Quando a 27 de maio de 2023 foram anunciados os vencedores da 76.ª edição do Festival de Cinema de Cannes, um acaso revelou-se. Anatomia de Uma Queda, um drama judicial sobre uma escritora julgada pela morte do marido, recebeu a cobiçada Palma de Ouro; já o Grande Prémio do Júri foi para A Zona de Interesse, um filme de época em torno de um casal nazi que tenta construir uma vida idílica paredes-meias com o campo de concentração de Auschwitz em plena Segunda Guerra Mundial (a partir do livro homónimo de Martin Amis). Dois filmes, aclamados na Riviera Francesa e unidos pela presença central de uma mesma protagonista: Sandra Hüller.
A atriz germânica, de 45 anos, tem estado desde essa altura nas bocas do mundo. Conhecida há vários anos na sua Alemanha natal, o sucesso destes dois filmes além-fronteiras (ambos têm estado em destaque nesta temporada de prémios e os dois são candidatos às nomeações aos Óscares da Academia, que são anunciadas na próxima terça-feira), projetou-a no panorama do cinema internacional, elevando-a ao patamar de “grande nome” da produção cinematográfica europeia. Que tal tenha acontecido nesta fase da carreira da veterana atriz é um fenómeno pouco habitual numa indústria notoriamente obcecada com a juventude – duplamente no caso das suas estrelas femininas.
A Zona de Interesse já está nas salas portuguesas, Anatomia de Uma Queda chega a 1 de fevereiro. Com um currículo de quase três décadas que atravessa o teatro, o cinema, a televisão e até a rádio, a versatilidade e extenso currículo de Hüller são bem conhecidos na Alemanha, mas tem permanecido uma espécie de “segredo bem guardado” para o público internacional. Até agora.
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Nascida em 1978 em Suhl, na então República Democrática Alemã (RDA), a atriz tinha 11 anos quando o Muro de Berlim caiu. “Ainda me lembro de que, quando recebíamos amigos e dávamos festas e as conversas se viravam para a política, fechavam-se as janelas, mesmo durante o verão”, recordou a atriz numa entrevista à revista New Yorker. Essa memória de um passado histórico, das feridas que o país começava a sarar no pós-reunificação, ajudaram a formar uma consciência política e social que, como se veria mais tarde, informaria os papéis que viria a escolher.
Filha de um casal de educadores (o pai lecionava num centro educativo, a mãe dava explicações a alunos em casa), Hüller começou a enveredar pela representação ainda no liceu e, entre 1996 e 2000, estudou teatro na Academia Ernst Butsch de Artes Dramáticas, em Berlim. Findos os estudos, mudou-se para Thuringia, nos arredores de Leipzig e, em 2001, para a Suíça, onde integrou o núcleo da companhia Theater Basel, onde o desempenho em produções de Fausto, Dido e Eneias e Romeu e Julieta lhe valeram o reconhecimento do meio teatral.
Ainda hoje, a atriz atribui ao teatro os principais fundamentos da sua formação profissional. “A disciplina foi a primeira coisa que aprendi no teatro. Isso e a capacidade de estar concentrada durante muito tempo”, explicou. “Além disso, o teatro ensinou-me a usar todo o corpo, ajudou-me a perceber que a representação não está só no rosto, que está ligada a todo o sistema corporal.”
O salto para o cinema deu-se em 2006. No grande ecrã, Hüller interpretou Michaela Klingler em Requiem, sobre uma jovem epilética não-diagnosticada que, às mãos da família e de um padre católico, é submetida a dezenas de exorcismos até acabar por morrer. Baseado no caso real de Anneliese Michel, a história, que havia inspirado no ano anterior uma bombástica versão de Hollywood (O Exorcismo de Emily Rose) é tratada na versão alemã num registo minimalista, quase documental, encarregando à sua protagonista todos os rasgos, o descontrolo emocional e físico da história.
O filme foi bem recebido, com o desempenho de Hüller a ser particularmente aclamado (o The Times elogiou a sua presença “extraordinariamente física”), facto que lhe viria a valer o Leão de Prata para Melhor Atriz em Berlim e o primeiro de três Prémios Alemães de Cinema. Descrevendo a experiência, Jens Harzer, que contracenou com Hüller no filme, recordou uma atriz determinada e que, pese embora a inexperiência no novo meio “sabia exatamente” o que queria. “[Ela] tinha uma ideia, um plano, um caminho que queria percorrer”, disse.
Nos anos que se seguiram, Sandra Hüller foi dividindo a carreira entre o cinema alemão e o teatro suíço, acumulando ainda participações em séries televisivas e em peças radiofónicas. Em 2012, integrou o júri do Festival de Cinema de Berlim, onde o seu caminho se cruzou com aquela que viria a ser uma das suas principais colaboradoras nos anos seguintes – Justine Triet, cineasta francesa que, nesse ano, recebeu das mãos de Hüller o prémio para a Melhor Curta-Metragem do certame.
“Trabalhar com a Justine é simples”, disse a atriz quando questionada sobre a colaboração com a realizadora. As duas já trabalharam juntas em dois filmes (além de Anatomia de Uma Queda, há ainda Sybill, de 2019); em ambas as produções, o processo foi semelhante. “[A Justine] filma muito material – é a isso que estou acostumada no teatro, onde tenho a liberdade de explorar o caminho errado ou mudar de direção. (…) O Anatomia de Uma Queda parecia quase um processo constante de ensaio que foi registado com a câmara”, recorda.
[o trailer de “Anatomia de uma Queda”:]
Em 2014, viria o segundo Prémio Alemão de Cinema, (Melhor Atriz Secundária no filme Finsterworld, de Frauke Finsterwalder). Dois anos mais tarde, em 2016, surgiu o primeiro grande momento de reconhecimento internacional: Toni Erdmann, uma comédia dramática acerca da relação de uma filha e do seu pai. Estreado em Cannes, o filme foi imediatamente aclamado pela crítica e foi considerado o filme do ano para publicações como a Cahiers du Cinéma e a Sight and Sound, com a prestação de Hüller no papel de uma mulher sisuda que aprende a aceitar o lado absurdo da vida (e, com ele, a sua libertação pessoal) a valer-lhe o Prémio Europeu de Cinema para Melhor Atriz.
Noutras circunstâncias, tal poderia ter significado a ascensão de uma nova estrela do cinema internacional – mas não para a atriz alemã, cuja idade e as feições austeras aliadas ao nível de exigência que imprime aos seus papéis não combinam com o mundo do cinema mainstream. “A Sandra é muito, muito inteligente, pode desempenhar qualquer papel possível e imaginável. O que ela não é, é uma atriz de ‘pronto-a-vestir’, capaz de encarnar um papel e deitá-lo fora logo de seguida. Para ela, há uma jornada emocional e física”, explicou ao Hollywood Reporter o encenador e diretor teatral Johan Simons, que trabalha há anos com Hüller no teatro alemão (incluindo em 2019, numa premiada adaptação do Hamlet de Shakespeare, em que a atriz desempenhou o papel principal).
Indicado para o Óscar de Melhor Filme Internacional (não venceria), Toni Erdmann ainda valeu a Hüller algumas abordagens infrutíferas por parte de agentes de Hollywood. “Conheci alguns produtores, houve uma ou outra sugestão, mas nada aconteceu”, recordou a atriz. Na Europa, contudo, vários cineastas de renome manifestaram vontade de trabalhar com ela – incluindo Justine Triet, que escreveu o argumento de Anatomia de Uma Queda especificamente com a atriz germânica em mente.
No filme, Hüller interpreta Sandra Voyter, uma autora de sucesso acusada de assassinar o marido quando este aparece morto após uma aparente queda da janela da moradia de ambos, nos Alpes franceses. “Ela tem uma certa fisicalidade. Sabia que a podia filmar sem maquilhagem, sem que ela parecesse ultra-feminina; ao mesmo tempo, há uma humanidade, uma forma de estar que é muito auto-confiante e segura de si”, explicou a cineasta. “Sabia que com ela, podia ir longe com a ideia de que esta mulher não é perfeita, e ao mesmo tempo garantir que os espectadores a seguem e simpatizam com ela até ao fim”, acrescentou.
Quem também se mostrou impressionado com o talento de Hüller foi o britânico Jonathan Glazer, cujo austero e clínico A Zona de Interesse pega em alguns elementos narrativos do livro do mesmo nome de Martin Amis e prende-os às figuras reais de Rudolf e Hedwig Höss, explorando a vida doméstica do casal nazi no período em que Rudolf comandava o campo de concentração de Auschwitz. O filme contrasta o aparente idílio em que os Höss e os cinco filhos vivem com os horrores que acontecem do outro lado do muro. Horrores esses que nunca são vistos – apenas ouvidos, numa banda sonora constante, composta por gritos, tiros, labaredas e lágrimas que contrasta com a máscara bucólica das imagens e impressiona no espectador a extensão da banalidade do mal.
Conhecida pela sua destreza profissional e disposição para interpretar qualquer papel, Hüller, curiosamente, traçava até aqui como linha vermelha assumir como suas personagens nazis. Algo que, assume, “aparece com frequência” quando se é uma atriz alemã. “Nunca gostei da ideia de vestir um uniforme nazi ou de usar aquela linguagem – de me aproximar daquela energia e de descobrir que seria divertido fazê-lo”, disse.
[o trailer de “A Zona de Interesse”:]
A diferença entre o projeto de Glazer, autor do invulgar Debaixo da Pele (2013), uma ficção científica arthouse com Scarlett Johansson no principal papel, e as dezenas de projetos centrados no Holocausto e na Alemanha Nazi, prendeu-se justamente com a vontade de evitar as convenções e clichés do género, treinando o olhar da câmara no dia-a-dia mundano dos seus detestáveis protagonistas. “A ideia de não mostrar, não reconstituir as atrocidades ou a violência era absolutamente essencial para mim”, explicou o britânico à Deadline, descrevendo o seu mais recente filme como uma junção de duas narrativas – “há dois filmes: o filme que vemos e o filme que ouvimos”.
Anatomia de Uma Queda e A Zona de Interesse são, assim, dois lados de uma mesma moeda, as duas faces daquele que, no cinema, poderia ser descrito como “o ano de Sandra Hüller”. Questionada sobre os elogios que tem recebido e sobre eventuais perspetivas de reconhecimento futuro (a sua nomeação ao Óscar de Melhor Atriz é neste momento uma forte possibilidade), Hüller prefere destacar o trabalho. “Estes dois filmes são muito importantes para mim, pessoal, artística e profissionalmente. (…) Estou apenas muito feliz que as pessoas tenham reconhecido isso, e que me tenham dado a oportunidade de viajar o mundo com estes dois filmes”.