“Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”, escreveu Tolstoi, em Anna Karenina. Se a essas famílias infelizes se juntar um rasto de doenças mentais, circunstâncias sociais e políticas que mantinham as mulheres sob o jugo do poder masculino e criaturas que ainda assim teimam em ser livres num mundo que não as consente, então temos todos os elementos para compor uma tragédia tão silenciosa e terrifica como aquela que viveram a pintora portuguesa Menez (1926-1995) e o seu filho mais velho, o também pintor Ruy Leitão, cuja obra profusa para uma vida tão breve pode ser vista, até ao final do ano, no Centro de Arte Manuel de Brito, em Lisboa. Um total de 119 obras, entre as que foram entregues à Galeria 111 pela própria Menez, e as que foram, recentemente, doadas pelo escritor Helder Macedo.
A vida de Karenina, uma aristocrata russa do século XIX, saída da cabeça de um escritor prodigioso, pode parecer incomparável à vida real de uma mulher da alta burguesia lisboeta do século XX, que possuía meios próprios de sustento e era uma artista reconhecida. A verdade é que a história de mulheres que descobriram que uma vida casada, quotidiana e tributária era uma condenação para os seus espíritos apaixonados, sedentos, convulsos, atravessa todos os tempos e geografias. Na sociedade portuguesa, fechada sob um regime patriarcal, agrilhoada sob tradições religiosas e morais, a história de Maria Inês ou Menez continua lancinante e não se pode pensar na arte, na doença e na morte de Ruy Leitão fora do que foi a sua tragédia familiar.
Menina de boas famílias, neta do general Óscar Carmona, Menez teve uma educação cosmopolita entre várias cidades e países. Mas tal como muitas mulheres da sua condição, estudar — ainda mais estudar Arte — não era coisa que estivesse no horizonte. A artista teve aulas particulares e só aos 26 anos, já casada e com filhos, começa de facto a investir na pintura como autodidata. O crítico de arte José-Augusto França será um dos primeiros a reconhecer-lhe publicamente o talento e a singularidade. Fechada nessa Lisboa-Elsinore acaba por se apaixonar e parte para Paris com o amante, deixando o marido e os três filhos pequenos. E aquilo que seria apenas um drama burguês começa a ganhar contornos de tragédia quando Menez, incapaz de lidar com a separação dos filhos, acaba por abandonar o amante e regressar a Portugal. Mas era tarde. Todas as portas se lhe tinham fechado e, durante muitos anos, por ação do ex-marido e a conivência silenciosa de uma sociedade que pune exemplarmente mulheres que se atrevam a viver fora das normas, Menez foi totalmente impedida de ver ou contactar com os filhos, que acabariam por crescer sob a ausência materna. Já eram adolescentes quando se reuniram os quatro, em Londres, um reencontro comovente imortalizado nas fotografias que João Cutileiro lhes fez nesses dias de alegria resgatada, e que também podem ser vistas no CAMB.
Durante vários anos a viver entre a capital inglesa e Lisboa, Menez foi bolseira da Gulbenkian, estudou pintura, fez trabalhos em cerâmica, gravura e serigrafia. Apesar de longe dos filhos, a sua influência tutelar nunca deixou de se fazer sentir e tanto Marta como Ruy Leitão acabam por tornar-se também pintores. Mas é Ruy que, indo estudar para a Chelsea School of Arts, em Londres, ainda durante a adolescência, se tornará aluno dileto de um dos mestres da Pop Art inglesa, Patrick Caulfield. Este, quando conheceu Menez, disse-lhe “este rapaz é um génio”, ao que a pintora portuguesa terá respondido: “não diga isso que dá azar”. Esta conversa é recordada por Helder Macedo, num texto escrito para esta mostra, onde acrescenta: “ambos tiveram razão”.
Nesses “swinging years” londrinos, Menez dá-se com Paula Rego e o marido Victor Willing (que será dos primeiros a escrever sobre a obra da neta de Carmona), com Mário Cesariny, João Vieira, Cutileiro, Bartolomeu Cid dos Santos. Contacta com a Pop Art e mais tarde a Figuração, movimentos que deixaram marcas na sua obra. A partir de 1966, a pintora terá consigo o filho Ruy, um adolescente pouco sociável, que preferiu sempre a linguagem das imagens à linguagem verbal e momentos de uma alegria esfuziante, infantil, para alguns incompreensível, para outros inquietante. Helder Macedo prefere lembrar-se da sua alegria: “O génio precoce de Ruy era a sua inocência. A inocência que o mundo não perdoa. A alegria que o mundo não consente”. Este texto íntimo e comovente do poeta português acabou por dar o título a esta exposição: “Ruy Leitão, com alegria”.
Arlete Alves da Silva, diretora do CAMB, também ela amiga de Menez, testemunha da sua história de vida e fiel depositária do espólio de Ruy Leitão, disse ao Observador: “Comovi-me muito ao reunir tantas coisas do Ruy, pensei muito na Menez, no seu sofrimento, no Ruy e em todas as suas sombras, mas quis que esta mostra fosse feita sob o signo da alegria. Da alegria que há nestas obras, ainda que torturadas, a alegria com que ele as criou, o gozo que lhe deve ter dado. Mas também queremos retirar o Ruy do nicho do meio artístico, onde ele é bastante conhecido, e dá-lo a conhecer ao grande público. O CAMB não é uma instituição comercial, aqui posso resgatar as memórias. Além disso, antes de morrer, a Menez pediu-me: ‘não deixes esquecer o meu filho'”. Alves da Silva revela ainda ao Observador que, recentemente, o governo português comprou três obras de Ruy Leitão para agregar à Coleção de Arte Contemporânea do Estado, o que à partida dará mais visibilidade a este artista.
É de novo Helder Macedo que, por email, nos conta como um dia Ruy foi para uma festa depois da qual esteve muitas horas desaparecido, tendo sido encontrado sob o efeito de LSD. Este episódio viria a marcar uma viragem na vida do jovem artista, que começou a revelar sintomas de esquizofrenia. A doença, se por um lado o ajudou a criar uma obra absolutamente única onde a herança da Pop Art ou a influência de Patrick Caulfield se materializam em desenhos e pinturas onde o quotidiano e o banal se cruzou com o poder do sonho, também terá sido a responsável pelo seu suicídio, com apenas 26 anos. Nesse ano de 1976, a sua doença mental agudizou-se, vivia com uma namorada a quem terá confessado “ouvir vozes que lhe diziam mal da mãe”.
Apesar de já ter tido duas exposições (1970 e 1974), de continuar a pintar e a desenhar profusamente, num dia sem história saltou da janela da casa de Menez deixando suspensa, para sempre, toda a sua potência criativa, inacabados todos os seus projetos.
Lembro-me de uma fotografia do Ruy muito pequeno a olhar encantado um minúsculo bicho e nesta concentração (com tudo o que tem o olhar amplificador da infância sobre o terrível das formas) uma atenção toda concentrada, absorta nessa matéria, nessa impenetrabilidade (…) com as pessoas era assim. Rejeição de explicações, diálogos, nomes, frases. Uma maneira de viver a relação com os outros que para os outros era vertiginosa e impenetrável (…)”
[Maria Andresen de Sousa Tavares sobre Ruy Leitão, em carta enviada a Maria Filomena Molder, 1995]
A inocência que o mundo não consente
Os testemunhos que nos chegam da vida de Ruy são os de uma infância que se prolongou na vida adulta, entre as alegrias e convulsões que a sua arte testemunha. As suas dificuldades de comunicar com o mundo em redor encontraram nas imagens uma superação. Era um rapaz reservado, com acessos de alegria, gestos infantis inesperados, como inesperadas e comunicantes eram as suas obras, todas usando apenas materiais “pobres” como lápis de cor, de cera, marcadores de feltro, papel cavalinho, cartão, esferográficas. Os materiais que usava para grafar, como os lápis de cor, eram tantas vezes reproduzidos na tela; desenhava o objeto com que desenhava, num reenvio fecundo entre a coisa e a sua imagem. Para Maria Filomena Molder, a obra deste autor é “uma das formas mais originais da pintura portuguesa contemporânea, de aliar a ironia, o humor, sem mordacidade, à exatidão”, convertendo o mundo numa imagem atravessada “pelo olhar amplificador da infância sobre o terrível da forma”, respeitando “a monstruosidade que habita as coisas, a sua ilegibilidade, tentando todos os procedimentos que lhe permitem prolongá-la intensificá-la”.
O historiador de arte americano Helmut Whol escreveu sobre Ruy Leitão: “A sua linguagem visual assenta na ambiguidade entre a imagem e o sinal, a novidade e o cliché, a invenção e a repetição, o familiar e o surpreendente. No entanto como nos jardins da infância ou da história, ele oferece imaginação e beleza e mistério, nostalgia, deleite (…) as suas imagens entram numa espécie de estado fluído e onírico em que brilham e se multiplicam como entre membranas excessivamente afiadas do cérebro”.
Apesar de ter sido indelevelmente influenciado pela Pop Art, o artista português foi sobretudo um herdeiro deste movimento que já declinava quando ele chega a Londres, no final dos anos 60 e estuda com Patrick Caulfield. Ruy Leitão, à semelhança de David Hockney, vai laborar dentro deste movimento, mas fará dele já uma interpretação e uma reflexão distanciada. No livro Ruy Leitão por Maria Filomena Molder, a filósofa defende que o trabalho deste “é um surpreendente desenvolvimento inédito e original das regras da pintura exata, irónica e austera de Caulfield, através de uma atenção sensível aos lugares comuns, aos pequenos pormenores, aos objetos de uso, pelo amor pela linha e a cor, pela procura de simplificação das formas de sentido”.
Nas imagens densas, alucinatórias, irónicas ou inquietantes que parecem jorrar cor e movimento para fora dos limites da tela, surgem frequentemente instrumentos do quotidiano, da casa, como talheres, sapatos, casacos, malas, chapéus, teclas de piano representados num continuum imenso e excessivo que nos convoca a abrir rasgões no seu utilitarismo, aparentemente sem história, espreitá-los em novas e terríveis dimensões.
Neste mesmo livro, Molder aponta outra das linhas de força da obra gráfica de Ruy Leitão: o corpo. Um olhar obsessivo sobre o corpo, especialmente o corpo masculino, especialmente o corpo mutilado. “Outra das suas inovações mais prodigiosa consiste no modo como representa o corpo, o seu mistério, o seu segredo. A natureza do corpo é corrompida com rigor definitivo a partir das suas várias origens — publicidade, BD, desenhos animados (…) por um lado no corpo não se vê o seu cadáver, não há propriamente a experiência da corrupção do corpo, mas de decomposição, no sentido da dispersão das suas partes, não havendo qualquer choque em relação à descoberta de um interior tenebroso.”
Na única tela que pintou, um chapéu virado ao contrário, transformado num tanque, num poço ou piscina. Há homens que se afogam, mãos desesperadas a pedir socorro que, todos sabemos, não chegará nunca. “Lembro-me da alegria do Ruy”, escreve Helder Macedo. “Uma alegria com repentes inesperados. A atirar-se ao chão e a avançar pela alcatifa como uma criança. Ou um nadador num mar da infância momentaneamente recuperada. A infância era o país da sua alegria.” Sempre totalmente entregue ao momento, “realizando a salvação do que estava destinado a estar perdido” e, escreve ainda Maria Filomena Molder, “compreendeu como poucos a natureza reveladora da imagem ferozmente integrada no caos, o imenso e desregrado de todas as imagens.”
Paula Rego considerava-o o maior artista português da sua geração, no entanto, como se pode comprovar, 47 anos depois da sua morte, os contemporâneos de Ruy Leitão estendem-se pelos séculos fora e muitos estarão ainda por nascer. A sua filiação selvagem desafia todos os olhares e todas as tentativas de arrumação conceptual.
Marta Leitão, a segunda filha de Menez (e que também pintava), suicidou-se um ano depois de Ruy, deixando de herança à única filha, Joana Leitão, esse mesmo impulso artístico. Os três filhos de Menez acabaram todos por morrer jovens e o encontro dos quatro foi um hiato de felicidade numa vida conturbada, como se as Fúrias, as Erínias, os tivessem feito pagar por toda a sua beleza e talento.
Esta mostra organizada pelo CAMB não é apenas uma exposição antológica e Ruy Leitão. Ela é também o rasto do quanto, até há poucas décadas, em Portugal, uma mulher poderia pagar se rejeitasse o estatuto de esposa, mãe, casta, pobre de espírito e o quanto a doença mental pode ser uma das mais fatais que existem. Ver a obra de Ruy Leitão, na sua luta contra todas as sombras, através do exercício da alegria e ainda prestar homenagem a Menez e à sua coragem de querer cumprir a sua vida.
“Ruy Leitão, com Alegria”, que reúne um total de 119 obras, fica patente no Centro de Arte Manuel de Brito, no Campo Grande, em Lisboa, até 30 de dezembro de 2023.