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FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Salvador Martinha: “Já tenho frase para a minha lápide: 'Estive sempre a falar a sério, as pessoas é que se riram'”

Prepara-se para estrear uma peça de teatro que escreveu e protagoniza. Antes, Salvador Martinha fala sobre o humor próprio e o dos portugueses, o apelo de uma vida banal e o valor que tem a morte.

Está a dias de fazer 40 anos e é um dos humoristas mais importantes e bem sucedidos da sua geração. Tendo começado o seu percurso, em modo selvagem, com um grupo de amigos, teve, bastante cedo, uma aparição no “Levanta-te e Ri”, passou pelo canal Q, experimentou colaborações várias na rádio, na TV, na imprensa e na internet e guarda o galardão de ter sido o primeiro comediante português a ter um espectáculo na Netflix. Há muito que enche salas com o seu stand-up, feito de um empático humor de observação. Hoje, apresenta como um dos seus formatos mais importantes o podcast “Ar Livre”, em que assume o papel de cronista de costumes e da sua biografia, perante uma audiência cada vez maior.

Fomos falar com ele à sala de ensaios onde se prepara para a peça “Plim, Passa Lá na Agência T1”, que se estreia para a semana, em Lisboa (e depois segue por outras cidades do país, ver datas no fim desta entrevista), sobre o universo dos influencers. Ficámos a saber que é para continuar o movimento de ir experimentado, como ator, novos universos, alguns deles bastante distantes do seu. Numa conversa informal, Salvador faz uma digressão sobre o início do seu percurso, sobre as dificuldades e conquistas, a sua ascendência literária, as suas utopias políticas, as suas terapias e as terapias de outros. Uma conversa sobre a necessidade da dúvida de quem prefere partilhar inquietações, de pai, filho, marido, amigo, homem, cidadão, a proferir doutos conselhos e outras sentenças. E também sobre o conflito, até agora pacífico, entre uma pulsão de criar e a vontade de, um dia, desaparecer de cena — para um confinamento existencial fora dos palcos, mais perto dos dias.

Quando começaste, sentiste a solidão do jogador a entrar em campo sem um Ruben Amorim para te orientar? Ou tinhas alguém que cumpria esse papel?
Se olhasse para trás, comparando com o que acontece com alguns atores que vou conhecendo, vejo que eles têm mestres com quem trabalharam. Trabalhei recentemente com o José Condessa e com o Rodrigo Tomás, que falam do Carlos Avillez como sendo mestre. Mestre realmente. Educou-os, ensinou-lhes o que era teatro e eles trazem até hoje esses ensinamentos. No humor é um bocadinho mais selvagem. O início é muito solitário. Quando começamos temos os nossos mestres, mas depois, em geral, esses mestres não trabalham connosco. Ao mesmo tempo, há um lado fascinante em experimentar.

Tinhas um sidekick?
Os meus mestres acabavam por ser os meus amigos humoristas. Aqueles que estavam à frente de mim no plano da escrita. O Alexandre Romão, que adorava escrever e tinha uma alma de escritor. Ou o Rui Sinel de Cordes. Quando comecei, não tinha regras e técnicas de escrita. Depois fui fazer workshops e ver como é que se escrevia no género. As minhas referências eram as pessoas que estavam no canal Q, onde tinha um programa, e nas Produções Fictícias. E aquilo que ia vendo. Não tinha bem noção do que é que fazia. Era selvagem. Praticava um humor completamente selvagem.

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Chegavas a casa e pensavas no que tinhas experimentado durante o dia?
Na altura não havia tanto pensamento. Ou havia um pensamento, o mais puro de todos: o de fazer rir. Que é bom conseguir preservar até hoje. O que dizia nos programas do Canal Q era completamente impensável. Penso sempre numa piada como sendo uma tese, mas ali nem defendia teses. Ou as teses que defendia não estavam bem defendidas.

"O que tenho, acima de tudo, são dúvidas. Lanço questões. Depois não sou ninguém para responder."

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Não havia um ponto de vista.
Não havia. A questão era: “Isto faz rir ou não faz rir?” O pensamento veio mais tarde.

Sendo que tu – e isso é notório naquilo que vais fazendo – és alguém que pensa bastante.
Quando comecei, não era assim tão analítico. Pensava o mundo fora de mim. Comecei a sê-lo quando comecei a pensar nas minhas fragilidades e nos meus medos. Aí é que começou a haver pensamento. Porque é que faço isto? Por que é que faço esta piada? Porque é que me mexo desta forma? Porque é que tenho esta vergonha? Aí é que começaram a haver pontos de vista.

Aí é que começou a haver a sombra. Há humoristas que se jogam, que mostram as suas sombras, e outros que não se jogam. Que são técnicos oficiais de contas do humor. Interessam-te humoristas que arriscam as sombras, que também são artistas?
Interessam-me. Como observador e como praticante. Mas não num ângulo presunçoso do género “estes são melhores do que os outros”. Mas penso: “Este gajo trouxe qualquer coisa, este gajo deu-se aqui à morte. Além de se expor, acrescenta uma perspetiva”. É uma exposição que traz dúvidas e caminhos para seguirmos. Como se não soubesse da questão que determinado humorista está a apresentar e ele, de repente, me levasse para a estradinha dele e para a encruzilhada: “Agora vou por aqui e agora vou por ali”.

Sente-se que percorres uma espécie de “caminho do meio”. Trazes técnica, és um aperfeiçoador da tua própria oficina, mas também vais jogando a tua biografia. No podcast “Ar Livre” isso é particularmente evidente. Revês-te nesta ideia de “caminho do meio” do humor?
Não me vejo só como tecnicista. À medida que fui explorando as ideias fui percebendo que tinham um impacto diferente do que acontecia com o meu material mais antigo. É quase como se fizesse acupuntura e sentisse “Ah, eu estava a fazer mal”. Como se fosse alguém que faz acupuntura, que tem o seu salão, que tem a sua bata e que pode cobrar a sua sessão, mas que não está a tocar nos pontos. Comecei a pensar: “Isto é uma questão pertinente para as pessoas, é importante tocar nisto”. Não é uma questão de pensar: “Vou fazer o que as pessoas querem”. É, dentro das minhas inquietações, procurar o que interessa outros. Não posso simplesmente pensar: “Eu sou eu e sou super interessante”. Do género “vomito tudo e as pessoas depois comentam ‘ai que interessante que ele é!’” Temos partes extremamente desinteressantes. Prefiro pensar: “Esta questão é minha e também pode ser de toda a gente”.

Há um lado teu muito evidente no no “Ar Livre” que é o da partilha. De todas as tuas vitórias e derrotas. Do que tu és como pessoa, como amigo, como marido, como pai, até como desportista. És um cronista. Foi algo que viste outros fazer ou que nasceu em ti e quiseste experimentar?
Tomei conhecimento do formato de podcast do tipo “Ar Livre” por aquilo que, no formato, faziam dois comediantes: o Bill Burr e o Chris D’Elia. O podcast do segundo chamou-me mais a atenção. Apesar de, hoje em dia, gostar mais do registo do Bill Burr. O formato é uma oportunidade de se sustentar ideias. É isso que faço no “Ar Livre”. Aproveito para lançar muitas ideias de improviso ou pequenas notas, desenvolvo-as depois e há uma espécie de tango com os ouvintes. Eles ajudam-me muito. É quase como se fossem o meu sidekick. Às vezes, vivemos na nossa bolha e podemos tornar-nos muito desinteressantes, explorando temas que não interessam. Se tenho palcos e programas, faz parte de respeitar essa sorte desenvolver ideias que são pertinentes.

"Sinto um alívio com a ideia de que vamos morrer porque assim tudo fica mais leve. Não precisamos de nos levar tão a sério. O que fazemos não é assim tão importante, mas, já que fazemos, vamos dar o máximo. Se correr mal, não há problema. Não vale a pena chatearmo-nos uns com os outros. Não vale a pena termos ódio."

Aqui e ali, vais deixando conselhos. Dá a ideia de que percebes qual é o auditório que tens, a sua faixa etária e quais são as suas inquietações. Nota-se que pisas esse chão conscientemente e deixas pistas.
Sim. Mas nunca como guru. Quando estou a dizer às pessoas, estou a dizer a mim próprio. Do género: “Temos de aproveitar a vida. Vamos morrer”. Só há dois, três anos me bateu que um dia vou morrer e isso mudou completamente a minha vida. Lembro-me de que vamos morrer e vivo cada dia. Olha a sorte de estar aqui, a sentir este chão, com esta vista, a ter esta conversa. Amanhã pode não estar a acontecer. “Bora curtir!” Digo isso aos amigos. Também sou sensível às mensagens que as pessoas enviam, como “estou triste” ou “estou com problemas no trabalho”. Digo a mim próprio e digo a essas pessoas, como se fossem minhas amigas. “Tás triste no trabalho, caga nisso!”

Essa consciência de que se vai morrer pode ser relacionada com a ideia de deadline, que todo o criativo tem. Sem a meta temporal, muita coisa não seria feita. E o fim da vida pode ser visto como uma deadline. Assim sendo, o melhor é começar a fazer coisas.
Sinto alívio com a ideia de que vamos morrer porque assim tudo fica mais leve. Não precisamos de nos levar tão a sério. O que fazemos não é assim tão importante, mas, já que fazemos, vamos dar o máximo. Se correr mal, não há problema. Não vale a pena chatearmo-nos uns com os outros. Não vale a pena termos ódio.

Ouça aqui o primeiro episódio da série de podcast “O Sargento na Cela 7”.  A história de António Lobato, o português que mais tempo esteve preso na guerra em África.

Isso tem particular interesse porque em muitos artistas existe um medo extremo de morrer. Em ti é uma forma de libertação.
Partilho opiniões no podcast, mas sei que há outras perspetivas. Só tenho uma. Existem muitas pessoas que vivem como se não fossem morrer. Para mim, é absolutamente surpreendente haver pessoas que vivem com uma atitude pesarosa, como se não fossem morrer. Então digo a essas pessoas: “Tu tens noção de que amanhã podes não estar cá?”

Estou a lembrar-me de uma edição do teu podcast em que falas da pornografia através de um ângulo. Disseste algo como: “Pessoal, cuidado que isto há muito tráfico humano no mundo da pornografia”.
Fiz um especial, na altura do canal Q, sobre pornografia em que não abordava nada disso. Abordava a superfície. Que não tem mal. É outro tipo de abordagem. Nos sites pornográficos, que fazem parte da rotina de muita gente, vídeos que se pensa serem profissionais podem não o ser. Há várias situações de pessoas que estão em cativeiro e estão a desenvolver trabalhos forçados.

Será que 25 por cento dos teus ouvintes deixaram de consumir pornografia porque disseste que deixaste de ver pornografia a partir do momento em que soubeste pelos jornais que, nesse universo, há muito tráfico de pessoas?
Acho que não. Mas fica sempre uma semente. Cada pessoa tem o seu timing para chegar a determinadas conclusões. Tem a ver com a experiência. Por exemplo, o facto de ter ou não filhos. Os filhos tornam-nos mais sensíveis. O que tenho, acima de tudo, são dúvidas. Lanço questões. Depois não sou ninguém para responder. Vou desenvolvendo algumas respostas mas as dúvidas é que são a minha especialidade.

"Nisso sou pouco português. Os portugueses têm muitas certezas, sim. Mas depois apaixonam-se pelas cabeças que os fazem pensar."

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A dúvida, para a maior parte das pessoas, é desconforto. Hoje, as pessoas são muito treinadas – e a autoajuda baseia-se nisso – para a assertividade.
As pessoas em relação às quais tenho menos paciência são as pessoas que sabem tudo. Não tenho nenhuma identificação com essas pessoas.

A maior parte das pessoas, mesmo que tenha dúvidas, quer parecer que não as tem. Topas as pessoas que fingem que está tudo dominado?
Neste momento incomodam-me, sobretudo. Não digo: “Esta pessoas estão com certezas, mas não sabem nada”. Irritam-me.

Também há a assertividade da dúvida.
Também há. O chato que põe tudo em causa.

O português é, em geral, um ser de muitas certezas.
Nisso sou pouco português. Os portugueses têm muitas certezas, sim. Mas depois apaixonam-se pelas cabeças que os fazem pensar.

As pessoas são, em grande parte, adições de preconceitos. Perante cada assunto, reproduzem ideias-feitas.
Avançam a sua vida com as regras do sistema. Qualquer dúvida é um atraso.

No mundo digital, o like também é isso. Obriga-te a assumir, muitas vezes sem perceberes porquê, se gostaste
Agora abriste uma possibilidade. A do boneco do “não sei o que sentir” ou o do “não sei gosto disto”. Por exemplo, na política. Não percebo nada de política, mas gosto muito de a acompanhar. Gostava de ver um debate político entre alguém do Bloco de Esquerda e alguém da Iniciativa Liberal em que um deles dissesse, a certa altura: “Essa sua ideia é capaz de ser boa aqui para o meu partido”. Acho que é isso que enfraquece os políticos. Estão demasiado certos das suas opiniões. Não são reais, são bonecos.

Não são credíveis para ti. Mas para a maioria são. Porque a generalidade vai na opinião da sua tribo.
Não sei se nos sistemas partidários resulta ter uma ala esquerda e uma ala direita. Acho que não. Para mim era tudo independente.

Por falar de política, tens como ascendentes o António Ferro e o António Quadros, duas pessoas com caparro intelectual.
Senti que essa herança foi pesada para a minha mãe [a escritora Rita Ferro] e para os meus tios e que, para mim e para os meus primos, não o foi. Sempre fugimos a essa herança, fazendo o nosso caminho, sem estar nem num registo de saudosismo nem de celebração dos nossos avô, bisavô e bisavó, que fazem parte da minha história. Nunca conheci o meu bisavô. A minha mãe deu-me sempre uma perspetiva crítica, nunca definitiva. Deu-me as coisas boas que o meu bisavô tinha. Era criativo…

Tinha aforismos, alguns cómicos.
Tem um aforismo que adorava: “Eu passo e os outros falam, os outros falam e eu passo”.

E deu-te o ângulo…
Sim, falou da ligação a Salazar. Nunca me entregou um dossier com certezas.

"Não tenho a ambição de, ao envelhecer, ser um boneco, já com laca e cheio de cera, 'a fazer as minhas, à Salvador'. Tenho interesse em ser mais camaleão. De, em cada projeto, haver um salto maior, uma diferença de cores, de personagens, de protagonistas."

Já foste treinado para ver as coisas e as pessoas sob diferentes ângulos.
Fui. O meu avô, António Quadros, sempre foi muito endeusado pela minha família. Era filósofo. Um intelectual. Ainda o conheci. Tal como também conheci a minha bisavó, Fernanda de Castro. Ia visitá-la. Era uma pessoa tão carismática que, mesmo acamada, fazia saraus culturais. Chegava lá e via poetas, escritores, que iam assistir àquela energia e àquela sabedoria.

Havia nessa altura uma partilha maior. Os escritores hoje estão menos conviviais. Imagina que vais a casa do Lobo Antunes. Ele se calhar nem fala.
Por acaso, conheço o Lobo Antunes porque é amigo do meu pai. Conheci-o quando estava a fazer chichi num pinhal. Quando cheguei a casa do meu pai, ele disse-me: “Desculpa lá, o amigo António está aqui a…” Foi assim que conheci o Lobo Antunes.

Há uns tempos disseste que nos primeiros quatro anos de terapia não conseguias abordar certos temas. Tens, no entanto, progressivamente, vindo a falar de assuntos cada vez mais pessoais.
Estou preparado para dizer tudo o que achar relevante. Mas sei que há um limite. Um teto que pode envolver outras pessoas. Pode não compensar. No outro dia apareceram-me pop-ups do que pode ser o futuro. Sinto que estou a trilhar esse caminho no “Ar Livre”. Quero expandir a minha criatividade para outras realidades. Preciso de sair um bocado de mim e de me tornar noutras pessoas e figuras. Gostava de desenvolver personagens numa realidade completamente diferente da minha, como a do Bairro da Cova da Moura ou a do Bairro da Jamaica. Se fizeres psicoterapia e gravares as tuas consultas, passados três anos, és um bocadinho aquilo.

O fenómeno da terapia. Fala-se tanto de terapia que dá a ideia de que toda a gente anda na terapia.
Sim. Com a pandemia, as pessoas mudaram e não disseram nada ninguém. De repente toda a gente fala nisso. Antigamente era comum perguntar-se: “O que é que vou lá fazer?” Agora já é um comportamento burguês.

Um status.
É como ter um PT. Ao falares de terapia, mostras que estiveste a cuidar de ti. É como a rotina de pele.

Voltando à política. Imaginemos que agora os políticos passavam a assumir que fazem terapia. Cavaco, o homem das certezas, por exemplo, falava do seu terapeuta em público. Ou Marcelo.
Eles têm conselheiros. Mas de facto podia aparecer o terapeuta de Estado. Era bom fazer-se uma lista de políticos que foram à terapia. Todos assumiam que iam. É como aquele anúncio da Control, em que alguém pergunta: “De quem é isto?” E depois aparece uma série de pessoas, a dizer: “É meu!” O mesmo poderia acontecer com os políticos. Perguntava-se: “Quem é que vai à terapia?” e lá iam, um a um, respondendo. Até que chegava o André Ventura. O Ventura jamais admitirá que vai à terapia. Porque, se assim fosse, as suas ideias poderiam ser todas colocadas em dúvida.

Há pessoas que elogiam o terapeuta. E há pessoas que se elogiam como pacientes. Do género: “O meu terapeuta é bom, mas eu, como paciente, também sou muito interessante”. Como é que te vês como paciente?
Uma pessoa elogiar-se como paciente pode ser uma presunção. Acho que sou um doente entusiasmante. Porque sou um entusiasta da minha própria doença. Fico excitado com as minhas questões.

"Já contei a minha realidade. Quero contar outras. Com uma luz do público para perceber se devo ir por um caminho ou por outro. Não vou forçar se não tiver jeito."

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Estás aqui a ensaiar uma peça, “Plim, Passa Lá na Agência T1”, num movimento de exploração da tua componente de ator. Queres ser cada vez mais artista?
A nossa existência e o nosso conhecimento têm um teto. O que me faz perguntar: se eu vou continuar a viver de apresentações, de séries, de pensamentos e de ideias, tenho de me tornar múltiplo. Porque eu próprio não vou chegar. Não tenho a ambição de, ao envelhecer, ser um boneco, já com laca e cheio de cera, “a fazer as minhas, à Salvador”. Tenho interesse em ser mais camaleão. De, em cada projeto, haver um salto maior, uma diferença de cores, de personagens, de protagonistas. Vou passar do microfone para uma peça sobre uma agência de influencers. Agrada-me a ideia de encarnar aqueles personagens, aqueles dramas, aparentemente leves, mas representativos de muito do que se passa agora, numa área em que há um alcance de milhões.

Onde há ser humano há sempre interesse.
Há um lado maquiavélico das pessoas. O lado de premeditar e de influenciar. Estou a sentir que a “Plim” é uma espécie de “House of Cards” do universo influencer. Quando digo influencers, não falo de um universo menor. Há pessoas com um milhão de seguidores. São, neste momento, poderosas. A Kim Kardashian é muito poderosa. Quem tem mais poder: a Kim Kardashian ou o Kanye West? Estou imerso na realidade influencer, mas, a seguir, quero ir para uma realidade completamente diferente. Mais longínqua de mim do que esta – porque, na verdade, estou a um, dois passos de diferentes influencers. Quero ir para realidades nas quais não conheço ninguém. Que me deem uma chapada e nas quais possa usar a minha criatividade para contar histórias. E quero fazer um projeto de cada vez. Cada um mais diferente do outro. Que é para ir crescendo.

Ouça aqui o segundo episódio da série em podcast “O Sargento na Cela 7”. Uma história de guerra, de amor e de uma operação secreta.

Interessam-te os universos que suscitam questões sociais.
Entro, por exemplo, na série “Rabo de Peixe”, que se vai estrear em maio na Netflix. Sou um peão naquela série, não o criador. Mas, sendo uma ficção, do Augusto Fraga, é a possibilidade de contar uma história sobre uma determinada realidade. O que não quer dizer que a realidade de Rabo de Peixe seja assim. É uma ficção baseada em factos verídicos. Já contei a minha realidade. Quero contar outras. Com uma luz do público para perceber se devo ir por um caminho ou por outro. Não vou forçar se não tiver jeito.

Com este gesto de recriar o universo dos influencers, não pensaste que podias originar uma manif de influencers contra ti?
Pensei. Mas acho que o que estou a fazer vem do sítio certo. O ponto não é a questão do género. Mas, na própria construção da personagem,  existe uma indefinição. É um não binário, que não se identifica com “o” ou “a” e não está preocupado com isso.  O que se tem trabalhado nos ensaios é alguma contenção. Gostava que não fosse um exagero. Há sempre um lado de caricatura, mas quero tornar a personagem o mais realista possível, o menos boneco possível. Há mais um ponto: estando dentro do personagem, estou exposto a alguma homofobia. Já pensei em ter uma retórica para combater isso.

Entras, verdadeiramente, na pele das pessoas que são vítimas de homofobia. Ao ler entrevistas tuas recentes, percebo que há qualquer coisa em ti que te diz que, um dia, é bom ir embora. Disseste: “O meu ‘caminho de felicidade’ passa por não estar exposto continuadamente no tempo. Não me agrada isso. Acho que é muito violento”.
A vida na cidade é violenta. Aparecer é violento. Uma pessoa quer é viver em paz. Sinto-me um gladiador. Em cada espectáculo, morro um bocadinho. O mesmo acontece de cada vez que faço um vídeo ou uma série. Porque não estou no estado mais puro, não estou em modo amador.

"Toda a gente gosta de ser amada e validada. Isso não tem fim. Do corretor da bolsa ao ator. Tenho esta ideia: sou um pouco aquele airbnb que se vai ver sem grande entusiasmo e que depois origina comentários como 'isto é muito melhor por dentro!'"

Sentir-te-ias realizado só com o privado? Como marido, pai, filho, amigo?
Não tenho resposta. Sei que não preciso de ser conhecido na rua, pela minha cara, e acho, ao mesmo tempo, que há algo que não vai morrer em mim. Nunca vou perder o bichinho do impacto das palavras nos outros. É uma sensação poderosa ter uma ideia e vê-la acontecer. Estou a imaginar-me no campo. E, a dada altura, a ir falar com o senhor da igreja para criarmos um teatro. Depois alguém vai comentar: “O Salvador, aquele que vive naquela casa, teve aquela ideia.”

É a necessidade de ser amado.
Toda a gente gosta de ser amada e validada. Isso não tem fim. Do corretor da bolsa ao ator. Tenho esta ideia: sou um pouco aquele airbnb que se vai ver sem grande entusiasmo e que depois origina comentários como “isto é muito melhor por dentro!” Talvez por causa do lado selvagem do início, em que as pessoas me viam como um betinho sem respeito por ninguém e sem grande graça, sinto que criei alguns anticorpos. Com o tempo, tenho vindo a conquistar os que não gostavam de mim. Acontece também as pessoas estarem de pé atrás antes de me conhecerem e, passados vinte minutos, já me acharem graça. Tenho um lado em mim, que vem da minha educação, da minha maneira de falar, que aproxima e afasta pessoas. Depois, no um para um, não afasto. Sou muito mais popular no um-para-um do que nos programas e nos palcos.

Isso é uma raridade. Normalmente é ao contrário.
No início era um miúdo frágil que não dominava o ofício. O problema também era meu. Porque somos responsáveis pela imagem que projetamos de nós próprios.

Onde é que fica o ego?
O meu ego está a diminuir porque me fui resolvendo. Se estivessem aqui sete humoristas, poderia escolher estar calado. Não tenho qualquer necessidade de mostrar que tenho piada. Antes não era assim.

O que é que preferias não fazer, para citar o Bartleby, personagem de Melville?
Tenho uma relação ambígua com as redes sociais. Na verdade, sou ambíguo em relação a muitos temas. Tenho normalmente duas opiniões. No outro dia ligou-me um amigo a pedir uma opinião para um stand-up. Disse-lhe logo: “Já sabes como é que eu sou. Tenho duas opiniões sobre isso”. E ele disse: “Por isso é que te liguei. Para ouvir as duas”.

Opiniões que são contraditórias.
Sim. Em relação às redes: por um lado, é ótimo não pertencer a nenhum canal e a nenhuma plataforma, mas, por outro, é muito bom poder encher salas sem precisar do Instagram. Tenho de ser o diretor de conteúdos da minha página se não aquilo morre. Sei jogar o jogo, mas também me cansa jogar o jogo. Em todo o caso, apesar disso, é preferível ter o comando na mão.

Que frase guardas para a tua lápide?
Já tenho uma, que é cem por cento verdadeira: “Estive sempre a falar a sério, as pessoas é que se riram”. Também podia desenvolver outra, relacionada com as dúvidas. Se não vemos as questões através de todas as perspetivas, vivemos sempre numa escuridão.

“Plim, Passa Lá na Agência T1” — Lisboa: de 27 de março a 1 de abril, Teatro Tivoli BBVA; Leiria: 5 de abril, Teatro José Lúcio da Silva; Guimarães: 15 de abril, Teatro São Mamede CAE: Aveiro: 19 de abril, Teatro Aveirense; Porto: 19 a 12 de abril, Teatro Sá da Bandeira

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