Num testemunho recente, a propósito do centenário de Madalena de Azeredo Perdigão, Rui Neves recordou ao Observador o primeiro contacto com o festival que se tornaria num verdadeiro projeto de vida: “De 1983 para 84 surgia o ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian, dirigido por Madalena de Azeredo Perdigão, uma nova unidade institucional vocacionada para apresentar novos horizontes estéticos versando novas músicas, o jazz, a nova dança, a performance, áreas artísticas que demonstravam franca inovação. Foi este o cenário em que surgiu o festival Jazz em Agosto, os Encontros ACARTE e o ciclo Nova Música Improvisada.”
Com o festival, explica Rui Neves, a diretora do serviço ACARTE – integrado no recém aberto Centro de Arte Moderna – “queria sobretudo testar se havia público em Lisboa no verão, apresentando com entrada livre, no anfiteatro ao ar livre, quatro grupos portugueses propostos pelo Hot Clube de Portugal, os mais importantes na altura: a cantora Maria João, os pianistas António Pinho Vargas e Mário Laginha, o Sexteto de Jazz de Lisboa. A adesão massiva de público foi decisiva para uma eventual continuidade”. No ano seguinte, e já depois de se terem conhecido a propósito do 1º Festival Internacional de Música de Lisboa, Madalena de Azeredo Perdigão convidou Rui Neves, desta vez para levar a efeito um festival internacional mais ambicioso, em 1985. Foi assim que começou a sua aventura no Jazz em Agosto, primeiro como consultor de jazz para a fundação e de seguida como diretor artístico do festival que chega por estes dias à sua 39.ª edição.
Quase 40 anos depois, Rui Neves mantém-se como a figura por detrás daquele que é um dos mais importantes eventos dedicados ao jazz em Portugal – pela longevidade, mas também pelos nomes que tem trazido até aos auditórios da Fundação e a Portugal. Atualmente, o Jazz em Agosto, cuja edição deste ano decorre entre 27 de julho e dia 6 do próximo mês, é um festival fruto de trabalho, imaginação e resiliência perante um género musical, como diz, sem “fronteiras definidas” e com “genes de mudança”, que pouco e pouco encontrou um público que o estima. Em entrevista ao Observador, o diretor artístico do festival analisa o atual panorama do jazz em Portugal, o papel das mulheres cada vez mais destacado neste género e a importância do transe e dos ritmos sonoros de origem africana, que marcam a presente edição.
Entre os principais nomes do festival deste ano está a Eve Risser’s Red Desert Orchestra, logo no arranque, bem como a participação do influente saxofonista britânico Evan Parker, com a formação Trance Map +, bem como na junção que irá fazer com os Natural Information Society, grupo fundado em 2010, pela figura de referência da cena de Chicago dos anos 90, Joshua Abrams. Destaque ainda para o concerto da trompetista Susana Santos Silva, que se apresentará a solo com multimédia e como membro do grupo Ekhidna; e para o concerto de encerramento a cargo da Gard Nilssen’s Supersonic Orchestra, uma formação de dezasseis músicos, com muitas estrelas do jazz nórdico, que prometem antecipar a festa das 40 edições que se seguirá no próximo ano.
Se há três décadas imaginasse o Jazz em Agosto deste ano, imaginaria tantas latitudes e diferentes abordagens?
A universalidade do jazz, uma música que contém genes de mudança, ter-se-á afirmado na sua fase mais politizada nas décadas de 1960 e 70 com a eclosão do freejazz/new thing. Atualmente, na segunda década do século XXI, a sua estrutura mais essencial mantém-se: o individual que se manifesta coletivamente e numa liberdade que não tem fronteiras definidas porque está sempre em mutação. Não surpreende, pois, que continue a conquistar novas gerações adaptando-se à própria evolução social, cultural e tecnológica.
A edição deste ano, como explicam no texto de apresentação, carrega um transe com origem africana – mas não só. De que forma é que esta ligação contagia a programação do festival?
Em música, a repetição está quase sempre presente e nas fórmulas rítmicas da África negra elas conduzem a um estado de transe, o que também se observa nos corais Gospel nos EUA. Em paralelo, os Gnawa de Marrocos exploram intensivamente o efeito transe no seu instrumento guimbri. Estas origens enriquecem naturalmente uma música como o jazz, onde estiveram sempre ativas, para mais, inventada por descendentes de escravos africanos no Novo Mundo onde as continuaram e aperfeiçoaram.
O jazz, nas suas mais variadas estéticas, é um género de grande interseção e de cruzamentos. Há marcas identitárias que prevalecem ou diria que é hoje um campo musical muito mais aberto às diferentes possibilidades?
Houve quem dissesse, no passado, que o jazz é uma música bastarda, surgida em meio popular e alimentando-se de muitas outras músicas circundantes. Willis Connover, radialista de jazz americano dizia, em pleno Be Bop, que o jazz não é uma música em si, mas uma maneira de se fazer música. Claro que permanecem marcas identitárias: o fraseado, a gramática, a sintaxe, mas há sempre novas direções e cenários exploratórios para quem é criativo. Por outro lado, as gerações do jazz que se vão sucedendo são cada vez mais dotadas, via novos processos de ensino e assimilação.
Que momentos importantes e intérpretes destaca na edição deste ano?
Um festival como o Jazz em Agosto é concebido numa sequência lógica tal como um programa de rádio ou mesmo um filme. Articulando-se ao longo de onze datas, ao fim do dia, num jardim em anfiteatro, permite verificar o estado do jazz internacional americano e europeu através de grupos reconhecidos nos campos da originalidade e criatividade. Seria injusto destacar algum músico, porque todos são destacáveis.
Ao longo dos anos, o festival foi também uma plataforma para muitos intérpretes e projetos musicais portugueses. Em que medida é que a atenção dada pelo festival ao panorama português ajudou a criar um caminho para outros músicos?
O jazz dos músicos portugueses sempre fez parte dos objetivos do Jazz em Agosto desde a primeira edição, em 1984, apresentando os mais interessantes músicos da altura. Nas sucessivas edições do festival sempre se deu a conhecer projetos e músicos relevantes a par de agrupamentos internacionais. Continuamos a valorizar músicos portugueses criativos, possibilitando-lhes também um reconhecimento mais alargado através de jornalistas e críticos internacionais presentes no festival. Na edição Jazz 2020, intermédia do Jazz em Agosto devido à pandemia, apresentámos uma programação totalmente portuguesa.
O que destacaria dessa participação portuguesa na edição deste ano?
Precisamente as três representações: o Trio The Attic do saxofonista Rodrigo Amado, que é referência internacional, reunindo o contrabaixista Gonçalo Almeida, baseado em Roterdão e o baterista holandês Onno Govaert; o quarteto do baterista João Lencastre, que revela empatias cultivadas com o contrabaixista americano Drew Gress e o pianista argentino Leo Genovese; a trompetista Susana Santos Silva que se apresentará solo com multimédia e como membro do grupo Ekhidna da guitarrista norueguesa Hedvig Mollestad.
Não deixamos de sentir uma grande presença feminina na edição deste ano. Há uma reflexão a fazer sobre o papel das mulheres no jazz que foi ganhando ancoragem ao longo dos últimos anos?
Ao longo das programações do Jazz em Agosto a presença de instrumentistas femininas foi acompanhando a evolução natural dos tempos, década a década, atingindo o ponto atual em que se evidencia essa paridade com instrumentistas masculinos. O facto é social e o jazz como reflexo torna-se enriquecido com novas perspetivas.
Este ano marca o centenário de Madalena de Azeredo Perdigão, que foi a grande impulsionadora do Jazz em Agosto. Como olha para o seu legado, no que toca à sua compreensão deste campo musical em Portugal?
Quando Madalena de Azeredo Perdigão assumiu a direção do ACARTE (serviço do à época recém-inaugurado Centro de Arte Moderna da Gulbenkian), em 1983, tinha um plano visionário que consagrava dar a conhecer em Portugal as novas tendências das artes performativas em várias áreas da Arte. Concretizou-o com reconhecimento e sucesso até 1989 quando morreu. O Jazz em Agosto foi uma das suas ideias que persistiu: revelar, ano a ano, caminhos inovadores do jazz, mesmo correndo riscos.
Atualmente, os festivais e momentos dedicados ao jazz em Portugal ganharam espaço e chegaram a muitos tipos de públicos. Como olha para o panorama atual?
Repara-se que existe maior envolvimento das Câmaras e Teatros Municipais a par do aparecimento de jovens programadores que têm apostado no jazz. As diversas correntes estéticas e estilos do jazz alimentam os mais variados gostos.
Há um público português de jazz? É possível defini-lo?
O mercado musical português é pequeno, nele representando o jazz uma percentagem ínfima. A nossa experiência diz-nos que existe um público português para o jazz. Ele tem-nos acompanhado ao longo destas quatro décadas e crescido connosco ao longo do tempo. Este público é curioso e aberto às novas tendências, tal como grande parte dos músicos que apresentamos.
A um ano de completar 40 anos de existência, o que ambiciona para o Jazz em Agosto e o que lhe falta fazer?
Quarenta edições são quatro décadas a testemunhar a evolução de uma música como o jazz, onde o sagrado e o profano, dir-se-ia, se tocam e misturam. Assim se procede a uma mudança contínua, a evolução do jazz, tal como a evolução social ou a das nossas vidas. Acompanhando este fluxo sempre renovado com os cinco sentidos só falta mesmo fazer o Jazz em Agosto 2024.