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“Portugal lutará pela adoção dos dois Estados […] defendendo um cessar-fogo que faculte […] o estabelecimento de negociações com vista a uma paz duradoura, que passará pela autodeterminação do povo palestiniano.” Foi nestes termos que o programa do Governo apresentou o guião para gerir o conflito no Médio Oriente, num momento em que vários países europeus anunciaram que desejam avançar com o reconhecimento do Estado Palestiniano. Sem colocar metas temporais, o primeiro-ministro, Luís Montenegro, referiu, no debate de preparação do Conselho Europeu esta sexta-feira, que o Governo vê “com bons olhos” a “pretensão da Palestina em adquirir o estatuto de membro pleno nas Nações Unidas, que ultrapassa o de observador que tem neste momento”.
O chefe do governo de Espanha, Pedro Sánchez, apostou, por sua vez, numa autêntica maratona para que vários países europeus reconheçam a Palestina enquanto Estado. Esta sexta-feira, o secretário-geral do PSOE esteve na Noruega e, na próxima semana, viajará até à Eslovénia e à Bélgica. Na visita de Luís Montenegro a Madrid esta segunda-feira, o assunto do reconhecimento dos “territórios palestinianos ocupados” — designação usada pela diplomacia portuguesa — será abordado entre os dois líderes.
O executivo espanhol espera reconhecer a Palestina enquanto país até julho e espera que outros países europeus se juntem. Num debate no Congresso dos Deputados, Pedro Sánchez defendeu que é uma ação “justa” e que é “do interesse geopolítico da Europa”: “A comunidade internacional não poderá ajudar o Estado Palestiniano se não reconhecer primeiro a sua existência”. Até o líder da oposição, Alberto Núñez Feijóo, subscreveu a posição, mas apelou a que a decisão de Madrid não seja isolada e “conte com a massa crítica de mais países de peso”.
No entanto, os dois principais países da União Europeia — Alemanha e França — dificilmente reconhecerão um Estado Palestiniano num futuro próximo. Devido ao passado histórico relacionado com o Holocausto, os governantes alemães sempre se opuseram a esta medida. Por sua vez, o chefe da diplomacia francesa, Stéphane Séjourné, sinalizou, numa entrevista na passada segunda-feira, que não era “útil” avançar com o processo, sem estar integrado num “processo de paz” para terminar com a guerra entre Israel e o Hamas.
“A União Europeia sempre esteve dividida no que diz respeito aos problemas entre Israel e a Palestina”, corrobora ao Observador Dimitris Bouris, professor universitário no Departamento de Ciências Políticas na Universidade de Amesterdão, acrescentando que a posição “oficial dos Estados-membros da UE é que o reconhecimento é algo que só se pode fazer uma vez” e “querem manter” esse trunfo por mais tempo.
Adicionalmente, na Organização das Nações Unidas (ONU), o assunto do reconhecimento do Estado da Palestina foi discutido nos últimos dias, algo de extrema importância para concretizar as ambições dos palestinianos. A presença como membro da Assembleia-Geral da organização é que o valida, em termos jurídicos, a independência de um país perante a comunidade internacional. Mas, para isso, é preciso obter a unanimidade do Conselho de Segurança, sendo que nenhum dos cinco membros permanentes (Estados Unidos da América, China, Rússia, França e Reino Unido) deve vetar a iniciativa.
Ora, os Estados Unidos são os maiores aliados de Israel, cujo governo desaprova por completo o reconhecimento do Estado Palestiniano. Assim sendo, mais do que França ou qualquer país europeu, a independência da Palestina está dependente em grande medida da vontade de Washington. A Casa Branca insiste que quer a “solução de dois Estados”, defendendo que um Estado naquela região deve ser controlado por uma Autoridade Palestiniana revitalizada, mas nunca precisou quando (e se) reconheceria o Estado Palestiniano.
“A divisão europeia” no reconhecimento, que será apenas um “gesto simbólico” ou uma forma de “fortalecer” o lado palestiniano?
Ainda que os Estados Unidos possam ter um papel fundamental no reconhecimento do Estado Palestiniano, os países europeus podem criar pressão junto a Israel não só para alterar a maneira como gere a guerra, como também estabelecendo um precedente para o pós-guerra — garantindo a existência da Palestina e desincentivando o desejo de as autoridades israelitas (principalmente as mais extremistas) em controlar todos os territórios palestinianos, o que incluiria a anexação por Telavive de Gaza e da Cisjordânia, para lá dos atuais colonatos.
Para Pedro Sánchez, o estabelecimento de um Estado Palestiniano é a “única via” para a paz na região. A esmagadora maioria dos líderes europeus concordam; só diferem no timing. Tal como Dimitris Bouris assinalou, este trunfo só pode ser usado uma vez. No seio da União Europeia, existem opiniões diferentes sobre quando usá-lo: se países como a Eslovénia ou Espanha se mostram dispostos a fazê-lo já, outros adiam. “A ideia é que o reconhecimento deve fazer parte das negociações entre israelitas e palestinianos e a União Europeia não as devem impor”, aclara o especialista.
Já Yoav Shemer, doutorado em Ciência Política na Universidade de Estrasburgo, diz que, enquanto Espanha está “disposta a tomar o risco” de reconhecer a Palestina, França e Alemanha não querem sofrer qualquer “pressão, exigência ou obrigação legal” para avançarem com a medida. Ao Observador, o especialista lembra as “relações muito próximas” económicas, comerciais e militar de Paris e Berlim com Telavive.
Na guerra, Yoav Shemer acredita que o reconhecimento da Palestina pelos Estados-membros da UE seria, neste momento, um “gesto simbólico” — se bem que também “fortaleceria” o lado palestiniano e enfraqueceria o israelita. Por exemplo, o especialista argumenta que isso poderia facilitar a “aplicações de sanções a Israel nos colonatos se o Estado da Palestina for reconhecido enquanto país”. No quadro comunitário, também flexibilizaria a aplicação de “medidas restritivas”.
Neste momento, na União Europeia, já há oito países que reconhecem a Palestina. Em 1988, antes de aderirem ao bloco comunitário, quando ainda estavam na esfera de influência da União Soviética, a Bulgária, o Chipre, a Eslováquia, a Hungria, a Polónia, a República Checa e a Roménia deram esse passo. Unilateralmente, a Suécia fez questão de, em 2014, avançar com o reconhecimento do Estado Palestiniano. Fora da UE, países europeus como a Islândia, a Sérvia, a Bósnia-Herzegovina ou a Albânia também estabeleceram relações diplomáticas com a Palestina.
Além de Espanha, também Malta, a Eslovénia e a Irlanda já mostraram disponibilidade para reconhecerem a Palestina, o que aumentaria o número de Estados-membros que oficializaram relações diplomáticas com o Estado Palestiniano para 12. O objetivo de Pedro Sánchez passa ainda por juntar outros países que ainda não tomaram uma posição definitiva — como a Bélgica ou Portugal.
Em todo o caso, Dimitris Bouris demonstra dúvidas sobre a eficácia do reconhecimento da Palestina por todos os Estados-membros e questiona se isso fará “alguma diferença no terreno”: “Durante décadas, a Palestina foi tratada como um Estado virtual sem ser reconhecida como um”. Da mesma forma acrescenta que a UE se tornou um “ator altamente irrelevante” no Médio Oriente.
“O que temos visto na última década é muito irónico. Ainda que o principal objetivo da atual Comissão seja tornar-se mais geopolítica, não temos visto um impacto na relevância da UE no Médio Oriente, que está em declínio”, comenta o professor da Universidade de Amesterdão, explicando que em parte se deve ao quão a União Europeia tem estado “dividida” sobre o que está a ocorrer no Médio Oriente: “Veja-se, por exemplo, na Líbia, na Síria, em Israel, no Egito, na crise migratória e nos pactos de migrações com autocratas”.
Na opinião do especialista, existe outro problema, que tem a ver com o facto de a União Europeia já não se importar com o “respeito pelos direitos humanos e pela democracia” no Médio Oriente. “O genocídio ao vivo em Gaza e o falhanço da UE em tomar ações concretas contra [isso] terão repercussões significativas”, conjetura Dimitris Bouris.
Israel argumenta que seria “recompensa” para o Hamas, mas poderia ser “passo” para resolver conflito
Para além da Europa, um reconhecimento do Estado Palestiniano pela comunidade internacional teria obviamente um maior impacto. Mas contaria, desde logo, com a firme oposição do governo israelita. Em fevereiro, o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, garantiu que o país “rejeita os ditames internacionais”, sublinhando que uma suposta independência da Palestina apenas será alcançada atrás de “negociações diretas” — sem “pré-condições” — de que Israel fará parte.
“Israel vai continuar a opor-se ao reconhecimento unilateral de um Estado palestiniano”, continuou Benjamin Netanyahu, que expõe o principal argumento utilizado por Israel para apelar a que outros países se detenham de reconhecer a Palestina: “À luz do massacre de 7 de outubro, isso seria uma enorme e sem precedentes recompensa ao terrorismo e preveniria qualquer acordo de paz”. Ou seja: o governo de Israel argumenta que seria um bónus para o Hamas, ignorando-se o que aconteceu a 7 de outubro.
Na mesma linha, o ministro dos Negócios Estrangeiros de Israel, Israel Katz, apelou a que Espanha, Irlanda, Malta e Eslovénia não reconheçam a Palestina: “Enviaria uma mensagem ao Hamas e outras organizações terroristas palestinianas de que os ataques terroristas contra israelitas seriam recompensados com gestos políticos para os palestinianos”. “Qualquer reconhecimento do Estado Palestiniano apenas distancia a chegada a uma resolução [do conflito] e aumenta a instabilidade regional.”
E não é só o governo. O parlamento israelita — o Knesset — também votou massivamente a favor da rejeição de qualquer reconhecimento unilateral da Palestina — 99 deputados (de 120) votaram a favor, incluindo membros da oposição. “O Knesset juntou-se numa maioria esmagadora contra a tentativa de nos impor o estabelecimento de um Estado Palestiniano, que não só não traria paz, como também traria perigos ao Estado de Israel”, saudou Benjamin Netanyahu.
Esta reação não surpreende Nathan Brown. O professor de Ciência Política e Assuntos Internacionais na Universidade George Washington sublinha ao Observador que a constituição de um Estado Palestiniano representa uma “traição” dos restantes países para a “atual liderança israelita”. “Seria interpretada como uma vitória da liderança palestiniana” — mas não a do Hamas; em vez disso, antes pela Fatah, que controla a a Autoridade Palestiniana e está instalada na Cisjordânia.
O especialista refere que o reconhecimento da Palestina teria “tido mais impacto se tivesse sido feito há muitos anos”. “Falar-se sobre uma ‘solução de dois Estados’ mas adiar o reconhecimento de um desses Estados para um futuro indefinido perde toda a credibilidade”, assinala Nathan Brown, que diz acreditar que este passo trará efeitos apenas “limitados” no conflito. “Não teria grande valor prático na guerra atual e teria apenas um efeito a longo prazo se fosse conjugado com um processo diplomático forte.”
“Um reconhecimento até poderia ter efeitos modestamente positivos se fosse destinada a convencer a liderança israelita da necessidade de aceitar os palestinianos como uma comunidade nacional e se os incentivasse lidar com os seus líderes eleitos”, vinca Nathan Brown.
Também Yoav Shemer vê efeitos limitados no reconhecimento da Palestina neste momento, ainda que realce que possa ter “consequências legais”. “Eu considero que, num processo a longo termo, o reconhecimento da Palestina é um passo que fortalece os palestinianos diplomaticamente. Também tem consequências legais, como a inclusão do Estado no Tribunal Internacional de Justiça”, indica, acrescentando que, numas futuras negociações para o fim do conflito, isso “fortaleceria o lado palestiniano” que poderia estar numa melhor posição para encetar “negociações” justas com Israel.
Em contrapartida, Glenn Robinson, membro do Centro de Terrorismo, Extremismo e Contraterrorismo do Instituto de Estudos Internacionais de Middlebury em Monterey, defende que a constituição de um Estado Palestiniano pela Europa e pelos Estados Unidos seria um “significativo e positivo positivo passo para resolver o conflito”. “Pela primeira vez, mostrava que o Ocidente está comprometido em reconhecer os direitos dos palestinianos em ter um Estado soberano — a solução de dois Estados”, sustenta, em declarações ao Observador.
Apontando para o final da guerra, o especialista assinala que, se esta decisão fosse tomada pelo Ocidente, isso “daria poder os israelitas comprometidos com a solução de dois Estados”, ao mesmo tempo que colocaria a “direita israelita na defensiva”, uma vez que os partidos desta ideologia política se têm “oposto à solução de dois Estados desde o início”. “É um passo que deve ser concretizado para chegar a uma solução. Quanto mais cedo, melhor.”
Questionado sobre se os Estados Unidos deveriam chegar de antemão a acordo com Israel para reconhecerem o Estado Palestiniano, Glenn Robinson rejeita essa hipótese: “A posição norte-americana de que o reconhecimento da soberania palestiniana deve apenas concretizar-se após um acordo com Israel dá a Israel um veto permanente sobre a soberania palestiniana”. “Não é muito lógico”, opina.
A posição norte-americana e o papel inesperado da Arábia Saudita
Possuindo o poder de veto no Conselho de Segurança da ONU e influenciando Israel, a diplomacia norte-americana tem um papel fundamental no reconhecimento da Palestina. Sem o respaldo de Washington, será impossível a existência de um Estado Palestiniano.
O assunto raramente foi abordado publicamente pelos Estados Unidos desde o início da guerra. Contudo, de acordo com o jornal Axios, o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, pediu uma avaliação em fevereiro sobre quais seriam os impactos da constituição de um Estado Palestiniano após o final da guerra entre Israel e o Hamas. Ainda assim, esta não é uma mudança de posição dos Estados Unidos; é apenas um exercício com uma vertente teórica.
E há um país que pode influenciar o reconhecimento da Palestina: a Arábia Saudita. Num esforço diplomático que já dura há alguns anos e que foi interrompido com a guerra em Gaza, Riade promete que estabelecerá relações com Israel sob a condição de ser criado “um Estado Palestiniano” depois do conflito. Após encontrar-se com o príncipe Mohammed bin Salman em fevereiro, Antony Blinken notou um “forte interesse da Arábia Saudita” em avançar com a normalização de relações com Israel.
A curto prazo, porém, os EUA não deverão avançar com o reconhecimento da Palestina, a não ser que o Hamas aceite a derrota e inicie negociações de paz. Se o conflito prosseguir nos próximos meses, como é provável, Donald Rothwell, especialista de Direito Internacional na Universidade Nacional Australiana, afirmou ao Washington Post que a “administração Biden estará muito cautelosa” ao apoiar esta ideia, por ser um assunto “politicamente controverso”, ainda para mais num “ano com eleições presidenciais”.
Reconhecer a Palestina, ainda assim, poderia aliviar as dificuldades. Seguindo a Convenção de Montevideu, que estabelece os critérios para a criação de um Estado, há quatro condições para que isso suceda: deve existir um território definido, o território deve ter população permanente, deve possuir o seu próprio governo e deve ter a capacidade de se relacionar com outros Estados. Ora, na questão do Estado Palestiniano, há o problema de haver dois governos — um em Gaza, liderado pelo Hamas, outro na Cisjordânia, liderado pela Fatah.
Não obstante, como escreve a Deutsche Welle, existem diferentes opiniões e 140 países já reconheceram a Palestina. Ou seja, maioria da comunidade internacional vê o Estado Palestiniano como um país — e a Convenção de Montevideu não foi seguida, aplicando-se a Teoria Constitutiva dos Estados, que estipula que um Estado é apenas um Estado se for reconhecido por outros.
Independentemente das definições legais, Yoav Shemer considera que, atualmente, Israel é “demasiado poderoso” — e terá sempre vantagens em negociar com os palestinianos. Assim, para diminuir essa diferença, o reconhecimento da Palestina pelo Ocidente pode ajudar a “construir a paz”. Tudo está nas mãos dos Estados Unidos.