelhança da Igreja dos Anjos, também o Chafariz do Desterro mudou de sítio. Viajou do Largo do Intendente para onde agora se encontra, na confluência da Rua da Palma com a Avenida Almirante Reis. Aconteceu isto em 1917 (o fontenário é obra de 1897) mas as vicissitudes destas pedras já tinham começado antes: em 1910 as novas autoridades republicanas decidiram apear a coroa do chafariz, que só oito décadas depois foi reposta no topo da estrutura pela Câmara Municipal de Lisboa.
Cem metros acima encontra-se o Convento de Nossa Senhora do Desterro que não podendo ser visitado por dentro e não tendo muito a observar quanto ao exterior tem contudo bastante que contar. Começou a ser construído em 1591 para albergar os frades bernardos da ordem de Cister quando se deslocavam à capital, recebeu em 1750 os doentes do Hospital de Todos os Santos na sequência do incêndio que atingiu este edifício, cinco anos depois foi vítima do terramoto, em 1814 é abandonado pelas monjas cistercienses e instala-se lá o Colégio dos Meninos Órfãos da Mouraria e da Casa Pia. No ano de 1834 a Casa Pia muda-se para Belém abandonando o convento que a seguir serve de quartel e de Hospital da Marinha, transformando-se em 1857 no Hospital da Nossa Senhora do Desterro, onde quatro décadas depois abre o primeiro serviço nacional de doenças venéreas, sendo também criada uma “enfermaria das meretrizes”. Em 2007 é por fim encerrado.
Pensaram então as grossas paredes que já tinham experimentado tudo o que havia para experimentar em termos morais e físicos mas enganaram-se porque aquele espaço vai agora ser transformado num “território experimental aberto a Lisboa e ao mundo” onde se prevê que funcione uma “universidade da Vida”, workshops de auto-ajuda, um centro de medicinas alternativas, um laboratório de mezinhas, alojamentos em cápsulas e um “grande refeitório comunitário” em torno de uma lareira simbolizando o fogo.
Roteiro da quarta etapa
(Entre parêntesis estão assinaladas as distâncias acumuladas)
- Largo do Intendente Pina Manique. Virar à esquerda, atravessando a Avenida Almirante Reis (Palácio Pina Manique à direita, nº 48 a nº 54, e a Fábrica de Cerâmica da Viúva Lamego à esquerda, nº 23 a nº 27, ambos neste largo) 301 m (2.904 m)
- Cruzamento da Avenida Almirante Reis com a Rua Nova do Desterro. Em frente pela Rua Nova do Desterro (Chafariz do Intendente e Garagem Liz à esquerda). 103 m (3.007 m)
- Cruzamento da Rua Nova do Desterro com a Rua do Desterro. Em frente (Mosteiro de Nossa Senhora do Desterro à direita. A seguir, à direita, Pátio das Indústrias ou Pátio do Desterro). 93 m (3.100 m)
- Cruzamento da Rua Nova do Desterro com a Rua do Saco – WGS84 (graus decimais) lat.: 38.720436, long.: -9.137793. Direita para a Rua do Saco (à esquerda, no princípio da Rua do Saco, fica a antiga Escola Municipal n.º 1 e a Biblioteca de São Lázaro). 87 m (3.187 m)
5. O palácio da rainha, o acampamento dos ciganos e as barracas dos operários (Quinta etapa. 1290 m)
Deixando para trás o Desterro, entra-se na Rua do Saco, que começou por ser um beco sem saída (daí o seu nome). Paralela a esta corria a Rua da Inveja, que levava à Cruz dos Ciganos, do tempo em que a etnia (na altura ninguém saberia o que isto queria dizer) por ali acampava. Tudo nomes a lembrar fados da desgraçadinha. Mas é escusado procurá-los nas placas toponímicas, são designações de outros tempos, como a da Rua das Furçureiras, ou Forçureiras, a sul da Rua da Inveja.
Que moradoras terão dado o nome a esta Rua das Forçureiras não se sabe mas é certo que eram mulheres que viviam de vender forçuras ou “forssuras” de animais, ou seja intestinos de bois, porcos e carneiros. Depois de secas ao sol (não devia cheirar muito bem a Rua das Forçureiras) as tripas eram comercializadas para, entre outras utilidades, se fabricarem cordas de viola. Quanto à razão porque se instalaram aqui não é difícil de compreender tendo em conta que nessa rua ficava um matadouro, garantia portanto de fácil acesso à matéria-prima necessária. Era este matadouro que fechava o Beco do Saco.
Traduzindo esta toponímia para a actualidade e organizando-a segundo o percurso diga-se que a Rua das Forçureiras corresponde hoje ao troço norte da Rua de São Lázaro e que no ponto onde esta termina e começa a Rua Conselheiro Arantes Pedroso (a antiga Rua da Inveja), ocupando o mesmo local onde ficava o matadouro, está desde 1875 a Escola Municipal nº 1. A construção desta escola é resultado da consciência que se começou a formar nos meados do século 19 sobre as condições lamentáveis em que funcionava o ensino das primeiras letras. Dois cidadãos de Lisboa fazem assim uma doação de 2.500 réis para a construção de um edifício escolar que obedecesse aos modernos conceitos de higiene e pedagogia, como a localização e orientação do edifício, iluminação, condições de espaço (área e pé-direito), ventilação e espaço para jogos ao ar livre. Sim, este já foi um edifício moderno, pelo menos aos olhos dos seus contemporâneos.
Pioneira é também a Biblioteca Municipal de São Lázaro, encostada à escola, que é a mais antiga e das mais belas das bibliotecas públicas de Lisboa. O acesso ao seu interior faz-se pela Rua do Saco, que já há muito deixou de ser beco e que conduz ao Largo do Mastro, onde vamos encontrar mais um caso de um chafariz que foi forçado a emigrar. Este veio de Belém, onde tinha sido construído em 1848, e incorpora um conjunto de golfinhos que tinham sido projectados para o Chafariz de Santana. Ou seja, para o fontenário que se encontra a poucos metros do primeiro, também no Largo do Mastro, adossado ao muro que suporta o jardim do Campo de Santana. Em compensação partiu daqui, mais exactamente do jardim do Paço da Bemposta, um tanque que está hoje no jardim de São Pedro de Alcântara. Confuso? É natural, o mistério das pedras rolantes lisboetas é uma ciência difícil.
Há contudo um destino mais cruel para os monumentos, que é o de definharem lentamente, como está a acontecer com o Palácio do Mitelo, um edifício barroco, com sua capela, onde já esteve instalado o arcebispo de Mitilene. Em muito melhor estado de conservação se encontra o Paço da Rainha, entregue aos cuidados da Academia Militar que ali está instalada. O nome do paço refere-se a D. Catarina de Bragança, filha de D. João IV, tornada rainha de Inglaterra, e que, já no estado de viúva de Carlos II, e com a vida infernizada pela sua condição de católica num ambiente anglicano, regressa a Portugal em 1692. Passados anos a viver em diversos palácios decide construir um paço para si, comprando vários terrenos no sítio da Bemposta, uma vasta área que incluía o Largo de Santa Bárbara e os terrenos onde hoje se situam a sede da Polícia Judiciária e o Hospital de D. Estefânia. Não se sabe quando foi habitar o seu paço, certamente entre 1702 e 1704, mas pouco o usufruiu porque morreu no último dia do ano de 1705. D. Catarina de Bragança não conheceu por isso a actual capela, que é obra posterior ao terramoto, e muito menos a torre do observatório que lhe fica em frente, do século 19, destinada ao ensino dos militares.
O novo Paço da Rainha, ou da Bemposta, revolucionou toda esta área que ainda em 1755 era considerada limite da capital. À volta do novo palácio vão sendo edificadas novas casas senhoriais, como o Palácio Pombeiro (hoje Embaixada de Itália), em terrenos doados pela rainha a uma sua camarista, ou, no lado ponte do Campo de Santana, o Palácio Centeno, destinado a albergar parte do staff de D. Catarina e onde agora está a Reitoria da Universidade Técnica de Lisboa.
A partir do Largo do Conde de Pombeiro, que não é mais que a antiga Cruz dos Ciganos, entra-se na Rua das Barracas, cujo nome não deixa dúvidas sobre a sua origem e identidade social, muito diferente dos palacetes que ficam para trás. Para esta artéria e para a vizinha Rua de Santa Bárbara existiu um projecto de 1928 que previa o seu alargamento e, claro, a progressiva eliminação do “aglomerado de barracas e edificações impróprias”.
O projecto não terá sido seguido à risca, mas também não falhou completamente os objectivos. O Beco do Félix, onde agora se vira para atingir as escadas que levam à Rua de Santa Bárbara, é o que resta de vários becos que por aqui havia. A Rua das Barracas prolongava-se então muito para lá deste ponto, até próximo da entrada da Rua Passos Manuel, onde hoje se situam os prédios nº 1 a nº 5 da Rua Jacinta Marto.
Tem este Beco do Félix uma passagem superior que liga dois edifícios da antiga empresa Feliciano, Fonseca & Jorge Lda, de artigos de papelaria, que já encerrou, já foi ocupada, já ardeu, ou seja já percorreu a parte principal do Calvário que há-de levar à derrocada final dos seus edifícios.
A passagem pelo Largo de Santa Bárbara é uma oportunidade para espreitar o Palacete Lafões, na Rua dos Anjos nº 82, a dois passos deste largo, e, já agora, também a fachada da Ermida de Nossa Senhora do Resgate das Almas, logo a seguir. Dois edifícios dos quais já se conhecem as traseiras na passagem pelo Regueirão dos Anjos.
Após passagem frente à entrada do quartel da GNR de Cabeço de Bola (referente a Belchior de Oliveira, de alcunha o Cabeça de Bola, proprietário de uma horta que deu nome ao sítio) o percurso entra na Rua Passos Manuel que por seu lado termina no Jardim Constantino, princípio e fim desta volta por uma Lisboa onde os pobres, os burgueses e as rainhas viviam ao lado uns dos outros, confrontando miséria, remedeio e ostentação, e onde não havia bairros sociais nem condomínios fechados.
Roteiro da quinta etapa
(Entre parêntesis estão assinaladas as distâncias acumuladas)
- A Rua do Saco entra no Largo do Mastro (Chafariz do Largo do Mastro no centro). Em frente. 130 m (3.317 m)
- Cruzamento. Campo dos Mártires da Pátria à esquerda, Largo do Mitelo e Paço da Rainha à direita. Direita para o Paço da Rainha (Paço e Capela da Bemposta à esquerda e Observatório astronómico do Paço da Bemposta à direita). 132 m (3.449 m)
- Cruzamento com o Largo do Conde de Pombeiro, à direita, e a Rua da Escola do Exército, à esquerda. Em frente pela Rua das Barracas (Palácio do Conde de Pombeiro à direita). 226 m (3.675 m)
- Beco do Félix à direita. Virar à direita sob uma passagem superior que liga dois edifícios da antiga Empresa Feliciano, Fonseca e Jorge, Lda e descer as escadas que ligam à Rua de Santa Bárbara. 216 m (3.891 m)
- Cruzamento com a Rua de Santa Bárbara ao fundo das escadas. Esquerda. 39 m (3.930 m)
- Largo de Santa Bárbara. Atravessar o largo pelo seu lado esquerdo. 74 m (4.004 m)
- Cruzamento com a Rua Jacinta Marto. Esquerda. 44 m (4.048 m)
- Cruzamento com a Rua Passos Manuel. Direita pela Rua Passos Manuel. 48 m (4.096 m)
- Jardim Constantino. Fim do percurso. 455 m (4.551 m)